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Esta conferência de Raymond Lotta foi originalmente publicada em 17 partes entre 4 de dezembro de 2005 e 4 de junho de 2006 (n.os 25-33, 36, 38, 39, 42, 44, 46, 48 e 49) no jornal Revolution/Revolución, voz do Partido Comunista Revolucionário, EUA (revcom.us/strs/ em inglês e revcom.us/plcec/ em castelhano), como parte do Projeto Repor a Verdade (thisiscommunism.org). Tradução: paginavermelha.org. Revisão: julho de 2024.

O socialismo é muito melhor que o capitalismo
e o comunismo será um mundo ainda melhor

Por Raymond Lotta

Um crescente número de pessoas está preocupado com o estado do mundo e o destino do planeta. Será que o mundo tem de ser assim? Não, há uma verdadeira alternativa mundial: o socialismo e o comunismo. Mas as pessoas são constantemente bombardeadas com a mensagem de que o socialismo fracassou e que o capitalismo é o melhor de todos os mundos possíveis. Há toda uma geração de jovens que não ouviu falar em basicamente nada sobre o socialismo a não ser que é um pesadelo. Esta “reescrita da história” também tem influenciado muitos intelectuais progressistas. O Projeto Repor a Verdade tem por objetivo transformar o ataque ideológico ao comunismo num debate com dois lados nas universidades, sobre o passado do comunismo e sobre o futuro do comunismo. O economista político maoista Raymond Lotta está neste momento a dar uma série de conferências em podo o país como parte do Projeto Repor a Verdade. A corajosa conferência dele, “O socialismo é muito melhor que o capitalismo e o comunismo será um mundo ainda melhor”, confronta as mentiras sobre o comunismo, analisa a verdadeira experiência e sucessos da revolução bolchevique entre 1917 e 1956 e da revolução chinesa entre 1949 e 1976 e divulga a nova visão de Bob Avakian do projeto comunista. Informações sobre as datas das conferências e outros materiais estão disponíveis em thisiscommunism.org.

1. Introdução

O título da minha conferência é “O socialismo é muito melhor que o capitalismo e o comunismo será um mundo ainda melhor”. O tema da conferência é que o mundo tal como existe não tem de ser assim.

Há pessoas nesta sala que anseiam por uma alternativa a este sistema. Pessoas que querem fazer algo de significativo pela humanidade com as vidas delas. A humanidade pode avançar para além da exploração e da divisão social. Pode avançar rumo a uma sociedade sem classes e a um mundo de seres humanos livremente associados — o comunismo. É esse o objetivo da revolução proletária. E os primeiros passos históricos de construção dessa sociedade e desse mundo foram dados pelas revoluções russa e chinesa do século XX. Essas revoluções foram derrotadas, mas são ricas em lições e inspiração. E eu queria falar sobre por que o comunismo é mais relevante que nunca.

Sim, o que estou a dizer é controverso. Vivemos numa época em que é apregoada a permanência do capitalismo. Dizem-nos que o veredicto sobre o século XX está feito: a experiência socialista fracassou e só podia fracassar. Somos bombardeados com a ideia de que não há alternativa, de que o capitalismo é a ordem natural das coisas. Dizem-nos que embora o capitalismo tenha problemas, qualquer tentativa de nos livrarmos dele só tornará as coisas muito pior.

É como se tivesse sido afixada uma etiqueta de aviso na discussão sobre a possibilidade humana. Perigo — tudo o que desafie de uma forma fundamental o capitalismo é, no melhor dos casos, uma ilusão e, no pior, uma utopia impraticável imposta de cima que resultará num pesadelo. Atenção — o projeto de fazer a revolução e construir uma economia e uma sociedade que promovam e sirvam o bem comum viola a natureza humana, a lógica económica e o próprio fluxo da história. Lembrete — chegámos ao fim da história: a sociedade ocidental representa o ponto cimeiro e final do desenvolvimento humano.

De mil e uma maneiras, grosseiras e sofisticadas, é proclamada a mensagem de que a história do século XX é a história do desastre e do horror da revolução socialista e do triunfo do capitalismo e da democracia burguesa. Esta mensagem está na comunicação social. É reforçada por autobiografias amplamente promovidas. É ensinada nas escolas. Está incrustada no discurso intelectual.

Só que tem um problema: esta “sabedoria convencional” sobre o comunismo não é verdadeira. Ela é construída sobre a distorção global da verdadeira história da revolução socialista. Mentiras e calúnias são interminavelmente repetidas e acabam por ser aceites como verdades autoevidentes. Devo dizer que é espantoso o que passa como sendo rigor intelectual e — tristemente — é espantoso o que ilude pessoas que se orgulham do seu rigor e honestidade intelectuais: especulações grosseiras, abordagens estatísticas e métodos de avaliação que ninguém levaria a sério se os aplicasse na sua própria profissão, dependência de autobiografias altamente subjetivas de pessoas com agendas políticas — tudo isto se torna de alguma maneira aceitável quando o tema é o comunismo.

Veja-se a nova biografia, Mao: A História Desconhecida,1 de Jung Chang e Jon Halliday, que está a ter muita atenção. É total e delirantemente anticomunista. Faz afirmações como esta: “Não houve uma escola na China onde não tivesse havido atrocidades”. Qual é a fonte desta alegação? Os autores não indicam nenhuma. Limitam-se a afirmá-la. Ninguém deixaria passar isto como sendo académico noutros temas mas, quando se trata da Revolução Cultural, o pensamento crítico é abandonado.

Quantas vezes ouviram dizer que Mao era contra a educação? Mas a verdade é que a China maoista elevou a literacia de cerca de 15% em 1949 para perto de 80% em 1976. Factos como este são convenientemente ignorados ou acabam enterrados sob a avalanche dessas calúnias. Sabem, quando a revolução chinesa chegou ao poder em 1949, a esperança de vida na China era de 32 anos! Em 1975, a esperança de vida tinha aumentado para 65 anos — um aumento para o dobro.

Temos de repor a verdade. Nesta conferência, irei confrontar e refutar as distorções sobre a “primeira vaga” de revoluções socialistas. Quando digo “primeira vaga” de revoluções socialistas, estou a referir-me à experiência das massas populares na União Soviética quando ela era uma verdadeira sociedade socialista — e isso aconteceu entre os anos de 1917 e 1956. E estou a referir-me à experiência do povo da China quando ela era efetivamente socialista — e isso foi entre os anos de 1949 e 1976. Esses foram os primeiros e inspiradores esforços na história moderna para construir sociedades livres da exploração e da opressão.

Irei falar da razão por que essas revoluções aconteceram. Irei falar sobre o que as pessoas se propuseram fazer e que dificuldades enfrentaram. Irei falar sobre as coisas incríveis e estimulantes que elas conseguiram concretizar. E quero falar da “curva de aprendizagem” da revolução comunista. De como Mao aprendeu com a experiência da Revolução Bolchevique, analisou as suas insuficiências e erros e abriu novos caminhos para se avançar mais e se fazer melhor a revolução. Estamos agora no início de uma nova etapa da revolução proletária. E eu irei falar sobre isso e sobre como Bob Avakian está a propor uma compreensão da natureza da revolução comunista no mundo de hoje.

Reparem, para os comunistas, a verdade não é um problema. Podemos confrontar e compreender a realidade. E é com base nisso que pode ser desenvolvida uma visão de toda uma melhor maneira de os seres humanos se relacionarem uns com os outros neste planeta — com base no que é realmente possível e necessário nesta etapa da história humana.

Houve problemas nesta “primeira vaga” de revoluções socialistas do século XX. Não temos nenhum medo de olhar para esses problemas. Mas temos de buscar uma verdadeira compreensão. E mesmo as verdades dolorosas podem ser um estímulo para se fazer melhor. Em contraste, aqueles em cujas mãos o mundo está atualmente capturado... ELES têm todo o interesse em mentir: seja sobre armas de destruição massiva, seja sobre o comunismo.

Por que é importante chegar à verdade sobre as revoluções russa e chinesa? Porque no centro desta discussão está o futuro da humanidade.

  • Vivemos num mundo em que 35 mil crianças morrem diariamente de desnutrição e doenças evitáveis.
  • Vivemos num sistema mundial em que os três norte-americanos mais ricos detêm ativos que excedem o produto interno bruto conjugado dos 40 países mais pobres no mundo.
  • Vivemos num planeta cujo eco-equilíbrio é ameaçado pelo funcionamento cego de um sistema económico que tem o lucro como medida e motor de desenvolvimento.
  • Vivemos numa sociedade em que 1 em cada 8 homens negros entre os 20 e os 30 anos está encarcerado.

A questão é: temos de viver assim? Podemos realmente mudar as coisas de uma maneira radical? É necessário que haja um vigoroso debate sobre tudo isto. Está muita coisa em jogo.

Mas é um problema se as pessoas pensarem que têm uma base para uma opinião sobre a desejabilidade ou a viabilidade do comunismo quando na realidade não sabem muito sobre isso. Se querem compreender e decidir se o comunismo é relevante, ou se é uma ideia cujo tempo passou para o esquecimento, primeiro precisam de saber o que é: os seus objetivos e os seus fundamentos.

2. Comunismo e socialismo

Por isso, quero definir o comunismo. Quero fazer isso primeiro, dado que ele é a meta para a qual está direcionado o socialismo.

