Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 24 de Novembro de 2014, aworldtowinns.co.uk

Por Susannah York

Cortar cabeças é uma forma eficiente de matar pessoas. É mais limpo. Espancar as pessoas até à morte significa que há muito sangue para limpar e cheira terrivelmente mal. Pelo menos esta é a opinião expressa por Anwar Congo e o seu bando de torcionários macabros que são as estrelas/actores do documentário premiado O Acto de Matar [The Act of Killing], realizado por Joshua Oppenheimer. Num filme surreal dentro do documentário, homens que mataram suspeitos de serem comunistas e outras pessoas às centenas de milhares após o golpe de estado patrocinado pela CIA em 1965 recriam a tortura e os assassinatos com orgulho e prazer. Eles continuam a ser considerados heróis pela elite do poder indonésio e desfrutam de impunidade. O efeito criado pela disjunção entre a brutalidade do que fizeram e o actual estatuto e vaidade deles torna este filme extremamente perturbador.

Os militares indonésios derrubaram o governo liderado pelo Presidente eleito Sukarno, que estava aliado ao Partido Comunista da Indonésia (PKI). Como parte do documentário, vários assassinos em massa fazem o seu próprio “filme” das cenas de execução e discutem as suas justificações para terem feito o que fizeram. Eles levam Oppenheimer e a câmara aos lugares onde o fizeram, a um edifício urbano a que brandamente chamam “o escritório” e a pequenas aldeias. À medida que recriam a sua história, eles explicam porque é que sentiram que tiveram de erradicar os comunistas, chamando-lhes pessoas “cruéis” que redistribuíram a terra aos camponeses e por isso mereceram morrer. Uma história oficial com que hoje em dia todas as crianças são bombardeadas na escola na Indonésia.

As estimativas do número de pessoas assassinadas vão de meio milhão a mais de um milhão durante o ano que se seguiu ao golpe de 1965, entre as quais líderes e quadros comunistas, sindicalistas, intelectuais, professores, defensores da reforma agrária, camponeses comuns, chineses étnicos, mulheres e crianças. Em muitas zonas da Indonésia, os cadáveres entupiram os rios. Muitas centenas de milhares de pessoas mais foram levadas para campos de concentração e aí passaram muitos anos.

Originalmente, Oppenheimer não tinha a intenção de que o seu documentário ficasse como ficou. Inicialmente, ele queria que as vítimas falassem sobre como esta história sórdida está tudo menos esquecida ou como passou desapercebida fora da Indonésia, mas o clima de repressão e medo que elas ainda vivem impediu-o de fazer isso. Os assassinos vivem à volta deles e o exército andou sempre a intervir, detendo a equipa e confiscando o equipamento e as gravações. Quando foi discutida com alguns defensores dos direitos humanos a questão de continuar ou não o documentário, Oppenheimer foi persuadido a falar aos vilões que se vangloriavam abertamente do seu papel. Sentiu que dessa forma já não seria hostilizado pelo exército, e que a natureza assassina de todo o regime seria revelada a todos os indonésios, e que alguma justiça poderia ser por fim alcançada.

Oppenheimer persistiu em sentir-se compelido a expor o que ele considerava ser um assassinato em massa a uma escala inimaginável. Estar na Indonésia fez-lhe recordar a Alemanha nazi, embora na Indonésia eles ainda estejam no poder. Muitos membros da família dele faleceram na Alemanha nazi e, quando era novo, as discussões familiares ao jantar evoluíam muitas vezes em torno de como este tipo de genocídio nunca deveria voltar a acontecer em nenhum lugar do mundo.

Após oito anos de pesquisa e entrevistas a 40 líderes dos esquadrões da morte que foram recrutados pelo Exército indonésio para ajudarem a levar a cabo o difícil trabalho de torturar e cortar cabeças, Oppenheimer conheceu Anwar Congo, um gângster e venerado fundador de uma organização militar de direita. Congo compreendia o que era um documentário. Ele tinha sido influenciado pelas perdulárias produções musicais e filmes de gângsteres de Hollywood, a partir das quais ele e outros aprenderam algumas das suas técnicas brutais. Ele e o bando dele estavam ansiosos por recriarem o que tinham feito diante de Oppenheimer e da equipa de filmagem dele. Eles consideravam que o documentário era uma peça histórica que poderia ser vista por toda a família. Muitos elementos da equipa de filmagem eram indonésios que se mantiveram anónimos com medo de vingança por fazerem este documentário.

