Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 31 de Agosto de 2009, aworldtowinns.co.uk
Bhopais nucleares para o povo indiano?
Em meados de Julho, a Secretária de Estado Hillary Clinton foi à Índia com uma agenda mortífera. A Índia temia uma alteração das suas relações com os EUA com o novo governo de Obama. Além disso, com a visita de Clinton a ocorrer apenas dias depois de a reunião do G8 – um grupo de 8 países desenvolvidos do mundo que inclui os EUA – ter reafirmado um compromisso de não-entrega de tecnologias de enriquecimento e reprocessamento nuclear a países não signatários do Tratado de Não Proliferação Nuclear, a Índia, não signatária desse tratado, pode ter pensado ter razões de preocupação.
Mas Clinton informou desavergonhadamente o mundo: “Nós acabámos de concluir um acordo nuclear civil. Se tudo for feito através de canais adequados e salvaguardado, então ele é apropriado.” (india-server.com/news/hillary-clinton-nuclear-deal-will-be-9284.html). A Índia continuava a ser um “parceiro global”, disse ela, e os dois países iriam prosseguir com os acordos sobre questões militares iniciados por Bush (a venda de aviões e tecnologia militar no valor de milhares de milhões de dólares norte-americanos) e com os acordos nucleares civis.
Ela continuou: “Estou muito contente por o primeiro-ministro Singh me ter dito que os locais para dois parques nucleares para empresas norte-americanas foram aprovados pelo governo. Esses parques levarão avante os objectivos do acordo nuclear civil EUA-Índia, facilitando milhares de milhões de dólares em exportações de reactores norte-americanos e criando empregos nesses dois municípios, bem como gerando energia muito necessária para o povo indiano.” Os dois locais têm uma “área significativa” e zonas tampão florestadas que permitem uma futura expansão (Frontline, 1 de Agosto de 2009, tni.org/detail_page.phtml?act_id=19764). Situam-se no Andhra Pradesh, um estado indiano onde os maoistas lideram as massas numa guerra popular que está frequentemente em conflito agudo com a usurpação de terras tribais pelo governo indiano, e no Guzarate. Nos dois estados, o sentimento antigovernamental é elevado entre os pobres e oprimidos.
A sua visita teve uma escassa divulgação na imprensa ocidental. Na Índia, as notícias sobre a visita de Clinton foram muitas e controversas. Por um lado, os industrialistas indianos (como Ratan Tata) salivaram perante a possibilidade deste novo acordo. Por outro lado, as forças antinucleares prometem uma luta dura e juntaram-se à secção indiana da Campanha Internacional para a Justiça em Bhopal (ICJB) para protestarem contra esse acordo. Elas estão furiosas com a exigência norte-americana de reintrodução de uma lei indiana de protecção das empresas norte-americanas contra a responsabilização por futuros desastres como o da fuga de gás venenoso em Bhopal há 25 anos.
Em 1984, uma fábrica de produção de pesticidas, propriedade da empresa norte-americana Union Carbide, despejou uma nuvem de 42 toneladas de substâncias químicas tóxicas no ar da cidade densamente povoada de Bhopal. Das 800 mil pessoas que moravam na cidade, 8 a 10 mil morreram num período de 72 horas. Cerca de 300 mil ficaram doentes. Desde então, pelo menos 25 mil pessoas morreram de causas relacionadas com o gás.
A zona mais atingida foi o bairro pobre junto à fábrica. A maioria das vítimas eram pessoas pobres vinda do campo que se tinham mudado para a cidade à procura de trabalho. “Muitas pessoas – sobretudo crianças e velhos – morreram nas suas camas quando o gás entrou nas suas casas. Outras, incluindo mulheres que abraçavam bebes, fugiram, mas apenas para caírem na rua. Muitas foram encontradas mais tarde, amontoadas, doentes e agonizantes às portas da cidade. Manadas de bois jaziam mortos e os cadáveres de cabras enchiam as bermas das estradas onde antes vagavam. As folhas das árvores ficaram amarelas e enrugadas – as colheitas nos campos ficaram queimadas e cobertas por uma fina película branca.” (BBC, 28 de Agosto de 2002).
Hoje em dia em Bhopal, há níveis anormalmente elevados de cancro da pele, cancro pulmonar, cancro gastrointestinal, defeitos genéticos, problemas menstruais graves e taxas de abortos espontâneos sete vezes superiores à média nacional. Os sobreviventes sofrem de deficiente coordenação, perda de memória, cegueira parcial, paralisia e sistemas imunitárias deteriorados. Os seus bebés nascem muitas vezes com deformidades. Actualmente morre em média uma pessoa por dia, sendo que 100 mil sofrem de doenças crónicas. Diariamente, 4000 pessoas fazem fila nos hospitais da cidade de ajuda às vítimas do gás, com doenças que variam de pulmões afectados e graves problemas de coração a sistemas imunitários destruídos e doenças como a tuberculose (SNUMAG de 14 de Fevereiro de 2005).
Nenhum dos quatro sistemas de segurança estava em operação devido a reduções orçamentais na fábrica da Union Carbide. A empresa recusou-se a escutar os avisos feitos pela médica da fábrica. Ela queria que houvesse um plano de acção para a evacuação das pessoas que viviam na vizinhança em caso de fuga de gás e demitiu-se antes do desastre, em protesto contra a inacção da empresa.
Insistindo em que houve sabotagem, a Union Carbide (agora propriedade da empresa química Dow) tem-se recusado até hoje a aceitar a responsabilidade dessa tragédia. Em vez disso, negociou um acordo de 470 milhões de dólares, pagos ao governo indiano para redistribuição. Isto resultou numa miserável soma de 400 dólares para cada uma das vítimas.