Imaginem uma sociedade em que as pessoas aprendem conscientemente sobre o mundo e o transformam... Em que as pessoas deixaram de estar aprisionadas pelos grilhões da tradição e da ignorância... Em que as pessoas não só trabalham cooperativamente para produzir as necessidades da vida, mas que se envolvem na arte, na cultura e na ciência — e que se divertem a fazê-lo... Em que o ponto de vista científico e o voo da imaginação se fortalecem e se inspiram um ao outro... Em que há unidade e diversidade, e um amplo debate e luta ideológica sobre o rumo e o desenvolvimento da sociedade — mas já não marcados pelo antagonismo social... Em que as pessoas interagem entre si com base no respeito mútuo, na preocupação e no amor pela humanidade. Um mundo que se preocupa e cuida do meio ambiente. Isso é o comunismo.

O comunismo é uma sociedade mundial — e ainda tem de ser alcançada — em que todas as classes e distinções de classe foram ultrapassadas; em que todos os sistemas e relações de exploração foram abolidos; em que se pôs fim a todas as instituições sociais opressoras e a todas as relações de desigualdade social, como a discriminação racial e a dominação das mulheres pelos homens; e em que as ideias e valores opressores e retrógrados foram afastados. O comunismo é um mundo de abundância em que as pessoas detêm coletivamente os recursos da sociedade.

O comunismo também é uma referência à ideologia comunista. Bem, as pessoas frequentemente pensam que “ideologia” significa um conjunto de ideias politicamente motivadas que enviesam tudo aquilo para que se olha. Não, por ideologia comunista quero dizer a perspetiva global e o método científico do proletariado para compreender as forças reais que operam na natureza e na sociedade. A ideologia comunista aponta para a maneira de fazer um avanço histórico na capacidade da humanidade de compreender e transformar estas forças naturais e sociais. E a ideologia comunista fornece uma moralidade que corresponde ao grande salto que a humanidade já começou a dar.

O comunismo não é nenhum tipo de sonho ilusório e aéreo nem de utopia. O desenvolvimento da sociedade humana trouxe a humanidade para um patamar histórico.

As forças produtivas da sociedade (não apenas a maquinaria, os equipamentos e a tecnologia mas também as pessoas e o conhecimento) desenvolveram-se para um nível que pode permitir à humanidade eliminar a escassez, fornecer as necessidades básicas das pessoas e, além disso, ter um grande excedente disponível para se dedicar ao desenvolvimento global e futuro da sociedade.

As forças produtivas da sociedade estão altamente socializadas. Elas requerem milhares e, em última instância, milhões de pessoas a trabalhar coletivamente para produzirem em massa os bens — seja roupa ou computadores — que são usados por toda a sociedade. E estas forças produtivas estão altamente interconectadas a nível internacional: matérias-primas, máquinas-ferramentas e transístores produzidos numa parte do mundo entram no processo de produção noutras partes do mundo. Mas estas forças produtivas socializadas são controladas de uma maneira privada: uma classe de proprietários capitalistas apropria-se dos frutos da produção como propriedade privada, capitalista.

É este o problema fundamental no mundo. E é isto que a revolução proletária resolve.

O proletariado é a classe que emerge na sociedade capitalista com base nestas forças produtivas socializadas. O proletariado representa o trabalho cooperativo e os esforços cooperativos que correspondem à natureza socializada das forças produtivas. O proletariado tem a base material e ocupa a posição material para gerar uma maneira radicalmente diferente de organizar a produção e a sociedade como um todo.

Agora, o que é o socialismo? O socialismo não é um grande estado de segurança social que cuida das pessoas. Não é a velha economia capitalista que é simplesmente tomada por um estado. O socialismo é uma transição do capitalismo para o comunismo, para a sociedade sem classes. O socialismo é o proletariado, em aliança com os seus aliados que constituem a grande maioria da sociedade, a transformar conscientemente as estruturas económicas, as relações sociais e as ideias que perpetuam as divisões sociais e de classe. E libertando a criatividade e a iniciativa daqueles que antes estavam no fundo da sociedade.

A revolução socialista estabelece um novo sistema de regime político: a ditadura do proletariado. As velhas classes exploradoras e aqueles que procuram ativamente destruir o novo sistema são controlados e postos em cheque. Este sistema de regime político dá às massas o direito e a capacidade de mudarem o mundo, de participarem na sociedade de uma maneira global, de se tornarem nos amos da sociedade. Nos EUA e em todo o mundo, vivemos atualmente sob a ditadura da burguesia — a qual neste país surge sob a forma de democracia. Esta ditadura impõe um sistema que está ao serviço dos capitalistas, e governa o povo de maneira a permitir o florescimento desse sistema.

A revolução socialista estabelece uma nova economia baseada na propriedade social dos meios de produção e na planificação social; em pessoas que cooperam para resolver os problemas e satisfazer as necessidades sociais; e em todo um novo conjunto de prioridades económicas e sociais.

A ditadura do proletariado exerce uma ditadura sobre os capitalistas e impõe um sistema que lhe permite libertar-se do capitalismo. As massas e o núcleo da sua liderança têm de preservar firmemente esse poder. Mas isso não pode ser um fim em si mesmo. Esse poder tem de ser usado para o bem da humanidade e para criar efetivamente as condições para que essa ditadura possa deixar de existir na futura sociedade comunista.

Estes são os princípios guia básicos que Lenine pôs em ação quando liderou a primeira revolução proletária em outubro de 1917.

3. Os bolcheviques lideram uma revolução que abala o mundo

Em fevereiro de 1917, gigantescas greves e manifestações de operários naquela que é hoje São Petersburgo derrubaram o Czar. Um governo liberal de coligação subiu ao poder — mas não satisfez as necessidades e as reivindicações mais elementares das massas, e manteve a participação da Rússia na horrífica Primeira Guerra Mundial. Em outubro de 1917, os bolcheviques lideraram uma insurreição armada das massas que varreu o velho regime.

John Reed escreveu um vívido relato do heroísmo e do entusiasmo da Revolução de Outubro: a organização dos operários dos caminhos-de-ferro, as tensas reuniões nas fábricas, proclamações e preparativos para a insurreição, os batalhões de marinheiros e operários armados em Kronstadt que foram a ponta-de-lança do ataque final aos centros chave do governo. Foi formado um novo governo revolucionário que emitiu de imediato dois decretos contundentes: um deles acabou com o envolvimento da Rússia na Primeira Guerra Mundial; o outro autorizou os camponeses a se apoderarem das vastas propriedades rurais da coroa czarista, da nobreza e da igreja. Estas medidas assinalaram uma mudança política e social monumental para as massas. Tinha chegado o momento delas. Em finais de outubro, quando as forças que restavam do governo derrubado lançaram um último esforço para retomarem o poder, milhares e milhares de operários, mulheres e homens, saíram das fábricas e dos bairros operários em defesa da revolução.

Ora, uma das mentiras sobre a Revolução Bolchevique — e isto é uma presença constante na literatura anticomunista — é que na realidade a revolução foi um golpe de estado manipulador feito pelos bolcheviques. O fio condutor da narrativa é o seguinte: a desintegração da velha ordem criou um vazio político; Lenine tomou o poder ilegalmente mas, através de falsidades e de uma política autoritária, conseguir manter a posição dele.

O que está errado nesta imagem? Basicamente duas coisas.

Primeiro, encobre as condições de opressão que impeliram milhões de pessoas a se erguerem. Richard Pipes, um historiador burguês especialista na Revolução Russa, disse numa das principais obras dele: “Aqueles que viveram a Revolução Russa nunca voltariam a ver o regresso da normalidade. A revolução foi apenas o começo do sofrimento deles.” Como se as coisas estivessem bem antes da revolução — sem nenhum sofrimento.

Mas vejamos qual era a situação antes da revolução. Nos campos, onde vivia a maioria da população, ainda era comum o uso de arados de madeira. A superstição e a religião exerciam uma pesada influência na vida diária. Os dias santos continuavam a determinar as datas das sementeiras. O espancamento de mulheres pelos maridos estava fora de controlo. Nas cidades, as doenças epidémicas devastavam a população. Uma autocracia governava a sociedade, com uma vasta rede de polícias, prisões e espiões. As línguas e culturas minoritárias eram reprimidas. Era esta a normalidade antes da revolução. E ela tornou-se ainda mais insuportável quando a Rússia entrou na Primeira Guerra Mundial. Os camponeses foram alistados à força no exército czarista e os operários tornaram-se carne para canhão.

Esta narrativa de um golpe de Lenine também apaga o facto de que a revolução foi profundamente moldada pela ação coletiva e pelas aspirações dos operários e camponeses. A revolução desenvolveu-se numa atmosfera de generalizado descontentamento social, resistência em massa e um grande fermento intelectual.

E quanto a Lenine e ao partido de vanguarda que ele liderava? Esse partido estava preparado para agir e liderar como não estava nenhuma outra força na sociedade russa. Tinha força de base popular e organização nos comités de fábricas, nas forças armadas e nos sovietes (as assembleias representativas ilegais e antigovernamentais dos operários que disputavam o poder nas grandes cidades e vilas). O programa e a visão dos bolcheviques tinham eco na sociedade. Os valores e as instituições da velha ordem eram amplamente odiados. E o novo poder proletário tornou-se na base para novos valores sociais, bem como para relações económicas e sociais revolucionárias.

John Reed chamou ao relato dele da Revolução de Outubro: Dez Dias Que Abalaram o Mundo.2 E isso não era nenhum exagero.

Por toda a Europa devastada pela guerra, soldados, marinheiros e operários exaustos dos países em guerra ouviram dizer que um país socialista vitorioso tinha apelado à paz, ao fim da carnificina — a uma paz sem anexações nem conquistas. E ficaram entusiasmados. Em Kiel e Hamburgo, os marinheiros rebeldes da marinha alemã amotinaram-se contra as ordens para continuarem a guerra. Içaram a bandeira vermelha e chamaram “conselhos” (que é o que quer dizer soviete) ao seu novo poder. E sonharam em tomar o país inteiro no fim desse caminho.