Quando Oppenheimer viu algum cintilar de remorso nos olhos de Congo, decidiu que o filme não seria sobre todos os torcionários tal como inicialmente previsto, porque o que Congo estava a fazer com esta recriação era combater os pesadelos que o assombravam. O processo de feitura do filme confrontou Congo, e alguma consciência dos actos que ele tinha cometido começou a ter lugar mesmo que os outros se mantenham totalmente imunes a esses sentimentos, depois de terem sido permanentemente desumanizados pelos seus actos.

Ao longo do documentário, são discutidos diferentes assuntos entre Congo e os colaboradores dele e são organizadas diferentes reuniões com políticos importantes no poder que apoiam a recriação desta história e falam orgulhosamente do seu próprio papel histórico. Numa das situações, encontramos um jornalista que nega ter sabido que estes massacres estavam a decorrer, embora nessa altura ele estivesse a trabalhar por cima do “escritório”.

Congo e os amigos ridicularizam-no, dizendo que o que eles estavam a fazer era um segredo conhecido e todos os vizinhos sabiam, por isso como é ele podia não saber. Num outro momento das discussões, alguém levanta a questão de porque é que os filhos dos mortos não se vingam e alguém responde, com risada geral, porque nós os mataríamos a todos.

Num outro local, um elemento da equipa de filmagem conta a sua própria história. Quando ele tinha doze anos, o padrasto dele foi levado a meio da noite e ele e a mãe dele encontraram o corpo alguns dias depois. Ninguém os ajudou; eles eram evitados pelos vizinhos e só conseguiram enterrar o corpo numa vala rasa. Enquanto conta esta história, ele insiste repetidamente que isso não é uma crítica ao que Congo e o grupo dele fizeram. Mais tarde, esta pessoa representa o papel de vítima no filme dentro do documentário. A recriação da cena é tão realista que ele vai abaixo e implora-lhes que entreguem à mulher e aos filhos uma mensagem antes de ele morrer, pensando que o iam mesmo matar por ter contado a história do padrasto.

Oppenheimer pergunta aos torcionários se eles temem ser acusados de crimes de guerra ao abrigo das Convenções de Genebra. Um dos ajudantes de Congo nos massacres, Adi Zulkadry, responde negativamente, dizendo: “Os crimes de guerra são definidos pelos vencedores. Eu sou um vencedor”. Quando está a assistir ao seu filme de recriação, Adi fica preocupado por serem eles os que parecem cruéis, e não os comunistas. Os outros respondem que isto é a história deles, a verdade, mas Adi responde que demasiada verdade nem sempre é uma coisa boa. Ele avisa que este filme os vai fazer parecer maus.

Numa outra cena, Congo representa o papel de uma vítima que está a ponto de ter a sua cabeça cortada. Claramente perturbado por essa experiência, ele declara que não irá representar de novo um papel de vítima. Tendo experimentado a perda de dignidade, Congo pergunta a Oppenheimer se as pessoas que ele matou sentiram o mesmo que ele sentiu durante a recriação. Oppenheimer responde que eles sentiram muito pior porque sabiam que iam morrer.

Congo, que calcula que matou pessoalmente cerca de mil pessoas, é apenas um pequeno assassino entre muitos no massacre que ocorreu na Indonésia em 1965-66. Por trás dele estavam não só o exército indonésio e os gângsteres que eles recrutaram, mas também os maiores criminosos e assassinos de todos, o governo norte-americano. Os anos 1960 foram um tempo de lutas de libertação nacional em todo o mundo e Washington considerava que o Presidente Sukarno era um problema. Os EUA, então a aumentarem rapidamente a sua intervenção no Vietname, estavam impacientes por o substituir por um fantoche. O golpe militar do general Suharto foi aclamado na revista Time como “as melhores notícias para o Ocidente na Ásia em muitos anos”.

