
Reportagem sobre a Guerra Popular no Nepal
2ª Parte: Aldeias de resistência
Por Li Onesto
Revolutionary Worker/Obrero Revolucionario n.º 1015, 25 de Julho de 1999
Em inglês: revcom.us/a/v21/1010-019/1015/nepal2.htm
Em castelhano: revcom.us/a/v21/1010-019/1015/nepal2_s.htm
Nos campos do Nepal, é difícil dormir depois das 5:30 ou 6:00 da manhã. Os galos começam a gritar e o murmúrio dos que já acordaram invade o nosso sono. Naquele mundo de semiconsciência antes do despertar, ouço as mulheres que acendem o fogo do novo dia, os homens que se preparam para ir para os campos. Trazem-me uma chávena de chá quente com leite. Sento-me na beira da cama, bebericando e pensando como, apenas três horas antes, membros do Exército Popular tinham estado aqui sentados, junto a mim, falando-me sobre as suas vidas
Cerca das 7:00 da manhã, várias mulheres aparecem à porta e convidamo-las a entrar. São da aldeia e estão ansiosas por falar comigo.
Desde muito jovens que estas mulheres trabalham nos campos, transportam água e cortam forragem para alimentar os animais. Todas me disseram com amargura que normalmente as raparigas não podem ir à escola. Todas me falaram com optimismo da Guerra Popular que lhes está a dar novas oportunidades — não só de terem educação mas também de contribuírem para a revolução. Uma mulher disse:
“Somos analfabetas. Devido às nossas tradições, não aprendemos a ler e a escrever, porque se diz que as filhas não devem estudar. Mas agora estamos a começar uma nova educação popular. Antes, passávamos o tempo a trabalhar nos campos, a trazer comida e forragem para o gado e a fazer outros trabalhos domésticos. O mais importante que nós aprendemos é que toda a opressão que enfrentamos hoje é devida ao poder reaccionário do estado. Chegámos a essa conclusão e o que aqui fazemos torna mais evidente a natureza exploradora do governo reaccionário. Hoje nós, mulheres oprimidas, privadas de ler e da escrever, também devemos lutar firmemente e ajudar a actual Guerra Popular de modo a que possamos derrotar rapidamente o estado reaccionário.”
As mulheres dizem-me que, de acordo com a tradição feudal, os pais arranjam a maioria dos casamentos — e os jovens não têm direito a escolher o marido ou a mulher. Dizem-me que, em geral, as tradições discriminam as mulheres. Mas agora, com a expansão da Guerra Popular, as coisas estão a começar a mudar. Uma jovem que aparenta ter pouco mais de 20 anos explica como as novas ideias se começam a enraizar:
“Há conflitos na família porque às vezes há compreensão desigual. Se os pais entendem as coisas, é fácil. Mas se não, é difícil para uma mulher participar na Guerra Popular. Mas hoje, nesta aldeia, toda a gente participa. Só há duas ou três casas que não participam. Nós juntámo-nos à revolução quando chegámos à conclusão que toda a gente deveria ser igual e unir-se para o bem-estar do povo. Os maridos também estão agora a começar a fazer trabalhos que antes nunca fizeram, como cozinhar, lavar pratos e tomar conta das crianças.”
Pergunto às mulheres se me deixam tirar fotografias. A princípio parecem um pouco retraídas à ideia, mas depois fazem-me grandes sorrisos e dizem que sim.
Enquanto tiro as suas fotografias não posso deixar de pensar quão bonitas são estas mulheres — as suas caras e todo o seu modo de estar no mundo. Estive no Nepal tempo suficiente para ver muitas outras mulheres pobres, primeiro na cidade, mas depois também enquanto viajávamos pelo campo. A minha máquina fotográfica tinha captado imagens de vendedoras agachadas ao lado de pilhas de legumes ou de quinquilharias turísticas. Tinha dado rupias às mulheres que pediam nas ruas com os seus filhos. No campo, cruzei-me com camponesas que arrastavam pesadas cargas por trilhos de montanha acima. Vi as faces cansadas de mulheres a acender o fogo assim que o sol começava a sua ascensão.
As mulheres nesta aldeia são, sem dúvida, tão pobres e passaram pelo mesmo, ou até talvez mesmo mais, sofrimento e pobreza que as pessoas que vi fora desta zona de guerrilha. Mas as caras destas mulheres têm uma expressão muito diferente. Fora das zonas de guerrilha as mulheres olhavam-me com olhos cansados. Aqui, as mulheres erguem as suas cabeças de uma maneira confiante, orgulhosa; o movimento dos seus corpos parece menos pesado. Parecem felizes e ao mesmo tempo, totalmente sérias. E acima de tudo, irradiam uma verdadeira sensação de esperança. O seu optimismo e a visão de todo um futuro novo transparecem nas suas palavras. O seu ódio ao inimigo gera o olhar firme dos seus olhos. A sua convicção na revolução dá-lhes uma confiança física no modo de se movimentarem. É a mesma presença e qualidade humanas que tenho sentido quando contacto os camaradas do partido e os guerrilheiros do Exército Popular.
