Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 24 de Julho de 2006, aworldtowinns.co.uk

Os interesses por trás do ataque de Israel ao Líbano e os interesses dos povos

O ataque de Israel ao Líbano está a causar mortes e destruição horríveis. E pode vir a ser ainda pior. Anteriormente, Israel já tinha protagonizado duas grandes invasões e inúmeras incursões no seu vizinho do norte. Mas desta vez a guerra está a ter lugar num contexto e ao serviço de algo novo e ainda mais aterrador. Há todas as razões para temer que faça parte de uma campanha dos EUA de preparação para uma guerra mais vasta e ainda mais mortífera.

Enquanto milhões de pessoas em todo o mundo vêem horrorizadas as imagens televisivas do crescente número de vítimas civis – Jan Egeland, da ONU, disse que um terço dos mortos são crianças – os EUA desafiam abertamente qualquer noção de decência humana. Chegaram ao ponto de impedir despudoradamente que a ONU apelasse a um cessar-fogo. A Secretária de Estado de George Bush, Condoleezza Rice, justificou isso dividindo o globo em, de um lado, aqueles que querem esta guerra e, do outro, as “serpentes”, os “terroristas”, os “infra-humanos” do Médio Oriente, os moles dos europeus, ou pior, que a ela se opõem. Rice declarou desavergonhadamente que a guerra tinha que continuar até Israel atingir os seus objectivos – e que a paz só ajudaria “os terroristas”, permitindo-lhes escapar à sanha de Israel e rearmarem-se. Enquanto os EUA conduziam uma “diplomacia” devotada a silenciar o clamor pela paz, no plano militar apressavam-se a enviar para Israel remessas de mais bombas hi-tech de elevado poder explosivo. Em que tipo de mundo se tornou este, quando “Salvem as crianças!” passou a ser uma posição pró-“terrorista” e matar crianças é considerado aceitável desde que elas sejam descendentes de “serpentes” e por isso potenciais “serpentes” elas próprias?

O governo Bush declarou que estamos a testemunhar as ondas crescentes do 11 de Setembro de 2001. É a verdade – de pernas para o ar. Os acontecimentos que rodeiam o ataque de Israel ao Líbano têm pouco a ver com o ataque ao World Trade Center, esse permanente pretexto para uma pretensa “guerra ao terrorismo”. Pelo contrário, eles são na realidade um reflexo do “mundo pós 11 de Setembro”, de uma outra forma: são a consequência da decisão do governo Bush de obter um indisputado controlo norte-americano de todo o Grande Médio Oriente. Esta campanha começou com as invasões do Afeganistão e do Iraque e agora ameaça uma guerra contra o Irão, que é um importante alvo do presente ataque israelita patrocinado pelos EUA contra o Líbano. Os actos de Israel não podem ser entendidos sem se ter em conta este contexto.

Bush e os da sua laia tentaram enfiar o Hamas, o Hezbollah, a Síria e o Irão num mesmo pacote. Há ligações, mas elas não são as que alega o governo dos EUA. Esses regimes e organizações não estão ligados pela religião e, muito menos, por qualquer desejo de fazer guerra aos EUA. De facto, os seus interesses são muitas vezes opostos e eles realmente não querem estar ligados de modo algum. O que têm em comum é que o governo Bush os considera obstáculos à concretização da sua visão de um Médio Oriente norte-americano. Os pró-americanos críticos de Israel têm-se queixado que a descarada crueldade israelita só inspira ainda mais ódio entre os povos da região. Mas isso não entra de modo algum em contradição com o que os EUA e Israel estão agora a tentar obter com esta guerra. Com o alastrar dos ataques que até agora se tinham centrado na Palestina, os EUA estão a usar Israel para desferir ataques preventivos. O seu objectivo é debilitar e dividir aqueles que eles vejam como inimigos, impedindo-os de tirarem proveito do ódio aos crimes israelitas que diariamente inflamam ainda mais as pessoas e impor “o choque e o pavor” que desencorajem antecipadamente qualquer oposição organizada.