A fornecerem orientação e coordenação ao golpe de estado nos bastidores estavam os EUA e um bando de conselheiros da CIA ao exército indonésio. Os EUA forneceram dinheiro, armas (sobretudo armamento ligeiro para matar a curta distância) e equipamento de radiocomunicações para que o exército pudesse prosseguir eficazmente com os massacres em todas as 18 mil ilhas da Indonésia. A CIA forneceu uma “lista de mortes” com 5000 nomes de dirigentes do partido PKI, figuras proeminentes da oposição, pessoas de esquerda, dirigentes sindicais e intelectuais. À medida que os massacres progrediam, os conselheiros norte-americanos iam avaliando a caça ao homem, retirando os nomes dos mortos da lista.

Os EUA alegaram não ter nenhum conhecimento do que estava a acontecer durante esse ano. Mas o fornecimento de rádios é talvez o detalhe mais revelador. Eles serviram não só de factores de comunicação no terreno, como também se tornaram num elemento crucial numa vasta operação norte-americana de recolha de informações construída à medida que avançava a caça ao homem. A evidência mais irrefutável da atitude dos EUA talvez tenha sido o facto de eles e a Grã-Bretanha terem mantido o líder do golpe de estado, o General Suharto, no poder durante mais de três décadas.

Embora estes crimes tenham sido de certa forma obscurecidos pela vastidão da guerra norte-americana contra o Vietname, nas décadas seguintes, documentos e telegramas desclassificados ajudaram a revelar a mão sangrenta dos EUA na Indonésia. Ex-diplomatas seniores norte-americanos e agentes de CIA descreveram em longas entrevistas a forma como ajudaram Suharto no ataque ao PKI. “Foi realmente uma grande ajuda para o exército”, disse Robert J. Martens, um ex-membro da secção política da Embaixada dos EUA na Indonésia. “Eles [o exército indonésio] provavelmente mataram muitas pessoas, e eu provavelmente tenho muito sangue nas minhas mãos, mas isso não é tudo mau. Há uma altura em que temos de golpear duramente no momento decisivo”. Martens trabalhou sob a direcção de William Colby, então director da divisão da CIA para o Extremo Oriente e posteriormente director da CIA.

Embora não faça parte do documentário O Acto de Matar, vale a pena mencionar que dez anos depois do golpe de estado, as forças armadas indonésias desencadearam um outro banho de sangue com a invasão de Timor-Leste, matando cerca de 250 mil pessoas, um terço da sua população, uma vez mais com a ajuda do governo norte-americano. Os mais de 20 anos de regime militar indonésio em Timor-Leste foi um dos mais sangrentos e mais brutais da história do sudoeste asiático. (Ver o SNUMAG de 16 de Janeiro de 2006 [apenas disponível em inglês – NT] para uma descrição mais completa do papel do apoio norte-americano à invasão de Timor-Leste).

Como é que o massacre humano em 1965 de um milhão de pessoas pôde ocorrer ao longo de vários meses com tão pouca resistência, quando a Indonésia tinha uma das maiores organizações comunistas do mundo, que desfrutava de uma imensa popularidade entre os operários e os camponeses? O Partido Comunista da Indonésia era um partido não revolucionário, com uma estratégia de política parlamentar em coligação com forças nacionalistas como as do Presidente Sukarno. O PKI acreditava que podia haver uma transição pacífica para o socialismo e que o estado tinha um “aspecto popular” com Sukarno, visto como um herói que liderou a luta pela independência da Indonésia contra os holandeses. Sukarno declarou insensatamente que a sua base de poder era o PKI, o exército e as forças islâmicas, mas os EUA ajudaram a organizar a maioria do exército e dos islamitas para o derrubarem e para perseguirem e matarem os membros do PKI e dizimarem a sua base social entre o povo.

O PKI não compreendeu que as forças burguesas locais e os imperialistas mundiais nunca o deixariam chegar ao poder e que o via como uma ameaça aos seus interesses e ao controlo de um país geopoliticamente importante e também rico em petróleo e outros recursos. No contexto desses tempos, o derrube de Suharto foi uma declaração das intenções dos EUA de dominar a região e o mundo. Com uma errada compreensão do papel das forças armadas, de proteger o estado e esmagar qualquer tentativa de o tomar, os resultados devastadores foram que o partido e os seus apoiantes estavam incapazes de resistir e o povo pagou o preço.

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