Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 26 de Fevereiro de 2007, aworldtowinns.co.uk

O petróleo, o gás e o reaparecimento da Rússia como potência mundial:

I – Um olhar mais alargado sobre a disputa Rússia-Bielorrússia

(Primeiro de uma série de cinco artigos.)

O Presidente russo Vladimir Putin provocou uma intensa reacção em Fevereiro na conferência internacional de segurança em Munique, quando acusou os Estados Unidos de tentarem estabelecer-se como “único centro de poder e único mestre” global e de “se imporem” aos outros estados. Muitos analistas interpretaram o seu discurso como um desafio directo aos EUA. Isto, tanto como qualquer outra acção russa recente, assinalou uma clara mudança na política russa que, desde a queda da União Soviética há uma década e meia atrás, tinha enfatizado sobretudo a cooperação com os EUA. A crescente autoconfiança exibida pela recém-reconfigurada classe dominante russa que agora consolidou o seu poder político não é alheia à disputa do mês passado entre a Rússia e a Bielorrússia que durante vários dias interromperam as remessas de petróleo para a Alemanha e a Polónia. Essa inequívoca manifestação da nova influência da Rússia desencadeou ondas de choque por toda a Europa, sobretudo na Alemanha, e também nos círculos políticos norte-americanos.

Esta disputa entre Moscovo e a antiga Bielorrússia soviética é a continuação de uma disputa que surgiu no final de 2006 quando a Gazprom, a gigante companhia nacional de gás russa, decidiu cobrar à Bielorrússia 105 dólares por cada 1000 metros cúbicos (pcm) de gás em vez dos 47 dólares que Minsk tinha estado a pagar. Fornecer outras nações e países com energia barata foi uma das formas como a União Soviética os manteve sob seu domínio durante a Guerra Fria. Porém, isso está a mudar agora que a Rússia substituiu o capitalismo de estado disfarçado de socialismo pelo capitalismo de mercado livre ao estilo ocidental e se tornou mais integrada na economia imperialista mundial. Essa disputa terminou quando os dois lados concordaram num preço de 100 dólares. Mas, alguns dias depois, Moscovo impôs uma taxa de exportação de 180 dólares por tonelada de petróleo vendido para a Bielorrússia. Também disse a Minsk que em 2011 dissesse adeus definitivo à energia mais barata porque, por essa altura, a Rússia quer cobrar o preço integral de mercado de 230 dólares pcm pelo gás. Em vingança, a Bielorrússia impôs uma taxa de trânsito de 45 dólares por tonelada ao petróleo russo que atravessa a Bielorrússia por terra no braço norte do oleoduto Druzhba (Amizade), rumo à Europa. A Rússia, como resposta, em vez de pagar, desligou o fluxo de petróleo, interrompendo o fornecimento da Alemanha, da Polónia e de alguns outros países da Europa de Leste. Isto enfureceu os países europeus. Moscovo respondeu que tinha sido forçada a cortar o petróleo, alegando que a Bielorrússia estava a desviar ilegalmente petróleo, presumivelmente em compensação das taxas que a Rússia se recusava a pagar. Três dias depois, a Bielorrússia alegou que tinha sido obtido um “compromisso” não especificado e que tinha sido levantada a taxa de trânsito.

Por quê esta disputa? Não é surpreendente que surja uma disputa a propósito da energia numa situação mundial em que a apropriação e o controlo desses recursos representam um importante papel no moldar de intensas crises políticas. Mas a Bielorrússia tem sido um dos antigos países soviéticos mais leais à Rússia. Além disso, tem estado sob pressão da Europa e sobretudo dos EUA por não permitir a ascensão de elementos pró-ocidentais. O Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, dirige o país ao estilo da era soviética, com uma economia controlada centralmente, beneficiando da ajuda do gás russo barato. A Bielorrússia tem enchido os seus cofres com milhares de milhões de dólares por ano, revendendo produtos refinados do petróleo russo isentos de direitos aduaneiros.

Alguns analistas ocidentais têm-se centrado na irritação russa com esse aproveitamento e falam na antipatia pessoal de Putin para com Lukashenko. Certamente que as relações políticas entre Moscovo e Minsk merecem alguma análise política. Mas o que é determinante e mais importante de um ponto de vista global não é a relação particular entre os dois países mas a nova estratégia que a Rússia adoptou.

Numa disputa semelhante ocorrida o ano passado, a Rússia desligou durante algum tempo o gás para a Ucrânia, provocando a interrupção do abastecimento à Itália, à Áustria e à Hungria. Essa foi a primeira vez que tal aconteceu desde os anos oitenta, quando a União Soviética assinou pela primeira vez importantes contratos com os governos europeus. O conflito com a Ucrânia teve um sabor mais político, uma vez que a subida de preços também reflectia o descontentamento de Moscovo com a inclinação da Ucrânia para a União Europeia e a Nato após a chamada Revolução Laranja, organizada pelo Ocidente em 2004 e que levou ao poder em Kiev o Presidente Viktor Yushchenko. Nessa altura, a UE acusou Putin de estar nitidamente a usar a energia como arma política. O vice-presidente dos EUA Dick Cheney declarou que a Rússia estava a usar o gás e o petróleo como “instrumento de intimidação e chantagem”.

Porém, a súbita interrupção do fornecimento subsidiado de energia da Rússia não se limita a países cuja liderança desaprova. Além da Bielorrússia, já negociou preços mais elevados para o gás natural com a Geórgia, o Azerbaijão, a Arménia e a Moldávia, por vezes depois de ameaças e cortes à medida que se aproximavam os prazos finais. Esta tendência não vai terminar tão cedo.