Num certo sentido, a situação é muito fácil de perceber. Muitos milhões de pessoas em todo o mundo ficam ainda mais furiosos com esta guerra de cada vez que vêem as notícias. Mas, ao mesmo tempo, a situação é complicada porque há muitos diferentes tipos de contradições que se desenvolvem a diferentes níveis e que se influenciam umas às outras. Há contradições distintas e muito reais que se desenvolvem a nível local, cada uma com a sua própria lógica particular e que, por sua vez, estão embebidas em camadas mais vastas de contradições regionais e globais que as moldam.

O Hamas e os palestinianos

A contradição entre Israel e os palestinianos continua a ser uma força motriz desta situação, mesmo com a maior parte da atenção do mundo focada no Líbano. Não foi nem o Irão nem a Síria, mas o próprio Israel que desencadeou esta situação, não só por ter negado durante décadas os direitos nacionais do povo palestiniano, mas também por agora ter aumentado deliberadamente a humilhação e a opressão dos palestinianos. O Hamas, devemos recordá-lo, vinha mantendo um cessar-fogo com Israel. Esse cessar-fogo chegou ao fim em Junho, após uma série de raptos israelitas de dirigentes do Hamas em Gaza e de pelo menos três massacres de civis em ataques de rockets israelitas. Os que gostam de alegar que a “segurança” de Israel estava em perigo, desejariam ignorar o facto de que não foi senão depois destes acontecimentos que o Hamas retomou o disparo dos seus pequenos mísseis caseiros contra Israel e levaram a cabo a operação que resultou na captura de um soldado israelita.

Apesar dos esforços do governo eleito do Hamas para chegar a acordo com Israel, em vez de o fazer, Israel tomou claramente a decisão de o esmagar. Sobretudo depois dos acontecimentos das últimas semanas, a outro nível, parece que a decisão de Israel de tentar eliminar agora o Hamas está ligada a considerações estratégicas mais vastas, como veremos.

O Hezbollah e o Líbano

A organização libanesa Hezbollah escolheu o momento dos ataques de Israel aos palestinianos para lançar uma operação transfronteiriça no norte de Israel, atacando uma patrulha e capturando mais dois soldados israelitas. Embora este conflito esteja ligado à questão palestiniana, envolve sobretudo uma questão diferente.

O Líbano nunca foi um estado unitário. A França criou-o originalmente recortando uma faixa litoral da Síria e, ao típico modo colonial, favorecendo vários grupos étnicos em relação a outros. A expressão “libanização” descreve qualquer país onde as rivalidades entre forças baseadas na etnia e na religião tornam impossível formar um governo nacional estável. Durante décadas, Israel e a Síria, às vezes em unidade e muitas vezes em conflito, tentaram ditar a vida libanesa. Em 1976, quando as organizações armadas palestinianas de libertação nacional e grupos libaneses estavam à beira de derrotar as forças inicialmente colocadas no poder pela França e depois ligadas aos EUA e a Israel, a Síria invadiu o Líbano para preservar a situação política então existente – a pedido norte-americano. Depois, em 1982, Israel invadiu-o para esmagar o movimento palestiniano baseado nas centenas de milhares de palestinianos que aí vivem em campos de refugiados e ao fermento revolucionário que atraía a Beirute gente de toda a região e do resto do mundo. A História nunca esquecerá os massacres nos campos de Sabra e Shatila, levados a cabo pelos aliados locais de Israel sob a supervisão de Ariel Sharon, então chefe do exército sionista.

Armado e treinado pelos Guardas Revolucionários Iranianos com a ajuda da Síria, o Hezbollah apareceu e cresceu rapidamente porque era que a única força que combatia os ocupantes israelitas depois de os palestinianos terem deixado de ter qualquer importância política no Líbano. Ironicamente, embora não apenas porque se baseia nos xiitas, uma das seis principais comunidades religiosas do país, como também porque é mesmo um dos expoentes mais vocais da ideologia islâmica xiita, a reputação do Hezbollah como organização de libertação nacional é um importante factor que o torna popular entre os libaneses de todos os grupos étnicos e religiosos, incluindo entre a esquerda e outras pessoas laicas.