O responsável pela Union Carbide nessa altura, Warren Anderson, foi preso pelo governo local e acusado de homicídio quando viajava para a Índia após o desastre de 1984. Mas, devido à pressão do governo dos EUA, foi imediatamente libertado sob fiança. Desde então, nunca se apresentou perante o tribunal. A Índia tem um tratado de extradição com os EUA, mas o governo indiano nunca manifestou nenhum desejo de desencadear os procedimentos de extradição contra esse responsável.
O desastre de Bhopal é o pano de fundo das negociações de Clinton com o governo indiano sobre as centrais nucleares que serão instaladas por duas multinacionais, a General Electric (com sede nos EUA e uma das maiores empresas poluidoras nesse país) e a Westinghouse Electric (maioritariamente propriedade da Toshiba). As empresas não querem perder as perspectivas de lucros, mas estão preocupadas com terem que pagar quaisquer tragédias que possam ter origem na sua busca do lucro. Estão preocupadas por estarem em desvantagem competitiva em comparação com as suas rivais, a francesa Areva e a russa Rusatom. Estas empresas já estão imunes de responsabilidades porque são consideradas “soberanas”, ou seja, completa ou parcialmente controladas pelos seus governos.
Embora os pormenores da lei de responsabilidade da Índia em relação a empresas norte-americanas não estejam ainda completamente trabalhados, um ministro indiano anónimo disse a um jornalista: “O projecto da Lei de Responsabilidade Nuclear está pronto. O que ela prevê é indemnizar as empresas norte-americanas para que elas não tenham que passar por outra Union Carbide em Bhopal.” (Frontline)
Num artigo publicado no tehelka.com (e reproduzido em poovulagu-english.blogspot.com/2009/07/time-bomb-we-await-hillary-clinton-was_29.html), a activista e jornalista Nityanand Jayaraman escreveu: “A Areva e a Rusatom já estão na corrida para o fornecimento de equipamento para centrais nucleares à Índia. Mas os intervenientes do sector privado, como a GE e a Westinghouse, dizem que não investirão enquanto a Índia não ratificar a Convenção sobre a Compensação Adicional de Danos Nucleares (CSCNL) e não instalar um regime civil nacional de responsabilidade nuclear. Eles não querem assumir nenhuma parte das responsabilidades que resultem de um desastre como o de Bhopal. Em vez disso, dizem eles, toda a responsabilidade em caso de catástrofe deve recair apenas na operadora indiana da central. Tal como o seu antecessor, o Presidente Obama está a pressionar a Índia para garantir que as Union Carbide do mundo nuclear não sofrerão nenhuma perda, independentemente do papel que o seu equipamento e tecnologia possam representar nas causas do desastre.” Jayaraman conclui: “Numa altura em que tanto os EUA como o governo indiano ainda nada fizeram para resolver as atrasadas responsabilidades do desastre de Bhopal, é inaceitável que se apresentem as multinacionais norte-americanas como as únicas verdadeiras vítimas do desastre de Bhopal e se dêem passos para que, no futuro, as imunizarem de responsabilidades.”
Que tipo de tragédia se pode esperar de um desastre nuclear em que as empresas norte-americanas não serão responsabilizadas?
O artigo do Frontline descreve os perigos associados à energia nuclear. “Cada fase do chamado ciclo do combustível nuclear, das minas de urânio ao fabrico do combustível, da operação e manutenção dos reactores nucleares à manipulação ou reprocessamento do combustível usado, está cheia de exposições a radiações ionizantes. A radiação é um veneno sem igual e de acção prolongada que, mesmo em pequenas doses, causa danos nos cromossomas – e consequentemente cancro e danos genéticos. A radiação não pode ser neutralizada ou destruída. E não há nenhum patamar abaixo do qual seja segura.”
“A produção de energia nuclear, bem como o transporte e manuseamento de materiais nucleares, expõe inevitavelmente os trabalhadores à radiação. Também está associada a emissões de rotina e a efluentes perigosos para o público na sua vizinhança. Deixa atrás de si resíduos que permanecem perigosamente radioactivos durante dezenas de milhares de anos. (...) O tempo de vida económica de um reactor nuclear é de apenas 30 a 40 anos. Mas permanece perigoso durante milhares de anos.”
Há vinte e três anos, a explosão nuclear e o incêndio de Chernobyl lançaram quatrocentas vezes mais materiais radioactivos que a bomba atómica lançada em Hiroxima. Esses materiais dispersaram-se até tão a norte quanto a Irlanda. Apesar dos heróicos esforços dos bombeiros cujas botas derreteram na confusão radioactiva enquanto eles combatiam as chamas, morreram 4000 pessoas na zona vizinha. Só na Ucrânia, as pessoas consideradas permanentemente incapacitadas pelo acidente de Chernobyl aumentaram de 200 em 1991 para 64500 em 1997 e 91219 em 2001 (International Herald Tribune, 25 de Agosto de 2009).
A visita de Clinton à Índia teve outros aspectos não menos significativos, como os acordos militares de importância estratégica para os EUA. Aqui apenas focámos um aspecto mais evidente. Os acordos de exportação de tecnologia nuclear dos EUA para a Índia, pelos quais a administração Obama está a fazer pressão, valerão 20 mil milhões de dólares em vendas. Os perigos e os danos potenciais que poderão infligir às vastas massas populares indianas são incalculáveis.