No outro lado do mundo, em Seattle, os operários ergueram-se durante cinco dias na greve geral de 1919. A classe dominante local gritou que isso era o início de uma insurreição, que Seattle se estava a transformar em São Petersburgo. E embora essa greve estivesse longe de ser isso, a influência e o modelo da Revolução Russa também estavam intensamente vivos nas mentes dos operários. Mais tarde nesse ano, o governo norte-americano enviou munições para armar a contrarrevolução na Rússia. Quando os comboios carregados de munições passaram por Seattle, os operários portuários recusaram-se a carregá-las para os navios de transporte.

Quando a Revolução Russa eclodiu, quando fez a sua viragem radical em outubro — quando os comunistas (que não eram meros modernizadores democrático-burgueses) emergiram como líderes de uma sociedade — o mundo inteiro vibrou com a novidade da revolução. De repente, as velhas lutas manifestavam-se a uma nova luz. Os opressores ficaram alarmados; os oprimidos tinham um novo brilho. Os operários aprendiam a ler para ficarem a par destas notícias; em pequenas reuniões após o trabalho eles percorriam a imprensa e debatiam o significado destas novas palavras estranhas — soviete, socialismo — e destes novos nomes estranhos — Lenine, Marx, Estaline. Mao Tsétung disse depois que as salvas disparadas pela Revolução Bolchevique tinham levado o marxismo à China.

Querem saber o quanto a Revolução de Outubro fez estremecer o mundo? Ouçam Winston Churchill a falar em 1949, mais de 30 anos depois de os bolcheviques terem chegado ao poder:

O facto de não se ter conseguido estrangular o bolchevismo à nascença e trazer, de uma maneira ou de outra, a Rússia, então prostrada, para o sistema democrático geral é hoje um peso muito grande sobre nós.

O historiador Eric Hobsbawm fez uma observação muito interessante. Ele disse que a Guerra da Secessão foi simultaneamente a maior guerra entre 1815 e 1914 e sem dúvida a maior da história norte-americana. Mas a Guerra Civil norte-americana não teve um grande impacto no que aconteceu noutras partes do mundo. Por outro lado, a Revolução Bolchevique distingue-se como fenómeno de época, de transformação do mundo: pelo que significou para os povos da Rússia, pelo que significou para os povos do mundo, pelo que significou para as classes dominantes e as forças reacionárias do mundo e pelas muitas maneiras como influenciou os eventos mundiais.

O capitalismo mundial não podia continuar como era antes. Um sexto do globo estava agora afastado da exploração imperialista. Os imperialistas ficaram preocupados com a contaminação ideológica da Revolução Bolchevique. Isto foi um grande fator por trás da concessão de alguns benefícios aos trabalhadores nos países capitalistas ocidentais, para comprarem a paz social.

Os imperialistas tentaram esmagar a revolução soviética. Tentaram estrangulá-la no berço. E fizeram-no repetidas vezes. Aplicaram pressões económicas, incluindo o primeiro embargo petrolífero do mundo. Ameaçaram fazer um ataque militar. Reprimiram virulentamente as forças revolucionárias dos países vizinhos na Europa central e centro-oriental. E desenvolveram forças de oposição na sociedade soviética.

4. A experiência soviética: A revolução social anunciada pelo poder proletário

De 1917 até ao início da década de 1950, a União Soviética esteve ou a participar numa guerra, ou a preparar-se para a guerra, ou a lidar com o rescaldo de uma guerra. Nenhum outro estado moderno sofreu este tipo de provação perpétua. E isto condicionou profundamente o desenvolvimento da revolução, as escolhas políticas feitas pela sua liderança e as lutas na sociedade e no interior da liderança do Partido.

Seria agradável podermos construir uma nova sociedade em condições ideais. Mas os oprimidos e a sua liderança revolucionária não têm a possibilidade de escolher as principais circunstâncias com que se defrontam. A Rússia era um país atrasado. Tinha passado apenas uma geração desde que tinha saído da servidão feudal. A Revolução Russa foi um fenómeno de massas, e atraiu o apoio dos camponeses. Mas os factos continuavam a ser que tinha ocorrido uma revolução de base urbana num país de camponeses. A revolução foi confrontada com a necessidade de ganhar os camponeses e estender a revolução aos campos. Ela enfrentou os movimentos sociais retrógrados da sociedade. Não foi uma tertúlia cortês. A Rússia era uma sociedade devastada pela guerra; uma sociedade num caminho de transformação em que nunca ninguém tinha estado antes.

Em 1918, as forças políticas e militares reacionárias começaram a avolumar uma contrarrevolução para restaurarem a velha ordem. Dezassete países, entre os quais os Estados Unidos (que desembarcaram tropas na Sibéria), agruparam um exército invasor para apoiar a contrarrevolução. Os bolcheviques pegaram numa economia de guerra à beira do colapso e lideraram as massas para defenderem e fazerem avançar a revolução. A revolução saiu vitoriosa da guerra civil. Mas isso teve um custo muito elevado — vítimas da guerra, doenças e disrupções económicas.

O novo estado proletário estava a lutar pela sua vida. Uma revolução social estava a lutar pela sua vida.

As narrativas anticomunistas caluniam a Revolução Bolchevique e o projeto comunista como uma obsessão primária com o poder. A palavra código é “totalitarismo”. Os comunistas, dizem-nos eles, procuram estabelecer um controlo total sobre uma população dócil. Mas vejamos para que é que este novo poder de classe foi realmente usado.

Emancipar as mulheres

A ditadura do proletariado foi usada para vencer a opressão das mulheres. Em 1918, uma nova lei do casamento transformou o matrimónio numa cerimónia civil. Na velha sociedade, o casamento tinha de ser sancionado pela igreja. O divórcio passou a ser fácil de obter. Os homens foram legalmente despojados da autoridade deles sobre as mulheres e os filhos. O adultério deixou de ser um delito criminal. As mulheres passaram a receber salário igual no emprego. A assistência médica à maternidade era fornecida gratuitamente. E em 1920 a União Soviética tornou-se no primeiro país da Europa moderna a legalizar o aborto. Nos jornais e nas escolas houve um debate vivo sobre os papéis dos sexos, o casamento e a família. Os livros de ficção científica imaginavam novas relações sociais.

Os velhos costumes opressores e patriarcais foram criticados e desafiados. Nas novas repúblicas da Ásia Central, as mulheres foram encorajadas e conseguiram libertar-se do véu que lhes tinha sido imposto há várias gerações. Em vez de serem esmagadas pela família, pela igreja e pelo estado, as mulheres passaram a ter o poder de lutar pela sua emancipação. Pensem no significado de tudo isto quando olhamos para o estado do mundo hoje. Nenhuma sociedade até essa altura tinha alguma vez tentado transformar de uma maneira tão completa o seu sistema de género.

Eliminar a opressão dos povos minoritários

Este novo poder proletário foi usado para eliminar a opressão dos povos minoritários. A Revolução Bolchevique criou o primeiro estado multinacional do mundo baseado na igualdade de nacionalidades. O novo estado socialista reconheceu o direito à autodeterminação das nações antes oprimidas no velho império czarista. A todas as nacionalidades minoritárias foi concedido o direito ao ensino no idioma nativo em todas as escolas e universidades através de um decreto de 1917.

A determinação em resolver os problemas era real, tal como o eram as medidas tomadas. Por exemplo, foram criados alfabetos para muitas nacionalidades minoritárias cujos idiomas antes não eram escritos. O estado soviético dedicou consideráveis recursos à produção em massa de livros, revistas, jornais e filmes e à criação de grupos de música folclórica e museus nas regiões minoritárias. A lei das nacionalidades determinava lideranças oriundas dessas nacionalidades nos novos territórios nacionais — e não administradores russos vindos de fora. E passou a haver dirigentes do partido, do governo, das escolas e das empresas oriundos das nacionalidades oprimidas. Os russos tinham sido desde muito tempo antes a nacionalidade dominante e opressora. Agora, estava a atribuir-se territórios russos a repúblicas não-russas; agora, estava a pedir-se aos russos que aprendessem idiomas não-russos. Pôs-se fim à perseguição aos judeus. Este espírito de combate à opressão nacional impregnou os primeiros anos da União Soviética. Foi uma das características definidoras da nova sociedade e do novo estado.

O novo estado soviético lançou campanhas nacionais de ensino e saúde. Nenhum outro país no período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial acompanhou a União Soviética no aumento da proporção de médicos em relação à população. A taxa de alfabetismo aumentou de 30% para mais de 80% em 1939.

Nessa altura, em que outro lugar do mundo estavam a acontecer coisas como estas? Em nenhum outro lugar. Mas nós sabemos qual era situação nos Estados Unidos. A segregação era a regra. As leis de segregação racial conhecidas como Jim Crow estavam em pleno vigor. Quando Paul Robeson (o grande ator, cantor e radical afro-americano) visitou pela primeira vez a União Soviética, ficou profundamente impressionado com os esforços da revolução para eliminar os preconceitos raciais e nacionais. Na União Soviética, as minorias étnicas não estavam a ser linchadas como então estavam os negros no Sul dos Estados Unidos. Os Estados Unidos e a União Soviética eram dois mundos completamente diferentes.