Já há vários anos que a direcção do Hezbollah vem dando sinais da sua vontade em chegar a uma relação estável com Israel e os EUA e a abandonar sem resolução a questão palestiniana. (O líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, disse isso ao jornalista norte-americano Seymour Hersh numa entrevista à revista New Yorker, a 28 de Julho de 2003.) Controlando o sul do Líbano, na realidade o Hezbollah tem impedido os refugiados palestinianos de atacarem Israel através da fronteira. Durante uma década, mesmo durante os pontos altos da intifada palestiniana, os dois lados da fronteira estiveram muito sossegados, à excepção de confrontos secundários Hezbollah/Israel na zona das Quintas de Shebaa, ainda sob ocupação israelita. Os ataques de rockets do Hezbollah contra Israel mostram que eles são uma força militar muito mais bem armada e mais terrível que qualquer dos grupos palestinianos. Contudo, esses rockets foram mantidos nos armazéns até Israel começar a bombardear e a atacar o Hezbollah.

O Hezbollah capturou soldados israelitas e trocou-os pelos seus próprios prisioneiros várias vezes durante os últimos anos, mesmo depois de Israel ter retirado do Líbano em 2005, mas desta vez Israel reagiu desencadeando uma guerra. Isto mostra que os objectivos de Israel mudaram. E o Hezbollah? Alguns observadores, como o perito progressista norte-americano Juan Cole, disseram que ao decidir mostrar apoio aos palestinianos desta forma simbólica (afinal, eles podiam ter disparado as suas Katyushas), o Hezbollah estava a reagir à situação no próprio Líbano, basicamente tentando preservar e ampliar o seu poder dentro do governo libanês face ao ascendente israelita e à pressão dos EUA. Israel sentiu que isso era inaceitável. Mas, uma vez mais, mesmo os que consideram legítima a existência de Israel não conseguem apresentar factos para defender que a “segurança” do estado sionista estava em perigo por causa disso. Entre vários relatos semelhantes da comunicação social, o San Francisco Chronicle (21 de Julho) escreveu que as forças armadas de Israel tinham estado a planear e mesmo a ensaiar este ataque há pelo menos um ano. As agressivas incursões aéreas israelitas no Líbano durante os últimos meses pareciam querer preparar, ou talvez mesmo provocar uma guerra.

A Síria

Aqui temos que deslocar de novo o nosso olhar para ver as contradições a um nível mais elevado que aquele em que esta contradição em particular está imersa. A Síria atingiu o pico do seu poder quando era um estado cliente soviético. O seu jovem presidente Bashar Assad gostaria de sair da guerra fria e encontrar um lugar no novo mundo dominado pelos EUA, mas os seus pedidos têm sido rejeitados até agora, como se queixou Assad a Hersh. A ânsia de Assad para chegar a um acordo com os EUA e Israel parece ser confirmada pelo facto indisputável de que a Síria se tem mantido silenciosa sobre a inalterada ocupação israelita dos militarmente estratégicos Montes Golã, ocupados em 1967.

Os serviços secretos sírios e norte-americanos têm trabalhado juntos e muito de perto desde 2001, quando Assad achou que poderia dar aos EUA informações sobre a Al-Qaeda como forma de chegar a um acordo mais vasto. Segundo Hersh, o anterior dirigente da CIA, George Tenet, protegeu o regime de Assad contra figuras do governo Bush que o queriam atacar. Mas, quando Assad se recusou a apoiar a invasão norte-americana do Iraque em 2003, ao contrário do seu pai que apoiou a invasão norte-americana de 1991, os EUA puseram o regime sírio na sua lista de alvos. Mesmo assim, embora Assad possa ter sentido que um apoio aberto à ocupação norte-americana do Iraque poderia significar o fim do seu regime, a Síria parece ter aceitado implicitamente a ocupação. Por exemplo, quando as forças armadas dos EUA entraram na Síria em Junho de 2003 e aniquilaram uma coluna de veículos – de civis sem ligação às figuras do regime de Saddam Hussein que os EUA alegaram estar a investigar –, Assad manteve o silêncio.

