Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 26 de setembro de 2016, aworldtowinns.co.uk
Philip Bialowitz, que morreu a 6 de agosto de 2016, era o último sobrevivente conhecido dos prisioneiros de Sobibor, um campo de concentração na Polónia onde os nazis assassinaram mais de 200 mil pessoas, quase todas judias. Ele foi salvo de ser exterminado em 1943, com apenas 18 anos de idade, pela única revolta e fuga em massa bem-sucedida de um campo de morte nazi. No livro dele sobre essa revolta, fica claro que ele e os outros sobreviventes, e também milhões de outros judeus, não teriam vivido se não tivesse sido pela então socialista União Soviética e o seu Exército Vermelho. Este facto esteve claramente ausente dos obituários de Philip Bialowitz no The New York Times e no Der Spiegel, entre os únicos grandes órgãos noticiosos que noticiaram a morte dele, porque ele não se ajusta à narrativa sobre a II Guerra Mundial e o comunismo promovida pelos EUA e pelos seus atuais aliados.
O antissemitismo (ódio aos judeus) dos nazis tem eco nas declarações fanaticamente anti-imigrantes consideradas legítimas nos atuais debates políticos. Durante a maior parte da primeira década que eles estiveram no poder na Alemanha, iniciada em 1933, a retórica antijudaica dos nazis transformou-se passo a passo em atos concretos, mas não tudo de uma vez. A maioria das pessoas não percebeu – ou não quis acreditar – onde iriam levar os cortes aleatórios nas ruas das barbas de judeus ortodoxos e a destruição de lojas de judeus. Não foi senão na conferência do partido nazi realizada a meio de uma guerra mundial que estava a começar a correr mal para a Alemanha, em finais de 1942, que eles decidiram levar a cabo a “solução final” do “problema judeu” – o assassinato de todos os judeus na Europa.
Os nazis precisavam de uma vitória rápida sobre a União Soviética. Eles conceberam-na como o primeiro passo na impulsão deles para ultrapassarem a posição inferior no festim sobre os povos do mundo que as potências rivais tinham imposto à Alemanha depois da derrota dela na I Guerra Mundial. A Alemanha definiu os seus objetivos de guerra como a derrota dos “inimigos judaico-bolcheviques”. Os EUA e a Grã-Bretanha estavam ansiosos por ver a Alemanha esgotar-se a derrubar o socialismo (o “bolchevismo”) na URSS. Eles estavam pouco preocupados com o extermínio dos judeus e recusaram-se a fazer alguma coisa para o impedir, embora, como salienta Bialowitz, soubessem o que estava a acontecer nos campos onde as pessoas estavam a ser gaseadas até à morte.
Bialowitz escreve nas memórias dele: “Se as forças aliadas [os EUA e a Grã-Bretanha] simplesmente tivessem bombardeado as vias férreas que levaram milhões de pessoas para as câmaras de gás, poderiam ter salvado muitas dessas pessoas. Eu e outros prisioneiros desses campos rezávamos para que os aviões de combate que passavam por cima de nós despejassem bombas diretamente sobre nós. Sentíamos que mesmo que fôssemos mortos, as nossas mortes não teriam sido em vão porque pelo menos as câmaras de gás teriam sido destruídas.”
Para matarem milhões de judeus, os nazis não podiam basear-se apenas na força. Tiveram de enganar as pessoas e de usar as relações sociais, a maneira de pensar e os hábitos estabelecidos das suas vítimas. Eles designaram judeus considerados líderes da comunidade para gerirem os guetos onde os judeus foram encarcerados e usaram kapos judeus que trabalhavam com eles para chicotearem outros prisioneiros e imporem as regras deles. Eles mantiveram constantemente a esperança de que iriam poupar as vidas dos judeus que cooperassem com eles (o que virtualmente nunca fizeram). Bialowitz descreve os carregamentos de trens de judeus da Holanda levados para Sobibor. Foram bem alimentados no caminho e à chegada foi-lhes pedido que preenchessem cartões postais tranquilizadores para as famílias deles nas terras de origem. Depois foram obrigados a despir-se e levados para as câmaras de gás que lhes disseram ser chuveiros. Eles tinham fortes suspeitas de que seriam mortos, mas agarraram-se a uma pequena esperança – e por isso não quiseram arriscar a morte quase certa tentando lutar de mãos vazias contra os guardas bem armados.