5. A experiência soviética: Construir a primeira economia socialista do mundo

Depois da morte de Lenine em 1924, José Estaline assumiu a liderança do Partido Comunista na União Soviética. A liderança dele é inseparável da revolução social que tenho vindo a descrever. Em meados da década de 1920 foi levantada a seguinte questão: É possível construir o socialismo na União Soviética? É possível fazê-lo numa sociedade que é económica e culturalmente atrasada? É possível fazê-lo quando a União Soviética se mantinha solitária como estado proletário e não havia nenhuma certeza de que viessem a ocorrer revoluções noutros países?

Estaline deu um passo em frente e lutou por uma visão de que a União Soviética podia e devia tomar a via socialista nestas circunstâncias. Caso contrário, a União soviética não conseguiria sobreviver. Não conseguiria ajudar a fazer a revolução noutros lugares. Com esta orientação, Estaline liderou a complexa e aguda luta para socializar a propriedade da indústria e coletivizar a agricultura.

Qual era a situação económica da União Soviética em meados da década de 1920? A agricultura tal como estava a ser feita não conseguia assegurar a alimentação da população. A indústria era limitada e não podia fornecer as fábricas e as máquinas necessárias para modernizar a economia. A Rússia tinha sido uma sociedade em que os intelectuais constituíam um minúsculo segmento da população, em que apenas uma pequena fatia da população tinha estudos técnicos superiores ou em artes liberais. E havia sempre a assustadora ameaça de um ataque imperialista. Eram estas as contradições económicas e sociais reais enfrentadas por seres humanos reais que tentavam refazer a sociedade e o mundo.

E como era o resto do mundo na década de 1920? O feudalismo imperava na maioria das zonas rurais do mundo. E o capitalismo estava a inundar o globo de uma maneira cruel e não planificada.

Mas agora, na União Soviética, nesse único pedaço de território libertado, um novo movimento proletário tinha chegado ao poder e ia planificar a economia para servir o povo. Isso era ultrajante: nunca antes ninguém tinha alguma vez usado a expressão “plano quinquenal socialista”.

Planificar a economia

Uma revolução socialista cria um novo tipo de economia. Os meios de produção já não são propriedade privada de uma minoria da sociedade. São colocados sob o controlo coletivo da sociedade através do estado proletário. Os recursos económicos já não são utilizados para maximizar o lucro. Em vez disso, são utilizados para satisfazer as necessidades e os interesses fundamentais das massas e para servir a revolução mundial. A produção social já não é levada a cabo sem um plano prévio nem um propósito social mas é agora moldada de acordo com metas conscientemente adotadas e é coordenada globalmente.

O I Plano Quinquenal na União Soviética foi lançado em 1928. Centrou-se no ferro e no aço. Novos complexos industriais massivos foram construídos a partir do zero. As fábricas de tratores tiveram uma prioridade muito elevada. Os tratores eram necessários nos campos. E, em caso de guerra, as fábricas de tratores podiam ser convertidas para a produção de tanques. A produção de máquinas-ferramentas foi rapidamente expandida para que a economia não tivesse de depender de importações.

O slogan do I Plano Quinquenal era: “Estamos a construir um mundo novo”. Milhões de operários e camponeses ficaram entusiasmados com este espírito. Nas fábricas e nas aldeias, as pessoas discutiram o plano: a diferença que iria fazer às vidas delas — e às das pessoas de todo o mundo — o facto de essa economia estar a ser construída. Elas deliberaram sobre o que queriam fazer, o que podiam fazer e o que era necessário para o fazerem.

Foram elaborados planos locais que foram submetidos às agências centrais de planificação para serem coordenados com o plano nacional e reenviados para as comunidades locais. Em conferências de fábrica, as pessoas discutiram como reorganizar o processo de produção. As pessoas voluntariaram-se para ajudarem a construir vias-férreas em zonas remotas. Trabalhavam voluntariamente em longos turnos. Nas fábricas de aço cantavam-se canções revolucionárias a caminho do trabalho. Nunca antes na história tinha havido uma tal mobilização das pessoas para alcançarem conscientemente as metas económicas e sociais planeadas.

Perguntemos uma vez mais: que estava a acontecer no resto do mundo? A economia capitalista mundial estava a elanguescer na Grande Depressão do início da década de 1930 — com níveis de desemprego que atingiam os 20% e os 50%. Mas a União Soviética tinha acabado com o desemprego em massa. Na realidade, na União Soviética havia falta de mão-de-obra... com tanto trabalho a fazer para construir a nova sociedade. A indústria cresceu 20% ao ano e a parcela soviética do total da produção industrial global subiu de menos de 2% em 1921 para 10% em 1939.

Coletivizar a agricultura

Em 1929, o Partido Comunista lançou uma grande campanha para coletivizar a agricultura. O fio condutor da narrativa anticomunista é que isto foi mais um caso de “totalitarismo estalinista”. Estaline, dizem-nos, queria consolidar o poder total — e, para o fazer, teve de esmagar e matar à fome os camponeses.

Mas isto é uma distorção grosseira. A realidade é que a coletivização foi uma resposta às contradições económicas e sociais nos campos e às necessidades urgentes da revolução. E a verdadeira história escondida é que a coletivização desencadeou uma genuína sublevação em massa dos camponeses que antes estavam condenados à pobreza e a relações sociais escravizadoras.

Examinemos mais de perto a que é que a coletivização foi uma resposta.

Havia um sério problema sobre se era possível assegurar o fornecimento de alimentos às cidades, sobretudo com a industrialização a avançar e a população urbana a crescer rapidamente. Além disso, nas zonas rurais estava a aumentar um grande problema económico e social. Depois da Revolução, a terra foi redistribuída pelos camponeses. Mas os camponeses ricos, chamado kulaks, tinham ganho força numa economia rural marcada pela pequena agricultura privada. Os kulaks detinham grandes propriedades rurais. Detinham os moinhos de farinha. Controlavam grande parte do mercado de cereais. Eram os prestamistas. E tudo isto estava a conduzir a uma intensificação da polarização social e de classe nos campos.

Havia um perigo real de a agricultura regressar à situação que existia antes da Primeira Guerra Mundial. E esses kulaks não eram meros proprietários inocentes. Eles tinham bandos para impor o seu domínio. Estavam a organizar-se contra o regime. E agruparam outras forças sociais nos campos.

A resposta da liderança revolucionária a isto foi a coletivização. A terra e os utensílios agrícolas foram transformados em propriedade coletiva. Entre 1930 e 1933, 14 milhões de pequenas propriedades camponesas ineficientes foram combinadas em 200 mil grandes quintas agrícolas de propriedade coletiva. O estado forneceu tratores e maquinaria a essas novas quintas agrícolas. E as quintas forneciam cereais ao estado. Esta foi a relação básica de intercâmbio que foi estabelecida.

A coletivização pôs em ação diferentes respostas sociais. Foi bem acolhida por um grande número de camponeses pobres. Mas outros setores do campesinato não quiseram participar. A coletivização envolveu coerção contra muitos desses camponeses. Mas a coletivização foi um enorme movimento social. Operários dedicados e voluntários das cidades foram para as linhas da frente da luta contra os kulaks. Esses operários desempenharam um importante papel na administração das novas quintas.

Os trabalhadores agrícolas e os camponeses pobres de muitas zonas ergueram-se para ocupar terras. Quando antes estavam amedrontados e intimidados pelos kulaks — agora tinham o estado como apoio a lidar com os bandos dos kulaks. As mulheres, cujas vidas antes eram determinadas por tradições opressoras e por imposições patriarcais, tornaram-se motoristas de tratores. Bibliotecas itinerantes foram enviadas para as brigadas dos campos agrícolas. Em algumas regiões, as quintas tinham os seus próprios grupos de teatro. A religião, a superstição e as tradições entorpecedoras da mente foram desafiadas. As pessoas ergueram a cabeça e ficaram sintonizadas com o que estava a acontecer na sociedade global. Elas discutiam os planos nacionais e os desenvolvimentos nacionais.

Os kulaks resistiram vingativamente. A história tal como é contada pelos opositores ao socialismo é sempre unilateral. Os kulaks foram simplesmente as “vítimas”, dizem eles. Mas isso é mentira. Os kulaks mataram comunistas, organizaram incursões contra as novas quintas coletivas, sabotaram as colheitas e organizaram bandos para violarem as mulheres. Os kulaks acabaram por ser derrotados, muitos deles foram presos, muitos foram deportados e muitos foram mortos.

Mas isto não aconteceu devido a um “apetite estalinista pelo sangue”. Foi uma batalha pelo futuro dos campos. Houve uma batalha sobre se a industrialização e a transformação social podiam avançar ou se seriam bloqueadas e o capitalismo seria restaurado nos campos. Foi uma intensa luta de classes — e o poder de estado esteve preso por um fio.

A coletivização é um importante elemento da construção de uma economia socialista. Mas Mao fez sérias críticas à maneira como Estaline a abordou. Mao salientou que, sob Estaline, a coletivização tinha ocorrido antes de os próprios camponeses terem ganho experiência a cooperar entre si no trabalho nos campos e na utilização de utensílios e não esteve assente numa firme base política e ideológica de camponeses a agirem conscientemente para alcançarem a propriedade social coletiva. Uma outra crítica que Mao fez foi que o estado retirava aos campos uma quantidade demasiado elevada de cereais. Isto prejudicou as relações entre as zonas urbanas e as zonas rurais. Mao fez outras críticas, e a China maoista fez a coletivização de uma maneira muito diferente — e eu falarei sobre isso mais adiante.

Mas a campanha de coletivização na União Soviética fez parte de uma tentativa ousada, visionária e pioneira para encontrar uma maneira de sair e avançar para além do velho sistema de pequena agricultura privada. Ela deu esperança aos pobres nos campos. E, sem a coletivização, a União Soviética não teria conseguido derrotar os nazis.