Também aqui, as alegações de que Israel se está a “proteger” a si próprio são uma mentira. Em Junho, os israelitas enviaram agentes que entraram no palácio presidencial de Assad, dizendo que o haviam feito para demonstrar a sua capacidade para o matar sempre que quisessem. Isso aconteceu antes da operação transfronteiriça do Hezbollah de que Bush quer culpar a Síria.

Os objectivos de Israel no Líbano e para além dele

Quando a França se voltou contra a Síria e se juntou aos EUA para exigir a retirada daquele país do Líbano, o muito debilitado e castigado regime de Assad concordou. Isso originou a chamada “revolução do cedro” e a formação de um novo governo libanês que Bush elogiou o ano passado como exemplo de como os EUA estavam a espalhar a “democracia”.

Mas isso foi o ano passado. Os EUA estavam satisfeitos por verem a Síria partir, mas queriam manter o Líbano libanizado, tal como se têm esforçado duramente em criar uma “política de identidade” baseada na religião no Iraque para conquistar aliados e minar qualquer oposição. Desde então, os EUA e Israel têm pressionado o governo libanês para desarmar o Hezbollah. De facto, essa é a principal exigência dos actuais ataques de Israel ao Líbano. A quantidade de hipocrisia envolvida é extraordinária. Em primeiro lugar, Israel exige que o Líbano implemente a Resolução 1559 da ONU que requer o desarmamento de todas as milícias – isto vindo dos sionistas que durante décadas desafiaram as resoluções da ONU para retirarem dos territórios que ocuparam em 1967. Em segundo lugar, Israel está a pedir ao governo libanês, que integra o Hezbollah, para enviar o seu fraco e dividido exército, em que muitos soldados e oficiais apoiam o Hezbollah, para “desarmar” (combater) a única força verdadeiramente combatente do país e capaz de oferecer resistência a Israel. Isso significaria tornar o Líbano num protectorado israelita.

As acções militares de Israel até agora realizadas tornam inconfundíveis os seus objectivos políticos. Israel afirma abertamente que, pelo menos por enquanto, quer expulsar a população xiita do Líbano ao sul do Rio Litani, uma zona agrícola muito povoada que nalguns pontos está a 20 quilómetros da fronteira. Isto tem como objectivo desembaraçar-se dos guerrilheiros através do terror e da deslocação da população da qual eles retiram o seu apoio, tal como os EUA tentaram fazer no Vietname. Os jornais libaneses noticiaram que meia dúzia de aldeias do sul haviam sido atingidas por bombas de fragmentação e de fósforo. Os aviões israelitas despejaram panfletos nas aldeias a avisar a população que toda a área estava prestes a ser pulverizada, mas, quando os aldeãos tentaram fugir, Israel bombardeou sistematicamente todos os veículos em movimento. Num dos piores incidentes do início da guerra, uma coluna de pessoas dirigia-se em camiões de caixa aberta para a cidade de Tiro. A artilharia israelita disparou sobre as mulheres e as crianças na parte de trás dos camiões. Depois, surgiu um helicóptero israelita que disparou rockets, matando 23 das 24 pessoas. A única sobrevivente foi uma menina de quatro anos com queimaduras em 70 por cento do seu corpo. Entre os outros incidentes semelhantes, está um ataque a um miniautocarro sobrelotado, também perto de Tiro, e inúmeros ataques de rockets a carros privados e a táxis apinhados de famílias.

