Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 4 de Dezembro de 2006, aworldtowinns.co.uk

O filme Terra e a divisão religiosa da Índia

Deepa Mehta
(Foto: in.rediff.com)

Terra [Earth] é um filme poderoso e apaixonado feito em 1998 pela realizadora indo-canadiana Deepa Mehta.

O que o torna tão comovedor não é apenas a sua representação de um romance trágico mas que a história serve para ilustrar melhor o contexto de um dos mais aterradores acontecimentos da história humana e as suas consequências para as vidas de centenas de milhões de pessoas durante as décadas seguintes: a partição da Índia em Índia e Paquistão e, antes disso, a guerra civil entre hindus, sikhs e muçulmanos.

Mehta mostra poderosamente a dimensão desse acontecimento horrível através dos olhos de uma menina de sete anos e através da janela das relações entre um grupo de amigos íntimos de diferentes grupos étnicos que trabalhavam todos para uma família parse de Lahore, no Punjab, antes da partição Índia-Paquistão. Lahore faz agora parte do Paquistão. (Os seguidores dessa religião são chamados zoroastrianos na Índia e parses no Paquistão, uma vez que vieram originariamente da Pérsia no século IX, fugindo da perseguição religiosa depois da conversão ao Islão da maioria dos persas.)

Embora o filme já tenha oito anos e a história tenha ocorrido há 60 anos, o tema ainda está fresco e é pertinente nos tempos de hoje. Um tempo em que o mundo carrega o fardo da tragédia que está a acontecer no Iraque com a ocupação. Um tempo que tem testemunhado horríveis guerras civis nos Balcãs e em África.

O filme baseia-se num romance semiautobiográfico da novelista paquistanesa Bapsi Sidhwa, Cracking India [Dividindo a Índia]. Ela é parse e o livro dela foi publicado inicialmente com o título Ice Candy Man in India [O Homem do Gelo Doce na Índia].

A protagonista Lenny (Maia Sethna) é filha de uma abastada família parse. Alguns minutos depois do início do filme ela deixa cair um prato, que se parte em pedaços. Pensativamente, ela pergunta à mãe, “Será possível fracturar um país?”

Deepa Mehta (Foto: Amy Graves/WireImage.com)

A ama de Lenny é Shanta (Nandita Das), uma amável jovem hindu. Shanta é amiga de todos os outros empregados da família parse (o cozinheiro, o guarda do zoo, o jardineiro e o massagista). Eles eram uma mistura de hindus, muçulmanos e sikhs e reflectiam a sociedade indiana dessa altura. Eles vão regularmente ao parque local para falar e comer juntos. Lenny (ou Lenny-baby como os outros a chamam) aprecia realmente os piqueniques multiculturais. Dil Navaz, chamado Ice Candy Man (Amir Khan), é um muçulmano e o favorito de Lenny e fica cada vez mais apaixonado por Shanta. Mas ele não é o único. Hassan (Rahul Khanna), o massagista e também muçulmano, tem o mesmo dilema.

Esses bons tempos não irão durar. À medida que a situação política se intensifica e a sociedade é atormentada com a violência entre grupos étnicos, crescem as tensões dentro desse círculo de amigos. Os espectadores do filme testemunham o alastrar do medo pela cidade até que uma série de incidentes desencadeia um inferno de ódio e vingança.

Embora esses amigos se continuem a encontrar, a falar e a comer juntos, notam que o parque está a mudar. As diferentes comunidades religiosas, sikhs, muçulmanos e hindus, estão a isolar-se umas das outras. As piadas ofensivas e desagradáveis começam a aparecer, mesmo dentro desse pequeno círculo, e sob influência dos acontecimentos os antagonismos começam a desenvolver-se. Numa das cenas, Hassan toma uma posição ousada e atenciosa, opondo-se a essas piadas étnicas. Ele apela aos amigos que se defendam uns aos outros e resistam ao crescente fanatismo. O Ice Candy Man, uma importante personagem do filme, não toma uma posição firme e escarnece de tudo para evitar ser sério.