6. A experiência soviética: A Segunda Guerra Mundial e as suas sequelas

Em meados da década de 1930, as nuvens negras da guerra estavam a acumular-se. Em 1931, o Japão invadiu a região chinesa da Manchúria, situada na fronteira com o Extremo Oriente soviético. Em 1934, na Alemanha, Hitler tinha reforçado o seu poder, esmagado o Partido Comunista Alemão e começado a militarizar a economia.

A revolução soviética estava a aproximar-se de uma conjuntura crítica. Aumentava o perigo de uma guerra imperialista. Como iria a União Soviética preparar-se económica e militarmente, e política e socialmente?

Em 1934, Estaline e outros membros da liderança soviética sentiram que era tempo de consolidar os ganhos políticos e sociais da revolução. O novo estado proletário estava a enfrentar condições objetivas extremas e difíceis. A guerra avizinhava-se. Não havia nenhuma experiência histórica anterior de como lidar com a magnitude da situação. Era necessário fazer ajustamentos. Mas foram cometidos erros na maneira como lidaram com esta terrível necessidade. Com base nas transformações que tinham ocorrido no sistema de propriedade, foi iniciada uma campanha de maior disciplina e intensificação da produção nas fábricas. Mas o desenvolvimento das forças produtivas passou a ser visto como garantia do socialismo. A liderança passou a basear-se menos no ativismo e na iniciativa conscientes das massas. A experimentação social e cultural radical da década de 1920 e início da década de 1930 foi refreada — e as coisas foram consolidadas de uma maneira que reforçou relações mais tradicionais. O socialismo na União Soviética tinha de ser defendido. Mas a liderança soviética tendeu a ver a defesa da União Soviética como sendo exatamente igual aos interesses da revolução mundial, sem nenhuma contradição — e portanto promoveu cada vez mais o patriotismo nacional em vez do internacionalismo proletário.

Estaline e as “grandes purgas”

O crescente perigo de uma guerra interimperialista e a probabilidade de um ataque imperialista à União Soviética estavam a preparar o terreno para o que os académicos ocidentais chamam as “grandes purgas” no Partido Comunista da União soviética. Poucos temas da história moderna foram tão meticulosamente distorcidos. Uma vez mais, há uma narrativa burguesa. Ela diz-nos que Estaline estava embriagado pelo poder e em busca do poder absoluto — derrubando todos os que discordavam dele.

Mas a realidade era que a revolução enfrentava novas pressões e novos desafios. E a luta política intensificou-se no interior do partido e do governo: sobre a política interna e internacional, incluindo sobre as alianças internacionais... sobre o rumo da revolução... sobre se a revolução poderia sequer sobreviver.

Dizem-nos que Estaline era paranoico. Mas de facto a revolução tinha inimigos reais. Havia uma subversão real. Na sociedade soviética havia movimentos sociais retrógrados. Havia uma ameaça alemã real. E, em 1934, foi assassinado o líder número dois do Partido Comunista da União Soviética, muito próximo de Estaline. Era esta a atmosfera desses tempos.

Em relação às purgas, honestamente tenho de dizer aqui que é necessária uma maior investigação sobre o que aconteceu exatamente no Partido Comunista Soviético na década de 1930. Mas o que parece ter acontecido foi o seguinte: à medida que as tensões internacionais aumentavam, Estaline e outros líderes revolucionários tinham genuínas razões de preocupação com a situação do partido e do exército. Tinham preocupações sobre se podiam confiar que alguns dos líderes regionais do partido implementassem as diretivas nacionais, numa altura em que a sociedade e a economia estavam a caminhar para a guerra.

A liderança revolucionária também tinha razões de preocupação sobre se podiam confiar no alto comando do exército soviético. Depois da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha e a União Soviética tinham feito acordos de cooperação militar. Esses acordos envolviam o treino de oficiais e transferência de armas. Havia preocupações de que se pudessem ter desenvolvido ligações e relações entre o pessoal militar soviético e os seus pares alemães. Sobretudo numa altura em que a União Soviética se estava a preparar para enfrentar o imperialismo alemão, será que podiam contar agora com os generais soviéticos — ou iriam esses generais fazer compromissos com a Alemanha?

Estas foram algumas das circunstâncias à volta das purgas de altos dirigentes do Partido e do exército. Estaline estava a lutar para defender a revolução. Ele não iria permitir que a União Soviética regressasse ao capitalismo, nem render-se ao imperialismo.

Mas, em muitos aspectos, a compreensão por parte dele das contradições e lutas no socialismo era incorreta. Estava marcada pelo materialismo mecânico em vez do materialismo dialético. E os métodos dele para lidar com a situação tinham sérios problemas que tiveram consequências adversas.

Ele baseou-se em purgas e ações policiais para resolver os problemas — em vez de mobilizar as massas para assumirem as questões políticas e ideológicas candentes sobre o rumo global da sociedade. Mao criticou a abordagem de Estaline e salientou que Estaline tinha uma tendência a confundir dois tipos de contradições fundamentalmente diferentes: a contradição entre o povo e o inimigo e as contradições no seio do próprio povo. A repressão, que só deveria ter sido dirigida contra os inimigos, foi usada contra pessoas que não eram inimigos mas que apenas tinham cometido erros ou exprimido discordância com a política do governo.

O heroísmo soviético e a derrota de Hitler

Em junho de 1941, os nazis invadiram a União Soviética. Eles lançaram o mais moderno exército do mundo e o seu maior poderio militar contra os soviéticos. Hitler deixou claro às tropas dele que esperava que elas pusessem de lado qualquer princípio de humanidade no que deveria ser uma guerra de extermínio.

Os soviéticos lutaram com um heroísmo incrível — quarteirão a quarteirão em Estalinegrado, em épicas batalhas de tanques em lugares inóspitos e congelados. Quando os alemães a invadiram, o facto de a União Soviética ter uma economia planificada tornou possível — e isto foi feito em apenas algumas semanas — que desmantelassem 1500 grandes fábricas e as transportassem para as regiões orientais da União Soviética.

Mais de 20 milhões de soviéticos perderam a vida na Segunda Guerra Mundial, basicamente 1 em cada 10 habitantes. Apesar do que nos dizem sobre o dia D e o desembarque de tropas norte-americanas e britânicas na Normandia, o verdadeiro momento decisivo da Segunda Guerra Mundial foi a Batalha de Estalinegrado. Os soviéticos foram o fator e a força principais na derrota de Hitler. E isso não teria sido possível sem a grande determinação e sacrifício do povo da União Soviética sob a liderança do Partido Comunista dirigido por Estaline. Este também foi um dos grandes feitos da revolução soviética.

A União Soviética saiu militarmente vitoriosa da Segunda Guerra Mundial. Mas a revolução ficou política e ideologicamente debilitada. As forças e correntes conservadoras tinham ganho força no Partido, no governo e na sociedade. Após a morte de Estaline em 1953, novas forças burguesas no interior do Partido Comunista manobraram para tomar o poder; e, em 1956, Khrushchev tomou as rédeas do poder, consolidou o domínio de uma nova classe capitalista e liderou a sistemática reestruturação da União Soviética numa sociedade capitalista de estado. Isto marcou o fim do primeiro estado proletário.

A revolução soviética em perspetiva

Como é que colocamos em perspetiva a revolução soviética? De uma perspetiva histórica, a revolução soviética posiciona-se como um colossal passo em frente na libertação da humanidade oprimida. Contra grandes dificuldades, as massas populares concretizaram feitos extraordinários. Um novo mundo estava em vias de ser criado. E esta revolução inspirou os oprimidos de todo o mundo. Estes foram os primeiros passos, para além da breve Comuna de Paris, no caminho para a emancipação, rumo a um mundo livre da opressão e da exploração.

Mas o projeto da emancipação desenvolve-se e evolui. Grandes líderes revolucionários com uma visão e uma compreensão científicas podem tirar lições, desenvolver novas compreensões e forjar novas soluções para o desafio de criar um mundo sem classes. Mao Tsétung iria levar o projeto comunista para um nível inteiramente novo.

7. O grande passo em frente dado por Mao — A revolução conquista o poder

A 1 de outubro de 1949, Mao Tsétung falou aos milhões de pessoas reunidos na Praça Tiananmen na cidade capital da China, Pequim. Ele tinha liderado o povo chinês durante 20 anos de luta armada para derrubar os proprietários rurais opressores e expulsar o imperialismo estrangeiro. Nessa celebração da vitória, Mao disse à multidão e ao mundo: “O povo chinês pôs-se de pé”. A multidão ovacionou. Mas Mao, embora partilhasse essa grande alegria e sentimento de vitória, também via para além desse momento. O heroísmo e o sacrifício que tinham levado a essa celebração eram, segundo ele, “apenas um começo... apenas um breve prólogo de uma longa obra.”

Para Mao, a revolução não terminava aí. Entrava numa nova etapa de transformação socialista da economia, de criação de novas instituições políticas e de geração de novos valores de trabalho para o bem comum. A meta final era o comunismo, um mundo sem classes. Mas outros dirigentes do Partido viam a situação de uma maneira muito diferente. Para eles, a tomada do poder em 1949 marcava basicamente o fim da revolução. Da maneira como a viam, a tarefa agora era transformar a China numa potência moderna. Este era um dos aspectos da situação complicada e difícil que Mao e as massas chinesas tinham pela frente.

Os proprietários rurais e os capitalistas derrubados não se conformaram com o seu destino. Nem os imperialistas que antes tinham dominado a China.