Os bombardeamentos também visaram os sobrepovoados subúrbios xiitas nos limites meridionais de Beirute. Um comandante israelita anunciou que iriam destruir dez edifícios de vários andares no subúrbio residencial xiita de Dahaya por cada rocket disparado sobre a cidade israelita de Haifa. Israel alardeia que os seus ataques mostram que apoiar o Hezbollah significa a morte. Quando os refugiados foram acolhidos por aldeias e bairros predominantemente cristãos, Israel também os bombardeou. Entre outros objectivos, isto visava desencorajar as pessoas de acolherem quem fugisse do sul.

Os xiitas, que historicamente assumiram um papel menor nos acordos étnicos governamentais impostos pelos imperialistas no Líbano, são sem dúvida a maior comunidade do país e provavelmente chegam a metade da sua população. (Há décadas que não há um recenseamento, porque isso revelaria oficialmente que os grupos cujos líderes clânicos estão ligados directamente a Israel e ao Ocidente, e que obtiveram lugar cimeiros no governo com base no seu suposto estatuto maioritário, são de facto pequenas minorias em contracção.) Israel está a atacar não só o Hezbollah mas os xiitas em geral, de modo a marcar uma posição: não podem deixar que eles ameacem os arranjos de poder do país. Israel também visa especificamente os cristãos e outras comunidades. Por exemplo, o exército israelita destruiu as instalações das empresas libanesas de televisão e de telemóveis cujos proprietários são cristãos e muçulmanos sunitas, alegando que elas estavam a ser usadas para fazer “propaganda do Hezbollah”. De facto, o verdadeiro objectivo dos israelitas eram as imagens televisivas das atrocidades israelitas que aproximavam todos os libaneses e as redes de comunicações que mantinham o país unido.

Enquanto alegue que o seu objectivo é que o governo libanês envie o seu exército para tomar o controlo do sul do Líbano, Israel bombardeou até quartéis do exército libanês que não têm nada a ver com o Hezbollah. Também atingiu escritórios do governo e outras instalações em geral. Talvez o componente mais revelador da campanha de bombardeamento de Israel seja o visarem as infra-estruturas físicas e a economia do país. Os ataques aéreos contra pontes e estradas cortaram o sul do resto do país. Também atingiram estradas, pontes, o aeroporto de Beirute, todos os portos de mar, reservatórios de petróleo e fábricas por todo o Líbano, todos os camiões e outras máquinas móveis, incluindo ambulâncias. Cerca de 800 000 dos menos de quatro milhões de habitantes do país foram expulsos das suas casas. Isto mostra uma decisão de assegurar que quando Israel concluir, o país estará incapacitado e impotente. Quando Rice se encontrou com o primeiro-ministro libanês Fouad Siniora (pela lei libanesa, esta posição deve ser ocupada por um sunita), ela assegurou o “apoio” de Bush mas recusou-se a dar-lhe o apoio que ele pedia, rejeitando liminarmente o seu pedido de um cessar-fogo que impedisse o país de ser destruído. Como outros comentadores já mostraram, essa foi uma mensagem de gângster: colaborem connosco ou então...

Em suma, o objectivo imediato da guerra norte-americano-israelita é criar um Líbano completamente servil, pelo menos indirectamente, se não mesmo literalmente através de uma ocupação. Os comandantes israelitas não afastaram o cenário da ocupação, mas temem claramente ter que enfrentar o tipo de resistência prolongada que no passado não conseguiram derrotar, no Líbano e, claro, na Cisjordânia e em Gaza. Esse medo foi aumentado pelas dificuldades dramáticas que o exército israelita enfrentou nas duas principais batalhas terrestres com o Hezbollah. Israel sofreu o que fontes do exército chamaram de pesadas perdas ao tentar tomar uma aldeia chamada Maroun al-Ras, junto à fronteira. E fracassou no seu ataque inicial à principal cidade do sudeste do Líbano, Bint Jbeil. Os oficiais israelitas alegam que os seus tanques e monstruosas escavadoras militares não são suficientemente efectivas contra a guerra de túneis que o Hezbollah está a levar a cabo.