Uma comunidade de mulheres e crianças
Chegamos tarde a outra aldeia e somos levados a uma casa na montanha, entre florestas densas e campos terraplanados. Entramos para um quarto no segundo andar, atravessado pelos últimos raios de sol do dia. Várias pessoas já se juntaram e um jovem apoiante da Guerra Popular começa a falar-me sobre a aldeia. Só tem 18 anos de idade e, ao contrário da maioria das pessoas que irei encontrar no campo, fala inglês muito bem. Informa-nos que está a estudar medicina para assim poder servir os camponeses. A primeira coisa que me diz é sobre alguns dos mártires que morreram nesta zona.
“Rawati Sapkot tinha 25 anos, era casado e tinha um filho e uma filha, quando morreu em 1998. Estava no Exército Popular há um ano e meio quando foi morto por um comandante de polícia num enfrentamento na floresta. Quatro guerrilheiros foram atacados por cerca de uma dúzia de polícias e Rawati e um outro membro da brigada foram mortos.”
“Bhim Brsed Ssarma tinha 20 anos, terminara recentemente a escola secundária e era casado quando foi morto — num outro enfrentamento com a polícia. Neste incidente, 11 guerrilheiros foram atacados por mais de 100 polícias e todos menos Ssarma conseguiram escapar. Só estava no Exército Popular há três meses quando morreu.”
“Sabida Sapkot tinha 21 anos e terminara recentemente a escola secundária quando se tornou uma mártir. Teve de desafiar a família para se juntar ao Exército Popular e depois de entrar para a clandestinidade nunca mais viu a família, porque não aprovavam o que ela estava a fazer.”
“Binda Sharma, uma camarada de 25 anos, morta em 1998, também teve de desafiar a família para se juntar ao Exército Popular. O seu marido não apoiava — e ainda não apoia — a Guerra Popular e, na realidade, agora trabalha como detective policial em Katmandu. Durante mais de seis anos, Sharma tinha feito parte desse casamento arranjado. Mas um dia, após começar a trabalhar com o partido local, fugiu e a juntou-se ao Exército Popular.”
O jovem começa então a falar sobre como a Guerra Popular se tem desenvolvido nesta zona. Diz:
“Há 60 a 70 famílias nesta aldeia e cerca de 80 por cento apoiam a Guerra Popular. Duas semanas antes do início, foi morto um polícia e nessa altura a polícia prendeu 70 pessoas. Toda a aldeia foi invadida por mais de 150 polícias das forças especiais. Um polícia foi morto e, no dia seguinte, a casa em que estamos foi invadida. A polícia atirou seis vezes para o ar e as pessoas revoltaram-se. A polícia atacou muita gente com paus e duas pessoas desta casa foram presas. Cinco dias depois invadiram toda a aldeia. Andaram de casa em casa à 1:00 da manhã. Foram presas desde crianças com apenas 9 ou 10 anos até pessoas com mais de 70 anos. A polícia entrava e agarrava as pessoas e levava-as para o posto da polícia local. Homens-polícia revistaram as mulheres. No total, cerca de 60 a 70 pessoas foram presas e foram todas acusadas de matar um polícia. Na realidade, nessa altura, esse polícia ainda só era dado como ‘desaparecido’ — só depois ele foi encontrado morto. Isto aconteceu há mais de três anos e 15 intervenientes neste incidente ainda estão presos, sem nenhum julgamento.”
“Tudo isto influenciou muito as pessoas na aldeia e fê-las grandes apoiantes da luta armada contra a polícia. Quando a Guerra Popular começou houve aqui muita actividade — incluindo cartazes de parede, distribuição do comunicado do partido, e desfiles com tochas. Entre 15 e 20 pessoas entraram para a clandestinidade e algumas foram apanhadas pela polícia na primeira semana. Agora há cerca de 15 pessoas desta aldeia ainda na clandestinidade, incluindo o meu pai.”
“Em três anos de Guerra Popular houve uma actividade revolucionária constante nesta aldeia e as coisas avançaram. Houve acções contra elementos nefastos, muitos desfiles, muitos cartazes e pinturas de parede. O partido realizou reuniões de condolência pelos mártires e muitas reuniões de massas para explicar os objectivos da Guerra Popular e para edificar o apoio à revolução. As pessoas aderem ao partido e ao Exército Popular e, em retaliação, a polícia fez muitas rusgas e prendeu muita gente. Esta casa foi invadida cinco vezes.”