Menos de um ano depois de os comunistas terem chegado ao poder na China, os EUA desencadearam a guerra na Coreia. Eles levaram a guerra para cada vez mais próximo da China e ameaçaram atacar a China com armas nucleares. A China enviou ajuda militar e voluntários para a Coreia e combateu os EUA até chegarem a um impasse. Mas o custo foi muito elevado. A China perdeu mais de 200 mil pessoas no conflito e o número total de vítimas pode ter chegado a 900 mil.

Os EUA confrontaram a China revolucionária com uma rede de bases militares na Formosa, na Coreia do Sul e no Japão, juntamente com a sua 6ª Armada. Durante duas décadas, a China também foi impedida de ter relações comerciais com grande parte do mundo em resultado de um embargo económico imposto pelos Estados Unidos e outros países ocidentais. Foi este o ambiente internacional hostil que a revolução enfrentou.

Por que houve uma revolução?

Acaba de ser publicado um novo livro anti-Mao — Mao: A História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday. Ao estilo tipicamente anticomunista, alega que a revolução chinesa foi o produto das malévolas maquinações de Mao. Falam como se simplesmente tudo estivesse bem antes da revolução — ou como se a opressão social se resolvesse por si mesma. Mas vejamos como era a China antes da revolução.

A vasta maioria do povo chinês era constituída por camponeses que trabalhavam a terra mas que tinham pouca ou nenhuma terra a que pudessem chamar sua. Viviam sob o domínio de proprietários rurais que controlavam a economia local e a vida das pessoas. Os camponeses lutavam desesperadamente para sobreviverem. Nos anos maus, tinham de comer folhas e cascas de árvores e eram forçados a vender os próprios filhos. A agricultura era assolada por ciclos infinitos de inundações e secas. A China sofria em média uma grande crise de fome por ano e centenas de milhares de pessoas morreram à fome nas crises de 1921 e 1943.

Para as mulheres, a vida era um inferno vivo: eram espancadas pelos maridos, tinham os pés dolorosamente enfaixados, os casamentos eram arranjados e as jovens eram forçadas a ser concubinas dos proprietários rurais e dos senhores da guerra.

De acordo com praticamente qualquer critério, a economia estava perto do fundo da escala de desenvolvimento. Havia pouca indústria. Por exemplo, Nanquim tinha uma população de 700 mil habitantes, 200 mil dos quais trabalhavam como criados domésticos, empregados de bar, meninas de bar, prostitutas, condutores de riquexó e outros empregos similares. Mas só havia 16 mil operários industriais.

Nas fábricas têxteis de Xangai, as jovens ficavam encerradas à noite. As pessoas viviam apinhadas em casebres de uma só assoalhada nas ruas e ruelas laterais estreitas, escuras e sujas, ou nas próprias ruas. Calcula-se que as brigadas dos serviços municipais de saúde pública recolhiam das ruas 25 mil cadáveres por ano. Ao mesmo tempo, os bairros da cidade controlados por estrangeiros estavam repletos de luxuosos hotéis e clubes noturnos.

Embora na China pré-revolucionária houvesse uma prática generalizada da medicina tradicional, também só havia 12 mil médicos formados em medicina ocidental, num país com 500 milhões de habitantes. Quatro milhões de pessoas morriam em cada ano de doenças infecciosas e parasitárias. A China tinha 90 milhões de viciados em ópio.

For por isto que o povo chinês fez a revolução e tomou o poder. E, sob a liderança de Mao e do Partido Comunista da China, a revolução chinesa começou imediatamente a mudar esta situação.

A revolução traz mudanças decisivas

Quando o Exército Vermelho liderado pelos comunistas tomou as grandes cidades, assumiu o controlo dos grandes bancos, fábricas e outras atividades económicas. Colocou esses recursos produtivos ao serviço de uma nova economia. O partido liderou o povo na reorganização da produção. O trabalho infantil foi abolido. A jornada de trabalho foi reduzida de 12-16 horas para 8 horas.

Quando o exército revolucionário derrotou os exércitos apoiados pelos EUA de Chiang Kai-shek e dos proprietários locais, o sistema feudal desmoronou-se rapidamente. Na realidade, o derrube dos opressores já tinha começado nas zonas libertadas durante a guerra revolucionária. Brigadas de trabalho, sob a direção do partido, iam às aldeias, faziam campanhas de educação política e falavam com os camponeses sobre a situação e os problemas deles. Elas encorajaram e lideraram os camponeses a se erguerem, a se organizarem e a ocuparem terras.

Após a vitória em 1949, a reforma agrária tornou-se lei e propagou-se de uma ponta à outra da China como um rio que rebenta uma barragem. Por toda a China, os camponeses dividiram entre si as terras, as ferramentas e os animais. Num país onde as mulheres nunca tinham sido tratadas como iguais, não foram apenas os homens mas também as mulheres que obtiveram terras.

As mulheres ergueram a cabeça. Em 1950, uma nova lei do casamento pôs fim aos casamentos arranjados ou com crianças. A nova lei garantiu o direito ao divorcio tanto às mulheres como aos homens. Mas, para Mao, a revolução era muito mais que mudar as leis. Tinha de transformar a maneira de pensar das pessoas. Tinha de transformar as velhas relações sociais opressoras e desafiar as ideias e os valores retrógrados baseados nessas relações e que eram comuns entre o povo.

As histéricas biografias anti-Mao dizem que Mao estava embriagado pelo poder. Mas aquilo a que esses relatos difamadores realmente estão a objetar é ao facto de a revolução ter derrubado o velho poder dos proprietários rurais, dos grandes capitalistas e dos imperialistas estrangeiros e de ter estabelecido um novo poder, uma forma da ditadura do proletariado. Dava aos operários e aos camponeses o poder de começarem a governar a sociedade e a reprimir os exploradores, velhos e novos.

Dizem-nos que Mao matou milhões de pessoas de modo gratuito. Mas a realidade é que o novo sistema económico e social criado pela revolução maoista libertou centenas de milhões de pessoas e salvou um incalculável número de vidas. Ao longo de toda a história, os oprimidos foram tratados como não mais que pares de mãos para trabalharem. Agora, eles tinham o direito e a capacidade de se erguerem. E contavam com o apoio de um exército popular de libertação.

Pensem no que significaria numa futura sociedade no território do que são hoje os Estados Unidos se os oprimidos pudessem contar com um poder de estado que servisse os seus interesses. Em vez de a polícia estar a espalhar o terror entre as pessoas nas comunidades oprimidas, o estado estaria a ajudar as pessoas a erradicarem o legado da discriminação. Na China maoista, os antigos zés-ninguém tinham a liberdade e o poder de transformar a vida económica, política, social e cultural.

8. O avanço de Mao — Romper com o modelo soviético

Mao Tsétung tinha como meta criar uma economia socialista baseada na cooperação social e na propriedade social. Uma economia que pudesse:

  • satisfizer as necessidades materiais e sociais do povo;
  • resolver o problema histórico da fome endémica, da subalimentação e da penúria recorrente;
  • fomentar relações de apoio mútuo entre a indústria e a agricultura, em vez de se sorver os recursos das zonas rurais;
  • contribuir para reduzir e para, no final, eliminar o fosso entre a cidade e o campo e as desigualdades regionais;
  • basear-se em e promover a compreensão coletiva e o domínio coletivo dos processos de produção;
  • resistir aos ataques imperialistas.

Essa economia não iria — e não poderia — estar dependente do imperialismo em empréstimos ou ajudas, nem dar resposta às exigências do mercado capitalista mundial.

A revolução maoista propôs-se desenvolver um sistema de ensino que satisfizesse as vastas necessidades da população e que contribuísse para revolucionar a sociedade. Propôs-se desenvolver uma nova cultura e combater as velhas formas de pensar.

Tudo isto foi liderado pela ideologia comunista, pela meta de chegar ao comunismo: uma sociedade sem classes e sem nenhuma forma de opressão.

Um novo poder de estado baseado na aliança operário-camponesa tornou possível que se tivesse avançado decisivamente para mudar as terríveis condições que antes existiam.

O flagelo do vício do ópio foi aniquilado através de campanhas massivas de tratamento e educação. Foram lançadas campanhas de massas de limpeza das cidades. A cólera e outras doenças epidémicas foram eliminadas ou controladas. Aumentou o número de novas fábricas e de alojamentos para operários. Foram construídos hospitais e escolas de medicina. Em 1965, a China já tinha formado 200 mil médicos regulares.

Foi criado um novo sistema de ensino a nível nacional. Foram lançadas campanhas massivas de alfabetização — e no final da década de 1950 a maioria dos camponeses já tinha obtido conhecimentos básicos de leitura.

Romper com o modelo soviético

Isto foram realizações incríveis. Mas no interior do Partido Comunista estava a decorrer uma luta sobre o caminho a seguir. Uma das maiores questões era a de como desenvolver e modernizar a economia.

Uma parte dos dirigentes do Partido Comunista defendia um programa de rápida industrialização. A abordagem deles era a de concentrar recursos em fábricas grandes e modernas e em tecnologia avançada. Eles queriam desenvolver as zonas urbanas. Esse desenvolvimento, aos olhos deles, acabaria por chegar às zonas rurais. Esses dirigentes diziam que era necessário um grande aparelho de planificação centralizada para gerir a economia e que era necessário formar vastos exércitos de peritos e especialistas para gerirem a nova economia e os órgãos administrativos. Diziam que a forma de motivar o povo e os trabalhadores das empresas era com base em grandes diferenças salariais e incentivos financeiros.