O Irão

As repetidas declarações de Bush que colocam na Síria a culpa pelos actos do Hezbollah iludiram muitos analistas sérios que não conseguem ver muita evidência de um grande envolvimento activo da Síria. De facto, a única acusação específica dos EUA é que a Síria tem sido um canal para os abastecimentos iranianos ao Hezbollah. Mas em vez de ser um sinal de que ele não entende o que os seus conselheiros lhe dizem, a insistência de Bush é parte importante do que realmente está a acontecer, tal como as acusações forjadas que Bush e Blair fizeram sobre as armas de destruição em massa de Saddam Hussein não foram um engano mas faziam parte daquilo que verdadeiramente se pode chamar de conspiração. O objectivo é isolar, paralisar e talvez destruir o regime de Assad como passo adicional para preparar a guerra contra o Irão. Uma bem informada análise de 24 de Julho do jornal New York Times dizia que o objectivo dos EUA era forçar a Síria a “distanciar-se” do Irão e cortar os abastecimentos ao Hezbollah. A Síria é o único estado aliado do Irão. O regime iraniano tem dito frequentemente que consideraria qualquer ataque à Síria como um ataque a si próprio – e isso seria muito decididamente o caso.

Algumas figuras políticas pró-Bush proclamam-no abertamente e “toda a gente” – toda a gente que estude seriamente a situação e não se limite a engolir a propaganda – sabe que é verdade: a crescente ameaça de uma guerra dos EUA contra o Irão é um enorme e provavelmente decisivo factor por trás dos actos de Israel.

O regime iraniano saudou ruidosamente a operação do Hezbollah. Também ele está a enviar uma mensagem. Depois de décadas de altos e baixos nas relações com Israel, com os mulás a receberem armas dos sionistas durante os primeiros anos do seu reinado e mantendo contactos e laços económicos mesmo em anos mais recentes, o regime iraniano gostaria de utilizar o ódio regional por Israel numa desesperada tentativa de assegurar a sua própria sobrevivência.

Essa fúria contra Israel, com os EUA a manterem-se por trás dele, e contra os protectorados norte-americanos que governam a maior parte do Médio Oriente, tem um enorme potencial. O Egipto, a Jordânia e as monarquias do Golfo são largamente vistos pelos seus próprios povos como neocolónias norte-americanas. Todos esses regimes têm muito a temer se uma febre nacionalista e uma atmosfera de resistência varrerem a região. Numa invulgar concentração ilegal no Cairo, os manifestantes levavam retratos do líder do Hezbollah, Nasrallah, ao lado dos de Gamal Nasser, o presidente egípcio considerado símbolo do nacionalismo árabe dos anos cinquenta. Incidentes semelhantes foram relatados noutros países, incluindo em Gaza onde os manifestantes levavam retratos de Nasrallah e de Yasser Arafat. Neste momento, no Médio Oriente, Nasrallah – um “terrorista” para Israel e os EUA – é muitas vezes mais popular que qualquer um dos preferidos do imperialismo norte-americano. Para os teocratas iranianos, os sentimentos anti-Israel e anti-norte-americanos do povo poderão não ser a arma que queriam, mas eles vêem o poder da utilização desse ódio como a melhor arma que conseguirão obter.

Em suma, os ataques de Israel ao Hamas e ao Hezbollah também são ataques secundários ao Irão e visam debilitar os dois grupos que poderiam causar dificuldades no caso de uma guerra desencadeada pelos EUA contra o Irão. Também é possível que a República Islâmica do Irão dê as boas-vindas a uma hipótese de mostrar aos EUA que tem uma influência armada na região e que pode retaliar.