À medida que o ambiente geral muda, tendo por pano de fundo rumores alarmantes e tensões perigosas, Shanta dirige o seu afecto para Hassan e o seu amor floresce numa bonita e inocente cena que Lenny-baby também testemunha. Mas essa cena é justaposta às notícias dos assassinatos em massa na cidade de Gurdaspur, a 15 de Agosto, que mergulharam o país numa profunda crise, sobretudo em cidades etnicamente mistas como Lahore. Cada vez mais, Lahore torna-se palco de manifestantes que gritam palavras de ordem como “Zindabad Paquistan, Mordabad Hindustan” (Viva o Paquistão, Morte ao Hindustão). Milhares de famílias deixam para trás o seu modo de vida e os seus escassos bens à procura de outro lar.

O ponto decisivo nas relações entre esses amigos chega quando Ice Candy Man vai à estação de comboios e espera dar as boas-vindas à sua irmã. Em vez disso, quando o comboio chega de Gurdaspur, transporta os corpos de muçulmanos assassinados e quatro sacos cheios de peitos de mulheres.

Shanta vai dar as suas condolências a Ice Candy Man. Eles estão num telhado a assistir a uma turba que procura vingar-se de um muçulmano içado no ar a partir de dois veículos da polícia. Quando os bombeiros chegam ao local de um incêndio num bairro hindu, em vez de água, o que sai das suas mangueiras é gasolina. Era desse mesmo telhado que, antes de se terem incendiado todas as tensões étnicas, Ice Candy Man, Lenny e Shanta assistiam às coloridas festividades dos papagaios voadores da primavera. Mas, nessa noite, enquanto a cidade é sacudida pela fúria, Dil Navaz recebe outro choque quando Shanta rejeita o seu amor e o já vulnerável Ice Candy Man fica numa situação ainda mais dolorosa. Mais à frente no filme, os ciúmes de Ice Candy Man cruzam-se com a política à sua volta. E o espectador receia pelo que vai acontecer a seguir.

Cena do filme Water (Foto: in.rediff.com)

O filme expõe o papel dos políticos na divisão do país. No meio dessa trágica guerra civil, quando Nehru anuncia na rádio a independência da Índia – “Ao bater da meia-noite [15 de Agosto de 1947], enquanto o mundo dorme, a Índia despertará para a vida e a liberdade” – essas notícias não trazem nenhuma alegria ou entusiasmo a esses amigos, apenas uma profunda mágoa e mal-estar. Uma personagem pergunta o que é que a independência significa para as massas e diz vigorosamente: “Os políticos falam com línguas duplas, dão-nos alguma independência, ensopada no sangue dos nossos irmãos.”

A harmonia da vida de Lenny começa a romper-se à medida que se aproxima a data em que os britânicos abandonarão a Índia e eles se preparam para destruir o que fica para trás.

Nos momentos iniciais do filme, numa festa-jantar dada pelos pais de Lenny, rebenta uma violenta discussão sobre o futuro do país entre dois dos convidados, um homem de negócios sikh e um inspector da polícia britânica. A família parse tenta evitar o antagonismo na sua relação com o britânico e permanece calada enquanto o inspector declara que o povo é bárbaro e que precisa do domínio britânico. O homem de negócios responde furiosamente que os britânicos são os culpados da divisão do país. Ele argumenta que o povo saberia dar-se bem se os britânicos os deixassem em paz. Essa também é a perspectiva da realizadora, que ela explicou numa entrevista: “O inimigo dividiu e reinou, de facto, e depois partiu. Neste filme não há nenhuma nostalgia pelo raj [domínio] britânico.” (Entrevista a Maya Churi na página internet indieWIRE).

O filme distancia-se do mundo dos sonhos fantasiosos prevalecentes na maioria dos filmes de Bollywood e lida com a horrível realidade vivida pelas massas dos países oprimidos.