A ameaça de morte não era suficiente para controlar toda a gente. Era também necessária a tortura, que também era um divertimento para os oficiais das SS (a polícia especial nazi) que administravam os campos, juntamente com a ajuda local (ou, no caso de Sobibor, os prisioneiros de guerra da União Soviética que concordaram em se tornar lacaios dos nazis e que receberam um treino especial para serem guardas). Mas mesmo isso não era suficiente. Bialowitz salienta a importância do sistema de punição coletiva. Por vezes, alguns prisioneiros numa brigada de trabalho conseguiam escapar. Mas se houvesse uma fuga organizada, os prisioneiros deixados para trás eram torturados e assassinados por não os terem impedido de fugir.
Os comboios que levavam entre mil e três mil judeus, provenientes principalmente da Polónia, chegavam a Sobibor várias vezes por semana. Por ser um adolescente saudável e trabalhar com o irmão dele na farmácia do campo, Bialowitz foi dos poucos prisioneiros que não foi imediatamente assassinado. Ele escreveu sobre a crescente convicção entre esse grupo de que tinham de se revoltar. As negras perspetivas de sobrevivência oferecidas pela revolta eram a única esperança que tinham, mas eles também sentiam a necessidade de morrer por um objetivo, desferindo todos os golpes que pudessem às SS e à máquina de morte nazi. Contudo, ao mesmo tempo, os laços que esses prisioneiros tinham forjado entre si fizeram com que Bialowitz e outros estivessem pouco dispostos a ser responsáveis pela vingança infligida a todos se qualquer um deles tentasse escapar.
Algumas dezenas de mulheres e homens prisioneiros, sobretudo jovens, decidiram que tinham de elaborar um plano para libertar de imediato toda a gente. Eles tinham razões para crer que os nazis planeavam encerrar o campo e sabiam que iriam ser todos mortos. Começaram a reunir-se em segredo, liderados por um prisioneiro mais velho chamado Leon Feldhendler. Eles tinham a esperança de que os resistentes, sobretudo os guerrilheiros sob a liderança do Exército Vermelho (nem todos os resistentes se importavam com os judeus), atacassem o campo, mas este estava cercado por campos minados. O irmão de Bialowitz começou a acumular morfina para que as mulheres prisioneiras que trabalhavam nas cozinhas pudessem envenenar várias dezenas de oficiais das SS que controlavam o campo, com sorte todos de uma só vez.
Então, ocorreu o que ele descreve como “um milagre”: dezenas de soldados judeus do Exército Vermelho que tinham sido capturados foram levados pelos alemães para o campo para serem exterminados. O seu líder, um tenente chamado Alexander “Sasha” Pechersky, era um revolucionário dedicado. Ele já antes tinha sido capturado e tinha escapado. Ele contou aos prisioneiros a vitória soviética na batalha de Estalinegrado – um momento decisivo na guerra – e as vitoriosas sabotagens e ações de toca-e-foge levadas a cabo pelos resistentes. Esse oficial do Exército Vermelho, o líder dos prisioneiros e outras pessoas elaboraram um plano que eles pensavam poder vir a ter sucesso. Os soldados do Exército Vermelhos fizeram tudo o que podiam para treinar os outros a lutar, e estavam prontos a desempenhar eles próprios o papel central na luta.
As SS tinham atribuído a esses prisioneiros trabalhos como o de revistarem as bagagens e as roupas das pessoas assassinadas para recolherem objetos de valor para o esforço de guerra alemão. Os conspiradores designaram pessoas das suas próprias fileiras para atraírem um a um os oficiais das SS para uma oficina, com a promessa de lhes darem um artigo de luxo como um casaco ou umas botas. Depois, outros prisioneiros apunhalavam cada um desses homens até à morte com ferramentas de trabalho e ficavam com as armas deles. Os trabalhadores da prisão batiam com as suas ferramentas para abafar o ruído. Eles conseguiram roubar com antecedência algumas armas e granadas. As mulheres que trabalhavam nas instalações alemãs roubaram munições.
O plano era acumular armas e, quando estivessem prontos, cortar os fios de comunicações. Depois marchariam até ao portão principal, fingindo ser uma brigada de trabalho. Os prisioneiros do Exército Vermelho usariam as suas capacidades russas para dizer aos russos que guardavam o portão que a União Soviética estava a ganhar a guerra, pelo que era melhor eles pararem de trabalhar para os nazis. Talvez alguns deles se juntassem aos rebeldes. Mas, independentemente do que acontecesse, iriam abrir caminho a tiro. A estrada que saía do portão era o único caminho possível para evitar os campos minados. Toda a gente naquela parte do campo – cerca de 650 pessoas em qualquer momento dado – ia sair.