A “frente única terrorista internacional”

Quaisquer que sejam as ligações que possam existir entre o Hamas, o Hezbollah, a Síria, os mulás do Irão e, segundo um importante responsável do Departamento de Estado norte-americano, a Coreia do Norte (!), elas não têm muito a ver com religião ou ideologias. O Hamas é uma organização sunita, uma ramificação da Fraternidade Muçulmana do Egipto. A Fraternidade foi financiada pela Arábia Saudita e encorajada pelos EUA para minar o regime nacionalista de Nasser e os comunistas. O Hamas recebeu muitos favores da polícia secreta israelita numa campanha contra a Organização de Libertação da Palestina. Tem laços com o Irão governado pelos mulás xiitas, mas provavelmente não há muita simpatia religiosa. O mesmo parece acontecer às relações do Hamas com o Hezbollah. Quanto à Síria, o pai de Assad sacrificou milhares de civis para derrotar uma insurreição da Fraternidade Muçulmana. No Líbano, a Síria aliou-se aos cristãos reaccionários contra os palestinianos. E quanto à Coreia do Norte...

Este último país, sobretudo, torna claro que a principal característica que todos estes regimes e grupos têm em comum é a preocupação que a sua sobrevivência seja incompatível com a visão do governo Bush de um globo oprimido pelos norte-americanos. Reveladoramente, o armamento que supostamente o Irão tem fornecido ao Hezbollah é sobretudo de tecnologia da era soviética, outro indício de que os EUA estão a tentar destruir uma ordem mundial que surgiu com a existência do rival bloco imperialista soviético. Quando os ideólogos de Bush gritam que este é o momento de avançar contra a “frente única terrorista mundial”, o que eles querem dizer é que não podem ficar à espera de desencadear uma guerra contra todas as forças organizadas que se coloquem no seu caminho em qualquer lugar do mundo. Nesta lógica do “tudo ou nada”, uma vez que esses potenciais inimigos podem ajudar-se uns aos outros, é melhor persegui-los a todos de uma vez. (O antigo líder da direita no Congresso norte-americano convertido em estratega imperial, Newt Gingrich, parecia ter isso em mente quando se entusiasmou com a perspectiva daquilo a que chamou de “3ª guerra mundial” poder vir a nascer do ataque de Israel ao Líbano).

A explicação para a crueldade e as selvagens ambições da campanha militar de Israel não pode ser encontrada apenas em Israel. Israel é apenas mais uma arma de destruição em massa do arsenal norte-americano. Os EUA criaram, armaram, financiam e controlam Israel com objectivos estratégicos que têm pouco a ver com a influência sionista nos Estados Unidos. O que está basicamente em jogo é o que já vimos no Iraque: os EUA estão determinados a transformar todo o Médio Oriente numa cadeia de neocolónias norte-americanas, países formalmente independentes mas sob o seu controlo económico, político e militar. O objectivo final não é apenas ficar com o petróleo da região e com as riquezas criadas pelos seus povos, mas mais que isso, usar esse controlo como pilar central de um sistema político global dominado pelos Estados Unidos que possa garantir – contra todos os seus rivais, mas também contra os seus povos – condições de rentabilidade para o capital norte-americano em todo o mundo.

Mas será que isso quer dizer que “o inimigo do meu inimigo, meu amigo é”? Em arrebatados debates a decorrer em blogues (por exemplo, na página internet do jornal britânico Guardian) e noutros lugares, gente do Médio Oriente e outras pessoas que se consideram opostas ao imperialismo dizem que face às realidades do mundo de hoje – com o que querem dizer, por um lado, o fracasso dos nacionalistas não comunistas como Nasser e, por outro, o fim da China socialista de Mao e a ausência hoje de um bastião revolucionário mundial – deveríamos fazer o que pudéssemos para apoiar Nasrallah e outros como ele.

O problema é que todos os principais actores nesta fase, em termos dos que representam papéis de relevo, são reaccionários e não conseguem representar até ao fim os interesses dos povos. A sua política reflecte o facto de serem exploradores cujos interesses são necessariamente estreitos porque estão enraizados em relações de clã, relações semifeudais e relações capitalistas dependentes do imperialismo. Ao mesmo tempo, o potencial das vastas massas do Médio Oriente a quem não é permitido falar, nunca foi mais claro. Esta é a contradição que precisa de ser analisada se quisermos que a grande tempestade, cujos ventos crescentes podem ser imediatamente sentidos, venha a mudar as coisas a favor dos povos.

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