Khukhuri

Reportagem sobre a Guerra Popular no Nepal

3ª Parte: O ataque a Bethan

Por Li Onesto

Revolutionary Worker/Obrero Revolucionario n.º 1016, 1 de Agosto de 1999
Em inglês: revcom.us/a/v21/1010-019/1016/nepal3.htm
Em castelhano: revcom.us/a/v21/1010-019/1016/nepal3_s.htm

Os limites da aldeia

O Nepal é um país de regiões afastadas. A maior parte do interior só é acessível por um meio de transporte — a pé. O país inteiro tem apenas cerca de 13.000 km de estradas. E isto inclui uns 5.000 km de vias que são completamente inadequadas para a passagem de um veículo — especialmente devido à natureza rugosa e montanhosa do terreno no Nepal. Não há nenhum meio de navegação fluvial e só há uma pequena via-férrea de 50 km que une Janakpur, no Terai oriental, a Jayanagar, na fronteira indiana. No campo, sempre que pergunto a alguém quão longe estamos de outra aldeia, nunca me respondem em distâncias. Respondem sempre em horas ou dias — ou seja quanto tempo demora a ir a pé até lá.

Só há duas estradas principais no Nepal: a Estrada de Mahendra que atravessa o país da fronteira indiana em Kakarbbhitta a leste, à fronteira indiana em Mahendranagr a oeste. E há Estrada de Prithvi que liga Katmandu a Pokhara, a qual se situa a oeste da capital. Autocarros cheios de gente viajam constantemente por essas estradas. E os autocarros são também o principal meio de transporte das pessoas no limitado número de estradas que se ramificam para o interior do país.

Esta extrema falta de infra-estruturas reflecte uma vez mais a profunda pobreza do Nepal. E para as massas do povo, esta falta de transportes adequados, não é apenas um problema de “incomodidade”. Mais importante, é uma questão de segurança. Os autocarros — que são quase todos fabricados na Índia — são muito velhos e usados. E quando a isto se juntam as estradas inadequadas e íngremes e a sobrecarga, o resultado são frequentes acidentes de autocarro e muitas mortes. Já tinha lido várias notícias no Kathmandu Post sobre acidentes com autocarros.

Ao mesmo tempo, as condições de isolamento do país são muito favoráveis à guerra de guerrilhas. A falta de estradas no campo torna difícil ao governo trazer grandes destacamentos armados contra a Guerra Popular.

Entramos num autocarro na Região Leste meia hora antes da hora de partida e a maioria dos passageiros já subiu a bordo — pelo menos os que quiseram um lugar sentado. Os compartimentos superiores estão cheios com todos os tipos de sacos e nos corredores acumulam-se sacos de cereais e grandes recipientes do que parece ser querosene ou algum outro tipo de combustível ou óleo líquido. Felizmente consigo arranjar um lugar sentado, senão teria acabado por me sentar num saco de milho ou num tanque de combustível. Mais gente continua a subir para o autocarro até ao último minuto. Há todo o tipo de pessoas no autocarro, mas muito mais homens que mulheres. Algumas pessoas estão muito bem vestidas e parecem estar de volta de uma visita à cidade ou são apenas habitantes recentes da cidade, a caminho de uma visita familiar. Muitos dos rapazes usam calças de ganga e t-shirts, enquanto outros usam as mais tradicionais calças e túnicas largas nepalesas. A pobreza extrema de um miúdo que parece estar sozinho é evidente pelas suas roupas esfarrapadas.

Quando partimos, as pessoas já estão muito apertadas. Uma mulher alimentando o seu bebé e apertando outra criança, equilibra-se nos sacos de grão empilhados junto a mim, no corredor. Como o resto das pessoas, estamos apertados uma contra a outra e ela está quase sentada ao meu colo. O autocarro parte a horas e eu vejo a estrada em que andaremos até ao escurecer — muito cinzenta e acidentada, subindo uma montanha íngreme. Há muito poucas rectas, que são sempre curtas, e muitas curvas apertadas. O autocarro sobe a montanha aos solavancos. E a cada 15 minutos uma dúzia de passageiros tem de sair, reduzindo a carga e permitindo vencer os troços mais íngremes. Uma equipa de três jovens guias ajuda a orientar o autocarro — às vezes caminhando ao seu lado e batendo no autocarro para assinalar ao motorista que está em perigo de cair montanha abaixo. Num certo ponto o autocarro vai-se abaixo completamente e a viagem prevista de três horas até ao destino acaba por demorar mais de seis horas.