Cada vez mais aldeões entravam no quarto e o chão está cheio de gente apinhada. Outros, acumulados à entrada, esticam os pescoços para apanhar a conversa. Estão curiosos e interessados em conhecer uma revolucionária dos EUA — e ansiosos por falar sobre a Guerra Popular no Nepal. Uma mulher acabada de chegar diz que tem algumas perguntas para me colocar. Durante a próxima hora sou eu a entrevistada. Pergunta-me algumas coisas sobre mim — que idade tenho, quantos filhos, etc. Mas depressa vai ao que realmente quer saber: “Qual o estado da revolução nos Estados Unidos?” Falo-lhe do trabalho dos revolucionários nos EUA e das diferentes lutas levadas a cabo pelas massas. E está muito interessada em saber quais são as perspectivas da luta armada nos Estados Unidos. Quando descrevo o modo como os polícias norte-americanos brutalizam e assassinam as pessoas, a mulher pergunta imediatamente: “Foram organizadas acções contra a polícia?”
Agora o quarto fica ainda menor com a chegada de mais aldeões e decidimos fazer um intervalo para jantar e depois reunirmo-nos no andar de cima numa sala maior. Fazemos uma grande refeição de dal baht, guisado de peixe e batatas de caril. Depois toda a gente entra no que parece ser uma sala de armazenamento de cereais. Sentamo-nos em tapetes colocados ao lado de pilhas de milho colhido. Olho à minha volta, para o grupo de cerca de 50 pessoas e noto que são sobretudo mulheres, mais os seus filhos (que parecem ter todos menos de 12 anos), e alguns velhos. A mesma mulher que me tinha perguntado sobre os EUA começou a dizer:
“Gostaríamos de lhe agradecer por ter vindo e de expressar a nossa solidariedade. Enfrentamos muitos tipos de repressão. A razão por que estão sobretudo mulheres aqui nesta reunião é que todos os homens estão na clandestinidade, pelo que não puderam vir hoje à noite. E por causa da polícia não pudemos ter esta reunião durante o dia. Fomos violadas e espancadas na prisão. Não temos nenhuma alternativa senão responder ao lado do partido que luta contra esta opressão. Nós, as mulheres, trabalhamos nas nossas próprias pequenas parcelas de terra e, por causa da repressão dos reaccionários, temos uma vida muito dura.”
“Eles mataram uma criança com apenas cinco anos e um velho de 90 anos. Violaram uma menina de 10 anos e uma mulher de 70. Pilharam as nossas propriedades, incluindo as dos velhos. Invadiram casas e prenderam pessoas. Há tantos casos de pessoas que lutam pela justiça que são atacadas pela polícia. Nas eleições, obrigara-nos a sair e a votar, embora nós não quiséssemos. Há grandes violações dos direitos humanos. Homens que levantem a voz e exijam que o governo actue de acordo com a lei e a Constituição, são perseguidos. E as mulheres também estão a ser obrigadas a entrar na clandestinidade. Às vezes, os homens estão separados das mulheres durante um ou dois meses e a polícia chega e interroga e viola a mulher.”
“Por causa desta terrível situação criada pelo governo reaccionário, compreendemos, e fomos compelidas a compreender, a necessidade de pegar em armas e de combatê-lo, de levar a cabo uma vitoriosa Guerra Popular e de construir novas formas de poder popular. Não nos podemos libertar deste tratamento desumano e da repressão sem derrubar este governo reaccionário. E por isso apoiamos e aderimos à Guerra Popular. Uma maneira de apoiar a Guerra Popular é recolher alimentos e dinheiro, de acordo com a capacidade das pessoas, e enviá-los aos que estão na clandestinidade, que estão longe da nossa aldeia.”
“Embora estejam a matar a nossa gente, ao mesmo tempo o Exército Popular está a lutar e estamos esperançados que aumentarão ainda mais a sua capacidade de combate. Acreditamos firmemente que o assassinato dos nossos camaradas pela polícia não pode parar a Guerra Popular. O sangue dos mártires é o alimento da revolução. Compreendendo isto, estamos unidos e a nossa unidade derrotará certamente o inimigo. Acreditamos firmemente que a Guerra Popular triunfará. Em nome da associação de mulheres e da associação de camponeses, gostaríamos de lhe dar as boas-vindas e de lhe agradecer por ter vindo de tão longe conhecer as nossas vidas. Estamos entusiasmadas com a sua presença.”
Outros aldeões também se levantaram para falar, mas a reunião tem de terminar ao fim de cerca de uma hora porque as pessoas têm uma longa caminhada de volta a casa e, por razões de segurança, têm de andar sem qualquer luz. Prometem guardar segredo sobre a reunião para que o inimigo não saiba dela. Então, as pessoas fazem fila para me apertar a mão. Eu fico particularmente comovida quando algumas raparigas — que parecem ter cerca de 9 ou 10 anos — se põem propositadamente à frente dos adultos. Em vez de me darem a saudação nepalesa mais tradicional, “namaste”, com as mãos juntas como que em oração, elas levantam o punho num “lal salaam”, a saudação vermelha, e então apertam muito firmemente as minhas mãos com as suas pequenas mãos.