Este programa refletia a influência da União Soviética, influência essa que foi muito forte na China na década de 1950. Mas Mao via problemas nesse modelo — tanto na maneira como ele era praticado na União Soviética como na maneira como ele estava a ser aplicado na China na década de 1950. Essa via de desenvolvimento elevava a técnica e a perícia acima da iniciativa e do ativismo conscientes das massas. Ele rejeitou o modelo de subordinação da agricultura para servir uma industrialização de base urbana. E, se a China queria conseguir resistir a um ataque e invasão imperialista, tinha de descentralizar a indústria e evitar concentrar o desenvolvimento em cidades e zonas costeiras vulneráveis.

Mao estava empenhado em criar uma via diferente de desenvolvimento económico e social. Uma outra maneira de dizer isto é que, após a vitória a nível nacional em 1949, Mao estava a lutar contra dois legados. Antes de mais, estava a lutar contra o legado e a continuação da pressão e influência do capitalismo e do imperialismo ocidental. Em segundo lugar, estava a romper com o modelo soviético de desenvolvimento.

9. O Grande Salto em Frente

O Grande Salto em Frente de 1958-59 foi o primeiro passo ousado de Mao para criar uma via mais libertadora de desenvolvimento económico e social socialista. No centro do Grande Salto em Frente nas zonas rurais esteve a campanha para a formação de comunas. Estas combinavam atividades económicas, sociais, administrativas e militares e tornaram-se nas unidades de base do poder proletário nos campos da China.

As comunas populares surgiram como resultado de um processo complexo e dinâmico de luta e transformação social e económica e de massiva sublevação e experimentação.

Quase desde o início da revolução, os camponeses, com o apoio do partido, formaram brigadas de ajuda mútua para se entreajudarem nas sementeiras e nas colheitas. Em apenas alguns anos de Libertação, eles criaram cooperativas em que trabalhavam a terra coletivamente e distribuíam os rendimentos de acordo com quanta terra, ferramentas, animais e trabalho cada família tinha contribuído.

Em meados da década de 1950, os camponeses já tinham formado cooperativas a um nível mais elevado. Queimaram os títulos de propriedade das terras deles porque agora trabalhavam as terras e usavam as ferramentas e os animais coletivamente. Foi um processo em ziguezague, com diferentes zonas a avançarem a diferentes ritmos. Alguns camponeses aderiam às cooperativas e depois saíam. Mas em algumas das etapas deste processo havia listas de espera de camponeses que queriam aderir. Muitos camponeses juntavam as terras e o trabalho, deixando de trabalhar em terrenos isolados passando a trabalhar coletivamente para mudar a fisionomia física da terra. Isto permitiu-lhes usar tratores e outras máquinas em zonas onde antes nunca se tinha visto sequer um arado de ferro.

Foi neste enquadramento que se deu o Grande Salto em Frente.

O nascimento das comunas populares

As comunas nasceram espontaneamente. Em 1957, na província de Honan, várias cooperativas camponesas juntaram forças com as suas vizinhas para iniciarem um vasto projeto para trazer água de uma cadeia montanhosa para irrigar as planícies secas. Os camponeses fundiram as suas cooperativas e criaram algo de novo: um mecanismo económico e político através do qual dezenas de milhares de pessoas construíram uma vida comum. Mao visitou essas zonas e depois usou o nome “comuna” para descrever o que aí se estava a criar.

O Grande Salto em Frente é frequentemente vilipendiado como experiência irracional e utópica. Mas tinha um enorme sentido económico e político... do ponto de vista de libertar o povo e a capacidade produtiva.

As comunas conseguiram mobilizar e organizar a vasta reserva de potencial de mão-de-obra da China. Obras de irrigação e controlo de cheias, de construção de estradas, de reflorestação, de recuperação de terras e outros projetos de grande escala podiam agora ser planeados e concretizados. Foram construídas fábricas de fertilizantes e de cimento e pequenas centrais hidroelétricas. As comunas forneceram espaço para que equipas de peritos e camponeses se envolvessem em experiências de agricultura científica e prospeção geológica.

O Grande Salto em Frente retirou as mulheres de casa e levou-as para o remoinho da batalha pela criação de uma nova sociedade. As comunas abriram cantinas e infantários comunitários, faziam reparações coletivas de casas e estabeleceram outras formas de ajuda social que proporcionaram soluções coletivas a necessidades sociais. As mulheres participaram na criação de novas fábricas e em projetos de irrigação como o famoso Canal Bandeira Vermelha, na linha da frente do qual esteve a “Brigada das Mulheres de Ferro”.

Os velhos costumes e valores foram postos em causa. Foi levada a cabo uma luta ideológica contra a superstição, o preconceito e o fatalismo, bem como contra tradições feudais que ainda persistiam, como os casamentos arranjados. As comunas estabeleceram redes de escolas primárias e secundárias, bem como de centros de saúde.

O Grande Salto em Frente pôs ênfase nas zonas rurais de maneira a ir reduzindo gradualmente o fosso entre a cidade e o campo, e entre operários e camponeses. Indústrias de pequena dimensão criaram raízes nas zonas rurais; os camponeses começaram a dominar a tecnologia; o conhecimento científico foi disseminado. A abordagem usada no Grande Salto em Frente foi uma alternativa libertadora aos processos de massiva deslocação e imigração rural para as cidades que ocorrem no Terceiro Mundo dominado pelo imperialismo.

Uma economia autossuficiente que dissemina capacidades industriais e técnicas nas zonas rurais também podia resistir melhor a um ataque e invasão imperialista e apoiar a revolução mundial.

Uma vil calúnia

No livro deles, Mao: A História Desconhecida, Jung Chang e Jon Halliday acusam o Grande Salto em Frente e as comunas de serem apenas uma cobertura para a exploração de trabalho escravo. Afirmam que morreram 30 milhões de pessoas devido às políticas de Mao. Aqui é preciso dizer diretamente algumas coisas.

Primeiro, como já expliquei, o Grande Salto em Frente não foi uma irresponsabilidade, foi guiado por metas políticas coerentes. Estimulou a energia e o entusiasmo das massas camponesas.

Houve problemas? Houve mortes à fome? Sim. Mas as dificuldades desses anos foram um fenómeno complexo.

Em 1959 houve um declínio acentuado na produção de alimentos. A China sofreu os piores desastres climáticos desde há um século. Inundações e secas afetaram mais de metade das terras agrícolas da China.

A luta ideológica entre a China revolucionária e a União Soviética estava a intensificar-se. Mao denunciou a liderança soviética como revisionista — concluindo que se tinha afastado da via socialista e que estava a vender os interesses da revolução mundial ao imperialismo norte-americano. Em resposta, os soviéticos tentaram castigar a China retirando conselheiros, cortando a ajuda, levando os planos de instalações industriais inacabadas e deixando a China com um fardo de dívida que tinha de ser reembolsado. Isto criou novas tensões na economia.

Os maoistas também cometeram alguns erros políticos. Um dos problemas foi que em muitas zonas rurais muito do tempo de trabalho dos camponeses era dedicado a projetos não-agrícolas. Isso prejudicou a produção de alimentos. No espírito eufórico desses tempos, os níveis de produção e de capacidade eram frequentemente exagerados por funcionários locais. Isto tornou difícil saber que quantidade de cereais realmente havia e planificar com precisão.

Chang e Halliday acusam Mao de não se preocupar com as provações e o sofrimento e de ter impedido deliberadamente a divulgação das mortes. Na realidade, foram realizadas investigações e houve ajustes. A dimensão das comunas foi reduzida, acabando por estabilizar em cerca de 15 a 25 mil membros. A quantidade de cereais a entregar ao estado foi reduzida. Alguns projetos não-agrícolas foram redimensionados para que as pessoas pudessem dedicar mais tempo à produção de alimentos. Os cereais foram racionados a nível nacional e foram enviados abastecimentos de emergência de cereais para as regiões afetadas.

Em relação à acusação de 30 milhões de mortes — é uma estimativa absurda e sensacionalista. Baseia-se em estatísticas pouco fiáveis. Tem por base cálculos ultrajantes que comparam uma projeção do número de habitantes com a dimensão real da população. Por outras palavras, pessoas que nem sequer nasceram foram acrescentadas ao número total de mortos.

E a questão principal é esta: Em 1970, a China conseguiu resolver o seu problema alimentar, pela primeira vez na sua história. A nova sociedade conseguia fornecer uma dieta mínima e garantir a alimentação de toda a população. Tudo isto deveu-se ao Grande Salto em Frente e à criação das comunas. Tudo isto deveu-se à mobilização coletiva das massas populares para construírem projetos de irrigação e controlo das cheias, para resgatarem e melhorarem as terras, para dominarem novas técnicas agrícolas e para estabelecerem pequenas indústrias nas zonas rurais. Tudo isto deveu-se ao espírito de trabalhar para o bem comum que foi promovido pela revolução socialista.

10. A Grande Revolução Cultural Proletária na China — Não uma purga fanática, mas a via socialista contra a via capitalista

Devido à crise de alimentos e aos percalços industriais que ocorreram durante os anos difíceis do Grande Salto em Frente, um tempo em que os soviéticos também retiraram repentinamente toda a ajuda e assistência técnica, foi necessário fazer alguns ajustes económicos e organizativos. Mas isso abriu espaço para as forças conservadoras no Partido Comunista — as quais de facto se tinham oposto ao Grande Salto em Frente e tinham mesmo tentado miná-lo.