Eles já tinham matado vários oficiais das SS e capturado pequenas armas e algumas armas automáticas quando um oficial das SS deu o alarme. Os conspiradores e outros prisioneiros agruparam-se. Os dois líderes “saltaram para cima de uma mesa à frente do pátio e apelaram a todos: ‘Irmãos! O momento do destino chegou. A maior parte dos alemães está morta. Ergamo-nos e destruamos este lugar. Temos poucas hipóteses de sobreviver, mas pelo menos morreremos e lutaremos com honra. Se alguém sobreviver, que seja testemunha do que aconteceu aqui. Têm de dizer ao mundo o que aconteceu neste lugar!’”
Todos os prisioneiros estão no pátio. Um grupo corre para o portão principal, outro para o depósito de armas. O principal oficial das SS emerge das instalações dele e começa a disparar à queima-roupa, matando pessoas às dezenas. Muitos prisioneiros ficam desorientados. Centenas deles dirigem-se à cerca, uma barreira tripla de arame farpado, e derrubam-na com escadas de mão que tinham preparado como medida auxiliar no caso de o portão deixar de ser uma opção.
Sob o fogo de metralhadoras, eles correm através dos campos minados. Muitos explodem com as minas, sobretudo os que iam à frente, o que torna possível aos que iam atrás conseguirem passar. Cerca de metade deles chega à densa floresta vizinha onde o campo estava escondido. Mas a maioria dos evadidos acabaria por ser capturada pelas equipas de busca das SS.
Para os sobreviventes, havia um outro tipo de campo minado – os camponeses, os resistentes e os desordeiros polacos antissemitas. Um grupo de evadidos que incluía Bialowitz e o irmão foi recolhido por uma família camponesas católica disposta a ajudá-los apesar do perigo que corriam – os nazis executaram pelo menos 704 pessoas na Polónia por terem ajudado judeus, escreveu Bialowitz. Depois de meses escondidos, eles emergiram para descobrir que os nazis estavam em retirada, mas as autoridades antialemãs que estavam a estabelecer um estado não iriam proteger os judeus. Eles viriam a ser salvos por soldados do Exército Vermelho que avançavam. Entretanto, Pechersky e outros camaradas juntaram-se aos resistentes pró-soviéticos e depois ao Exército Vermelho.
Sabe-se que 10 mulheres e 48 homens envolvidos na fuga sobreviveram à guerra. Todos os prisioneiros que não se juntaram à fuga foram mortos. O autor acabou por ir para os EUA, onde se tornou dentista. Embora mais tarde se tenha dedicado a “dizer ao mundo o que aconteceu neste lugar” e tenha considerado ser seu dever avisar para que “Nunca mais” houvesse um genocídio, a perspetiva dele foi obscurecida pelo seu apoio a Israel, cuja limpeza étnica e outros crimes contra os palestinos ele passa por cima em silêncio neste livro. A visão dele centrou-se em ser um lutador pelo que ele considerava ser o povo dele, ao contrário de outros sobreviventes do Holocausto cujo “Nunca mais” foi dirigido contra todas as injustiças. Como sionista de direita toda a vida, ele não estava disponível para parecer bondoso em relação à União Soviética. Isto na verdade dá credibilidade ao relato positivo que ele faz do papel da URSS e do seu Exército Vermelho.
Embora apenas cerca de uma dúzia de oficiais das SS tenha sido morta, o topo da liderança nazi ficou tão abalado com a vitória da insurreição de Sobibor que em poucos dias fizeram com que todo o campo fosse desmantelado e as suas ruínas escondidas debaixo de terra e asfalto. Cerca de um ano depois, centenas de prisioneiros em Auschwitz-Birkenau, o maior campo de morte, pegaram em machados e pedras, combateram os seus atormentadores e destruíram uma câmara de gás e um crematório antes de serem mortos. No gueto judeu de Varsóvia, onde os nazis mantinham muitos milhares de pessoas atrás de muros até que pudessem ser transportados para um campo de morte, a população revoltou-se, liderada pelos comunistas e outros combatentes da resistência, mantendo ocupadas durante um mês as SS e as tropas alemãs, durante um período crucial da guerra.