Alguns camaradas estão à nossa espera quando finalmente chegamos ao nosso destino e partimos imediatamente por um caminho rochoso. Estamos bem alto nas montanhas e o céu está cheio de estrelas, mas é muito escuro. Após cerca de 45 minutos de caminhar na escuridão, apercebo-me que estamos numa aldeia, atravessando vários quintais, pisando pilhas de feno e encontrando vacas, deitadas para passar a noite. Chegamos à casa onde iremos ficar e os nossos anfitriões imediatamente nos preparam uma refeição. Quando acabamos de comer já é tarde mas os camaradas querem ter uma pequena discussão antes de irmos dormir. Estão excitados por estarmos aqui e não podem esperar pela manhã para falar.

Estamos numa área da Região Oriental onde durante o início da Guerra Popular aconteceram algumas das acções mais avançadas. E o trabalho do partido aqui continua a ser muito forte. Um camarada explica que esta aldeia está no limite de uma grande área de cerca de 150,000 pessoas que está a ser desenvolvida como base de apoio. Num prazo de cinco a sete horas, diz ele, podem mobilizar uma reunião de massas com cerca de 5,000 pessoas. Em tais circunstâncias, a polícia local não se atreverá a entrar na zona sem reforços. E antes que eles cheguem, a reunião já terá terminado e as pessoas dispersado.

Ficamos nesta aldeia durante vários dias, mas por razões de segurança, estamos limitados ao interior da casa durante o dia. Várias pessoas vêm falar comigo e eu sei que organizar tais visitas é muito difícil. Muitas pessoas só podem viajar na escuridão, e mesmo assim estão a arriscar as suas vidas. As comunicações são difíceis e muitos diferentes factores têm de ser tidos em conta — a segurança da zona inteira, da família com quem estamos, das pessoas que vêm falar, e quanto tempo é seguro ficar num lugar sem chamar a atenção. Temos mesmo de ter cuidado ao fazer viagens rápidas para a latrina exterior. A Guerra Popular tem aqui muita força. Mas isso também quer dizer que a repressão governamental é intensa. A casa em que ficamos já foi invadida pela polícia muitas vezes.

Comparando com Katmandu, a vida é muito diferente para os 90 por cento de pessoas que no Nepal vivem no campo. A vida diária aqui é dura e rotineira. Começa muito cedo, cerca das 5:30 da manhã quando as mulheres se levantam para fazer o chá para a casa. Os adultos vão para os campos ou para outras tarefas até cerca das 10:00 da manhã, altura em que regressam para uma refeição e em que as crianças vão para a escola. Depois, as pessoas voltam ao trabalho durante a tarde inteira e regressam quando o sol está a pôr-se. A refeição da noite é normalmente cedo, cerca das 8 horas, e às 9 horas todo a gente está a preparar-se para ir dormir.

A casa em que estamos é uma estrutura em barro de três andares, com o piso de terra, escadas de madeira simples e janelas de persianas. Há muita gente a viver nestes cinco quartos: a mãe, o pai e os seus filhos — vários filhos e filhas crescidos. E depois as famílias dos filhos, cada uma com várias crianças. As irmãs do pai também moram na casa — uma deles é viúva, a outra deixou o marido porque ele lhe batia.

Penso que há cerca de 16 pessoas a viver nesta casa, o que significa que duas ou três pessoas têm de dormir juntas em cada cama. Mas dão-me uma cama só para mim. E há muitas outras maneiras em que a família é hospitaleira e generosa. São pobres, mas dispostos a partilhar tudo o que têm — perguntando-nos constantemente o que queremos comer, apesar de ser difícil para eles alimentar a sua família.