A própria Deepa Mehta nasceu em Amritsar, uma cidade na fronteira da Índia com o Paquistão. Isso deu-lhe um conhecimento por dentro dessa tragédia histórica. Desde 1975 que Mehta tem feito muitos documentários. Terra é o segundo filme de uma trilogia, depois de Fogo [Fire] e antes do recente e notável filme Água [Water]. Esses filmes revelam Mehta como uma das realizadoras actuais mais qualificadas e empenhadas. Ela enfrentou uma enorme resistência para fazer e para mostrar esses filmes. O Fogo provocou uma tempestade de controvérsia em toda a Índia. As organizações fundamentalistas hindus organizaram manifestações e atacaram os cinemas onde o filme passou por causa do seu conteúdo e do tema subjacente: duas cunhadas, ambas totalmente oprimidas pelos seus maridos, tornam-se amantes e fogem juntas da sua casa patriarcal. O filme ataca a tradição hindu de opressão das mulheres que está profundamente integrada nas retrógradas relações sociais da Índia. Por causa da oposição do fundamentalismo hindu, Mehta não foi autorizada a filmar Água na Índia. O filme Terra não gerou tanta controvérsia quanto os outros dois filmes, mas visava a estreiteza do pensamento religioso e expunha como as manobras políticas reaccionárias originam miséria e morte em larga escala. Mehta aponta os erros e a ignorância das massas e mostra como elas são encorajadas e usadas pelos governantes dos países imperialistas e pelos seus aliados locais.

Uma turba destrói o local de filmagens de Water (Foto: brightlightsfilm.com)

Mehta lida corajosamente com uma questão comum e complexa: porque é que pessoas que vivem juntas, aparentemente de uma forma honesta e feliz, de repente se voltam umas contra as outras. Ela descreve claramente os processos envolvidos nessa mudança. Mas não explora integralmente as alavancas que são puxadas e os botões que são premidos para alimentar esse tipo de discórdia entre as massas.

Como ela diz; “Qualquer que fosse a cena que filmássemos, ela afectava-me muito profundamente porque eu sei que tudo isso aconteceu. Fosse uma cena de amor, uma cena num comboio, ou o pequeno Lenny a dizer que era o seu aniversário e toda a gente demasiado ocupada a ler os jornais, ou um miúdo a dizer ‘A minha mãe foi violada e vocês querem jogar aos berlindes?’, todas essas cenas tiveram um profundo efeito em mim.” (Entrevista a Richard Philips, Agosto de 1999, página internet dos world socialists).

A partição da Índia

Em Agosto de 1947, os governadores coloniais britânicos de partida anunciaram a divisão do subcontinente indiano num Paquistão controlado pelos muçulmanos e numa Índia dominada pelos hindus e pelos sikhs. A partição foi organizada pelo governo trabalhista britânico com o apoio e a colaboração da Liga Muçulmana e do Partido do Congresso Indiano.

Pelo menos 11 milhões de pessoas – muçulmanos, hindus, sikhs e outros –, apanhados do lado “errado” das linhas divisórias, foram expulsos das suas casas. Mais de um milhão de pessoas foi massacrado e talvez sete milhões de pessoas tenham sido deslocados (11 milhões de muçulmanos, hindus e sikhs, segundo algumas estimativas) na maior e mais terrível deslocação de populações da história. Um grande número de pessoas foi morto no Punjab, que foi dividido em dois. Dezenas de milhares de pessoas morreram nalgumas semanas.

Esse foi o resultado claro de quase um século de domínio colonial britânico directo. A tensão entre a Índia e o Paquistão ainda hoje nos assombra a todos.

O filme Terra fala da política do mundo actual e Mehta não se afasta disso quando diz: “A política é imposta às pessoas. De certo modo, a política pode manipular-nos sem que estejamos sequer conscientes de estarmos a ser usados... Há muitas questões políticas obscuras sobre a partição que o poder britânico não quer trazer à luz do dia. Quando se sabe a verdadeira história da partição e as responsabilidades que estão ao colo dos britânicos, entende-se claramente porque é que é um assunto muito incómodo para eles. Geralmente a sua resposta é romantizarem Gandhi e Lord Mountbatten [o representante local do império britânico]. Isto é feito a uma dimensão tal que eu a acho bastante nauseabunda.” (Entrevista a Philips)

O filme de Mehta é uma lufada de ar fresco, uma valiosa advertência sobre as consequências do chauvinismo e da estreiteza de vistas religiosa e um testemunho da abordagem com princípios desta realizadora.

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