Como dizia Claudia Kemfert, directora da divisão de energia do Instituto Alemão de Investigação Económica: “É claro que estes problemas que a Rússia está a ter com os seus vizinhos não vão desaparecer” (International Herald Tribune, 9 de Janeiro de 2007). A Rússia pretende alargar essa política a outras antigas repúblicas soviéticas que agora são independentes mas ainda estão ligadas à rede de gasodutos e oleodutos da Rússia. Espera-se que o Kremlin continue a aumentar os preços até que o preço integral de mercado (ou algo perto disso) seja atingido em todas as suas vendas internacionais de hidrocarbonetos. Estes novos acordos gerarão milhares de milhões de dólares de rendimentos adicionais para o gigante nacional russo da energia, Gazprom, bem como para as outras empresas petrolíferas estatais e privadas da Rússia.

Uma nostalgia pelo poder da era soviética?

Alarmadas com as movimentações da Rússia, muitas grandes potências ocidentais acusam Putin de nostalgia pelo poder da era soviética e de tentar recuperar esse poder através de “agressivas tácticas” económicas. Isto é hipócrita da sua parte, e também uma visão demasiado simplificada, porque põe as movimentações russas num contexto demasiado restrito.

O socialismo tinha acabado em 1956, muito antes do colapso da URSS, no momento em que a ditadura do proletariado foi derrubada sob a liderança de Nikita Khrushchev. Embora as formas do socialismo (a propriedade estatal, o partido dirigente, etc.) se tenham mantido durante mais de três décadas depois disso, elas eram uma concha esvaziada cujo verdadeiro conteúdo era o lucro no comando, uma nova burguesia exploradora centrada no estado e a transformação da URSS numa superpotência imperialista. Embora inicialmente o bloco soviético tenha conseguido disputar aos EUA a supremacia mundial e mesmo simular ser uma alternativa ao domínio ocidental no terceiro mundo, ao mesmo tempo que impunha a sua própria forma de neocolonialismo e exploração, acabou por não conseguir unir o seu bloco devido a uma profunda crise política e económica. As formas económicas e políticas do social-imperialismo (socialismo nas palavras e na forma, capitalismo monopolista – imperialismo – nos actos) tinham chegado aos seus limites. Seguiu-se um período de instabilidade e conflitos agudos entre diferentes sectores dos velhos e novos capitalistas.

Embora uma análise de fundo ao colapso do bloco de Leste esteja fora dos limites deste artigo, algumas das suas fraquezas económicas são aqui particularmente pertinentes. A URSS e o seu bloco só conseguiram erguer um enorme poder militar contra os EUA e o seu bloco, na sua disputa pelo domínio mundial, com medidas que acabaram por ser a causa do seu fim. A proporção do investimento nas forças armadas e em armamento na URSS, em comparação com a Europa Ocidental e os EUA, minou a economia e mostrou ser impossível de manter. Os subsídios soviéticos aos bens (incluindo a energia) no seu bloco, necessários para o ajudar a manter unido, eram uma outra característica que em última instância ajudaram à queda do império soviético.

Depois de o campo soviético se ter desfeito e de os países da Europa de Leste terem começado a inclinar-se para os imperialistas ocidentais e para a aliança militar da Nato, aqueles que dentro da classe dominante imperialista russa estavam a favor de uma economia capitalista de estilo ocidental assumiram o controlo, numa tentativa de se salvarem do fracasso total. (Entretanto, os imperialistas ocidentais, esperando subjugá-los, impunham e forçavam mesmo esse estilo sobre eles.) Durante a era Yeltsin, a classe dominante russa ficou ainda mais desorientada e parecia estar a render-se aos imperialistas norte-americanos e ocidentais. Mas, nos últimos anos, as potências ocidentais ficaram alarmadas com a possibilidade de reconstrução de um bloco de países sob liderança russa. Quase indubitavelmente, teria uma dimensão muito menor que durante os dias da URSS mas, dada a actual situação mundial e dependendo de que direcção tomasse, mesmo esse desenvolvimento mais limitado poderia representar um problema para os imperialistas norte-americanos e para os seus próprios planos de consolidação e reforço do seu controlo como única superpotência do mundo.

Dois factores contextuais em particular tornam esta possibilidade particularmente inquietante para os EUA. O primeiro é o aparecimento da Europa como gigante económico capaz de competir economicamente com os EUA, embora militarmente ainda seja um anão. A Europa está longe de ser uma força homogénea ou consolidada, mas as possíveis alianças com uma Rússia militarmente muito desenvolvida poderiam ser uma ameaça à posição dominante dos EUA. Em segundo lugar, há a desastrosa guerra dos EUA no Iraque que está a minar a sua posição política e a manter presas as suas forças militares. Isso pode ser a principal razão por que a Rússia está a acelerar e a tentar agarrar esta oportunidade para tirar o maior partido desta situação.

(Continua em: II – A nova estratégia económica da Rússia)

Série: O petróleo, o gás e o reaparecimento da Rússia como potência mundial
I – Um olhar mais alargado sobre a disputa Rússia-Bielorrússia
II – A nova estratégia económica da Rússia
III – Os esforços de Putin nos últimos anos
IV - O gasoduto do Norte da Europa e o seu papel
V – Conclusão

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