Cozinham no primeiro andar da casa — a um canto uma fogueira é acesa e são colocados tapetes no chão para as pessoas se sentarem e comerem. Normalmente os homens comem primeiro, depois as mulheres e as crianças. A “dona da casa” senta-se e serve as pessoas o tempo todo. Noutro canto deste primeiro andar, as galinhas da família têm o seu espaço. E é no segundo e no terceiro andares que estão os pequenos quartos de dormir, com cerca de três metros quadrados, o espaço suficiente para talvez duas camas com alguns centímetros entre elas. Tudo é simples e humilde, mas muito limpo e asseado.

A família com quem ficamos mantém a sua rotina diária, mas durante as suas idas e vindas enfiam as cabeças no quarto para ver se precisamos de alguma coisa — e para apanhar um pouco das nossas conversas. Toda a gente está ansiosa por falar e ouvir falar, e impressiona-me o quão comprometidos no apoio à Guerra Popular todos estão. Até mesmo as crianças pequenas ficam por perto das conversas para escutar. As mulheres são mais tímidas, mas todas acabam por se aproximar e se apresentar.

Tirtha Gautam

Após o início da Guerra Popular, a polícia fez rusgas, prendendo e torturando pessoas no distrito de Kavre, e matou várias pessoas. Uma delas, Tirtha Gautam, é conhecida em todo o país pela sua coragem.

Uma tarde, o irmão deste mártir famoso entra para falar comigo. Diz-me que Tirtha tinha apenas 33 anos de idade quando foi morto. Era um camarada dirigente do Partido e do Exército Popular. Era membro de um dos Comités sub-regionais do Partido nesta Região Oriental, Secretário do Comité de Organização do Distrito de Kavre-Ramechhap e Comandante militar do distrito. Tinha ou dirigido ou estado associado a todas as principais acções da guerrilha na sub-região desde o tempo da preparação e do início da Guerra Popular. Nascido numa família camponesa da classe média-baixa, Tirtha Gautam tinha trabalhado como professor antes de se tornar num revolucionário a tempo inteiro em 1988. Na altura da sua morte, já era um comunista revolucionário há mais de uma década. Durante os anos de luta interna no Partido contra o oportunismo e o revisionismo, tinha sempre apoiado a linha revolucionária.

Tirtha Gautam foi morto quando dirigia um ataque a um posto de polícia em Bethan — numa das mais atrasadas regiões montanhosas, a cerca de 60 milhas a leste de Katmandu. Foi o primeiro ataque com êxito a um posto policial, após o início da Guerra Popular.

Na escuridão da noite, Tirtha levou a sua brigada de 29 guerrilheiros a uma batalha a 3 de Janeiro de 1997. A história deste ataque ousado relembra as palavras de Mao de que numa guerra revolucionária são as pessoas e não as armas que são decisivas. Equipados com armas e bombas caseiras, os guerrilheiros cercaram o posto e ordenaram aos polícias para se renderem. Os polícias fecharam-se no edifício e começaram a disparar, provocando uma batalha renhida que durou várias horas. O camarada Gautam foi atingido na cabeça e morreu imediatamente. Mas isso inspirou a sua brigada a efectuar o ataque mais vigorosamente e conseguiram dominar o inimigo. Foram mortos dois polícias e outros dois feridos gravemente, e os guerrilheiros apoderaram-se de quatro espingardas e de centenas de cartuchos de munição.

Além de Tirtha Gautam, dois outros membros da brigada, a camarada Dilmaya Yonjan, uma jovem rapariga, e o camarada Fateh Bahadur Slami, também perderam a vida. Gritando slogans de “Viva o Marxismo-Leninismo-Maoismo” e “Viva a Guerra Popular”, a brigada levou os seus camaradas caídos e retiraram-se em segurança. A polícia montou um cruel contra-ataque — helicópteros de busca pairaram sobre as remotas florestas de montanha e os polícias fizeram uma brutal operação, varrendo a região à procura dos guerrilheiros. Mas tudo isso em vão.

No balanço do primeiro ano da Guerra Popular, o Partido saudou esta invasão em Bethan como o melhor exemplo de ousada militar e de sacrifício. Fora o maior golpe sofrido pelo estado reaccionário durante o Segundo Plano do Partido para a Guerra Popular. As vidas de três valentes guerrilheiros foram uma grande perda para o povo. Mas este ataque bem-sucedido galvanizou as aspirações revolucionárias das massas e o governo reaccionário sentiu um calafrio espinha abaixo. Também assinalou o desenvolvimento da Guerra Popular a uma fase mais elevada. Por isso, o Partido reconheceu o significado histórico desta acção na primeira fase da Guerra Popular.