Durante todo esse tempo, as potências ocidentais continuaram a fazer pouco ou nada para ajudar aqueles que estavam a ser chacinados. Uma conferência cimeira norte-americano-britânica em abril de 1943 para discutir a situação dos refugiados judeus nem sequer discutiu o facto de ambos os países estarem a limitar o número de requerentes de asilo que deixavam entrar. Um proeminente enviado das forças da resistência pró-britânica na Polónia ficou tão amargamente desiludido que cometeu suicídio como forma de protesto. Ao decidirem que pouco podiam fazer pelos refugiados e nada pelos judeus nos campos de morte porque, disseram eles, isso dificultaria o seu esforço de guerra, os líderes norte-americanos e britânicos revelaram a natureza reacionária da guerra que estavam a fazer contra os seus rivais imperialistas. O facto de os EUA terem vindo a desempenhar um papel chave no estabelecimento do estado de Israel reflete simplesmente a continuidade do que motiva e continua a motivar todas as potências imperialistas: os seus próprios interesses imperialistas. Israel viria a tornar-se crucial na dominação norte-americana do Médio Oriente.
O sistema global do capitalismo-imperialismo que produziu o genocídio dos judeus é o mesmo sistema que hoje enfrentamos. Quando as forças dominantes numa sociedade declaram que as vidas de algumas pessoas não são tão importantes quanto outras, quando isto é amplamente aceite, mesmo que não por toda a gente, quando essas posições se tornam num elemento central que une uma nação à volta da sua classe dominante imperialista, fica estabelecida uma certa lógica e ficam violentamente abertas as portas para o inferno. Quando a policie remove o véu de uma mulher muçulmana em França, essa ação simbólica e legalmente aceite tem o mesmo conteúdo racista que as dos nazis a cortarem as barbas de judeus e dos ataques incendiários premeditados e ilegais contra os centros de refugiados por toda a Europa hoje. Os assassinatos policiais em massa de negros e outras pessoas nas ruas dos EUA devem ser entendidos como resultado de uma política em que as vidas dos negros não têm valor, já que os assassinos raramente são punidos. Onde pode conduzir essa lógica, nas condições de uma aguda crise social?
Embora seja errado pensar que todos os grandes partidos políticos ocidentais representam o mesmo programa político, ainda assim, de uma maneira ou de outra, e sob várias formas, as ideias potencialmente genocidas – de que o modo de vida desejado pelas pessoas de uma nação ou etnia real ou imaginada está em extinção devido à presença de outros – estão profundamente embutidas no chamado discurso político ocidental convencional. Veja-se o facto de os imigrantes, que fogem a guerras e outros pesadelos que estes países imperialistas e o funcionamento do sistema deles criaram, se estarem a afogar aos milhares no Mediterrâneo. Nenhum governo considera isto mais que um aborrecido problema político. Isto não é considerado absolutamente intolerável, uma emergência que exige uma solução imediata. A Conferência da Assembleia-Geral das Nações Unidas de setembro de 2016 emitiu uma declaração com promessas de “proteger os direitos humanos dos refugiados” mas não deu nenhum passo sério para salvar nenhuma vida, seja de pessoas em risco nos seus países de origem, seja daquelas em risco de se afogarem. Ocorreu em circunstâncias diferentes da conferência de 1943 que decidiu não ajudar os judeus em perigo, mas em última análise quão diferente foi, do ponto de vista moral?
Como diz Bialowitz, falando dos familiares dele, os judeus da Polónia que conseguiram chegar às linhas do Exército Vermelho foram salvos. No decurso da II Guerra Mundial, o Exército Vermelho salvou as vidas de 1,5 dos 4 milhões de judeus nos territórios ocupados ou invadidos pelos alemães, segundo o historiador Arno Mayer. Ao contrário dos outros principais países envolvidos na II Guerra Mundial, a União Soviética era então socialista, e não imperialista, como se tornou quando o capitalismo foi basicamente restaurado em meados dos anos 1950.
A história de Sobibor, e o seu contexto, o modo contrastante como as potências imperialistas e a União Soviética socialista viam os judeus na II Guerra Mundial, é um exemplo de dois sistemas sociais e duas perspetivas morais muito diferentes e opostas. Face aos já inaceitáveis horrores do mundo de hoje, e ao potencial para horrores ainda maiores que o sistema social hoje dominante contém, isso mostra que não temos de aceitar a maneira como é o mundo.
(A Promise at Sobibor [Uma Promessa em Sobibor], Philip “Fiszel” Bialowitz com Joseph Bialowitz, University of Wisconsin Press, 2010. Ver também o filme britânico de 1987 Escape from Sobibor [Fuga de Sobibor], disponível online e em DVD. Arno Mayer, Why Did the Heavens Not Darken [Porque Não Escureceram os Céus], Pantheon, 1988. Ver também o SNUMAG de 31 de janeiro de 2005.)
Reconstituição da evasão no filme Fuga de Sobibor