Mais tarde nesse dia, a viúva de Tirtha Gautam, Beli Gautam, de 30 anos, veio ver-me com os seus dois filhos, Delip, de 10 anos, e Tanka, de 8 anos. Depois de se sentarem e de serem apresentados, expresso as minhas condolências a Beli e à sua família em nome das massas oprimidas e dos camaradas dos Estados Unidos. Digo-lhe que são os camaradas valentes como o seu marido que representam o melhor do povo e a esperança para o futuro.

Beli Gautam tem dificuldade em falar e diz que tem tido problemas com a garganta. Mas também posso ver que ela é bastante tímida e calada. Quando lhe pergunto o que pensa da revolução diz: “A Guerra Popular e o trabalho do Partido são bons e avançam”. Então Delip, o de 10 anos, fala, com uma confiança e convicção além da sua jovem idade. Senta-se direito, olha-nos directamente e diz com vigor: “A nossa mãe diz-nos que temos de seguir o caminho do nosso pai e quando formos mais velhos, teremos de ir lutar”. Beli diz-me que também tem duas filhas, de 5 e de 12 anos, e que embora a mais nova seja muito pequena para entender muito, a mais velha já quer combater na Guerra Popular.

A polícia já invadiu muitas vezes a casa desta família, por vezes a meio da noite — dizendo que estão à procura de armas e de bombas. Uma vez, imediatamente após a morte de Tirtha, a polícia chegou e perguntou à família: “Agora que matámos Tirtha, o que vão fazer?”. Talvez estivessem à espera que a família se sentisse ameaçada e dissesse que agora não apoiava a Guerra Popular. Mas, pelo contrário, a jovem Tanka disse-lhes; “Vocês mataram o meu pai, agora eu vou matá-los.”. Os polícias responderam com os seus modos reaccionários de desprezo: “E como vais fazer isso?”. Deram-lhe a sua espingarda e disseram: “Sabes usar isto?” Para surpresa deles, Tanka agarrou na espingarda e começou a engatilhá-la, mostrando aos polícias que de facto, sabia usá-la.

Delip fala-me de uma outra vez em que a polícia veio a sua casa e começaram a revolver tudo. Quando encontraram uma guitarra, perguntaram “Quem toca isto?” e destruíram-na. Também fala de uma vez em que eles ameaçaram prender o seu avô. A sua avó avançou e desafiou a polícia dizendo: “Se você é tão valente por que não o mata agora com a sua arma?”. Um oficial da polícia enfiou o seu cassetete na boca da avó para a calar.

Antes de a família sair, Tanka cantou-nos duas canções, a primeira, escrita por ele. A sua jovem voz é doce, mas vigorosa, e a canção tem uma melodia um pouco melancólica mas viva. Conta como o seu pai fora morto no ataque ao posto de polícia de Bethan e como, antes de partir nessa missão, Tirtha jurara trazer as cinzas do posto de polícia para o Partido. A segunda canção é cantado com uma melodia de uma canção tradicional nepalesa, mas para a qual Tanka escreveu uma letra nova. Canta sobre a polícia e a repressão que o povo enfrenta e então declara que a resposta popular a tudo isso é “Dá-nos a arma de Gautam”, referindo-se ao seu pai mártir.

Quando Tanka acaba de cantar, Delip diz que quando a polícia atacou a brigada o seu pai foi muito valente. Agora quando as pessoas vêem um fogo, lembram-se do heróico ataque ao posto de polícia de Bethan. Quando ouvem um som forte, como um trovão, lembram-se das armas da guerrilha em Bethan. E assim, diariamente, quando as pessoas vêem esse tipo de sinais, Delip diz que se lembram deste incidente e de seu pai que tão corajosamente sacrificou a sua vida.

À medida que se dirigem para a porta, os dois rapazes viram-se e dão-me uma saudação vermelha, atirando os seus pequenos punhos para cima bem alto.

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