No início da década de 1960, essas forças conservadoras estavam a ganhar terreno e força. Elas queriam que o critério do lucro decidisse as prioridades de investimento. Queriam consolidar um sistema de ensino de base elitista. Lembrem-se que o sistema de ensino superior na China pós-1949 foi sendo grandemente influenciado pelo modelo soviético de hierarquia, especialização e recrutamento dos estudantes “mais bem preparados”. As forças conservadoras estavam muito entrincheiradas no campo da cultura. A esfera cultural continuava a ser um baluarte da tradição. A ópera, uma forma de arte muito popular, continuava a ser dominada pelos velhos temas e personagens feudais.

Essas forças conservadoras lutaram para que os recursos da saúde fossem concentrados nas cidades, à custa das zonas rurais. Elas diziam aos operários e aos camponeses que esquecessem a política — deixem isso para os líderes “competentes” do partido — e mantenham os olhos no vosso trabalho e pensem na vossa vida.

Estas forças neocapitalistas tinham um programa coerente — e em meados da década de 1960 estavam a manobrar para tomarem o poder.

Mentiras sobre a Revolução Cultural

Ora uma das maiores distorções sobre a Revolução Cultural é a de que foi uma purga fanática de Mao Tsétung contra todos aqueles de quem não gostava. O livro reacionário Mao: A História Desconhecida afirma que Mao estava a levar a cabo uma vingança sádica contra os dirigentes do partido que tinham ousado atravessar-se-lhe à frente... que a Revolução Cultural foi um grande esquema de terror e manipulação. Isto são mentiras grosseiras.

Em primeiro lugar, Mao não estava a inventar inimigos. Poderosas forças burguesas estavam de facto a organizar-se para tomarem o poder e instalarem um sistema de capitalismo de estado. Se alguém pensa que isto é um exagero ou que Mao era paranoico — basta ver a China hoje. Basta ver como a China se tornou num paraíso de mão-de-obra barata para o capitalismo internacional.

Em segundo lugar, a Revolução Cultural foi a antítese de uma purga e de um massivo derramamento de sangue. Mao concluiu que as purgas de Estaline não tinham resolvido o problema de impedir a contrarrevolução na União Soviética. As massas foram deixadas numa posição passiva. Não foram, em grande medida, política e ideologicamente mobilizadas. Basear-se nesse tipo de medidas administrativas não permite às massas obterem a capacidade de distinguir entre programas e perspetivas que impulsionam a sociedade para o comunismo e programas e políticas que arrastam a sociedade na via do regresso ao capitalismo. Para Mao, o desafio era o de como libertar as massas para desempenharem o seu papel decisivo e consciente para levarem a sociedade a avançar.

Mao tinha estado à procura de uma solução para o problema de uma revolução que perde energia e enfrenta o perigo de ser levada a retroceder. Como ele disse em 1967: “No passado, levámos a cabo lutas nos campos, nas fábricas e nos círculos culturais, e fizemos um movimento de educação socialista. Mas nada disto resolveu o problema, porque não tínhamos encontrado uma forma, um meio de mobilizar as amplas massas de uma maneira aberta, em todos os campos e de baixo para cima, para exporem o nosso lado obscuro.”3 Mao estava a debater-se com um problema histórico mundial da revolução comunista. Bob Avakian exprimiu-o da seguinte maneira: “Mao debateu-se com a questão de como lidar com a intensificação das tentativas de derrubar o governo do proletariado, dando ao mesmo tempo expressão ao facto de a ditadura do proletariado dever ser o governo das massas populares, e isto tem de assumir uma forma concreta e institucionalizada — e quanto mais fortalecido fica este estado, mais tem de ser qualitativamente diferente de todas as anteriores formas de estado.”4 Por outras palavras, como impedir a contrarrevolução de uma maneira que seja consistente com os meios e as metas da revolução comunista?

Falarei mais adiante sobre a verdadeira experiência da Revolução Cultural. Mas primeiro temos de explorar algumas questões teóricas colocadas pelo desafio de continuar a revolução sob o socialismo.

Mao salientou a importância da teoria. Disse que a linha política e ideológica é decisiva. Isto refere-se à maneira como compreendemos o mundo para o transformarmos: uma compreensão teórica das leis que governam o verdadeiro movimento e desenvolvimento da sociedade e do mundo, e das políticas que refletem essa compreensão.

Aqueles líderes do Partido Comunista que queriam levar a China de volta à via capitalista estavam a desenvolver uma teoria e argumentos para o programa deles. Contra eles estava Mao, que estava a liderar as forças revolucionárias e a fazer uma contribuição histórica para a compreensão da dinâmica da sociedade socialista. Este confronto entre perspetivas teóricas foi uma parte crucial da luta de classes na China revolucionária.

11. Mao sobre as contradições na sociedade socialista

O marxismo teve um avanço teórico com Mao Tsétung. Ele concluiu que na sociedade socialista continuam a existir classes antagónicas. Concluiu que no socialismo também continua a luta de classes — entre o proletariado, que governa a sociedade, e a burguesia, que agora é governada.

Isto é complicado. Não se está a lidar sobretudo com capitalistas ao velho estilo que agitam títulos de propriedade ou certificados de ações da bolsa. Sim, os restos da velha burguesia continuarão a existir nos primeiros anos do socialismo. E vários agentes políticos reacionários da velha linha irão continuar a organizar-se contra o novo sistema. Mas, à medida que a revolução progride e a economia socialista se consolida, começa-se a lidar sobretudo com uma nova burguesia. Esta nova burguesia existe dentro das relações e estruturas políticas, económicas e ideológicas da sociedade socialista.

Politicamente, é muito complicado. Seria mais fácil se esta nova burguesia fosse à televisão proclamar às massas: “Ei, nós queremos demolir todo o sistema e explorar-vos.” Não, ela organiza-se e luta pelos seus interesses e programas dentro do quadro institucional do socialismo e com uma linguagem pseudo-marxista e pseudo-socialista.

Tudo isto tem a ver com a própria natureza da sociedade socialista.

As desigualdades na sociedade socialista

O socialismo é um grande salto em frente. Tenho vindo a falar sobre as coisas grandiosas que ele torna possível. Mas o socialismo também é uma sociedade de transição. Contém as cicatrizes económicas, sociais e ideológicas da velha sociedade. Que quer isto dizer?

Continuam a existir diferenças entre o desenvolvimento da indústria e da agricultura, entre a cidade e o campo e entre regiões. Muito importante é a divisão que continua a haver entre trabalho mental e trabalho manual — entre as pessoas que se dedicam sobretudo a atividades intelectuais, administrativas e criativas e aquelas que trabalham sobretudo com as mãos.

Continuam a existir diferenças salariais. O dinheiro, os preços e os contratos continuam a desempenhar um papel importante na economia.

Estas e outras desigualdades sociais, bem como a persistência do intercâmbio de mercadorias, devem ser restringidas e por fim ultrapassadas para se chegar ao comunismo. As formas como elas influenciam a maneira de pensar e os valores das pessoas também devem ser ideologicamente desafiadas e por fim eliminadas para se chegar ao comunismo. Mas isto irá requerer um processo prolongado e complexo de luta e transformação revolucionária.

Mao concluiu que estas diferenças sociais e relações de mercadorias são o terreno em que se desenvolvem na sociedade socialista novas forças privilegiadas e uma nova burguesia. E levou esta análise ainda mais longe. Mostrou que o núcleo da nova burguesia se encontra dentro dos níveis mais elevados do partido comunista. Porquê?

O partido de vanguarda como foco das contradições

O partido comunista é a principal instituição política na sociedade socialista e a principal força dirigente da economia. As massas precisam da liderança revolucionária para levarem adiante a luta para revolucionar a sociedade socialista. É preciso uma liderança de vanguarda e um estado proletário para dirigir a sociedade e coordenar a economia ao serviço dos interesses das massas e do avanço da revolução mundial. É preciso um estado proletário forte para resistir aos imperialistas que estão à espreita.

Mas está aqui o pormenor. Há forças em altas posições de liderança no partido e no estado que promovem e lutam por uma linha burguesa. Por linha burguesa, quero dizer um ponto de vista e políticas que procuram expandir o tipo de desigualdades de que tenho vindo a falar. Quero dizer um ponto de vista e políticas que procuram restringir a iniciativa das massas. E essas forças no topo da liderança que promovem uma linha burguesa estão estrategicamente posicionadas para implementarem o programa delas: para instituírem políticas e reestruturarem relações económicas e sociais numa rota capitalista. Esses “seguidores da via capitalista”, como Mao as chamou, também estão estrategicamente posicionados para agruparem e mobilizarem setores e forças da sociedade em torno de um programa de neocapitalismo.

Algumas pessoas perguntar-se-ão: “Bem, por que não se evita o problema e simplesmente se elimina o partido e o estado de vanguarda?” Mas isso não resolve o problema. Apenas nos deixa impotentes e ainda mais vulneráveis face a todas as contradições de que tenho vindo a falar. E a burguesia regressará ao poder.

Por isso, um partido de vanguarda tem de liderar o avanço do processo revolucionário. Mas o partido de vanguarda também se torna no foco das contradições da sociedade socialista. E a luta no interior do partido entre a via socialista e a via capitalista torna-se no foco da luta de classes no socialismo.

Isto foi uma importante descoberta de Mao.

Mas Mao também foi pioneiro nos meios e nos métodos para lidar com este problema: mobilizando as massas de baixo para cima para combaterem politicamente os centros do poder burguês no interior do partido comunista e revolucionarem o partido e as instituições da sociedade; e para levarem a cabo a luta ideológica para transformarem a maneira de pensar e a compreensão das pessoas. Desta maneira, a revolução socialista remove o terreno que regenera o capitalismo.

Portanto, com este pano de fundo político e teórico, analisemos a Revolução Cultural.

12. A Revolução Cultural na China, uma erupção sísmica de libertação

É 18 de agosto de 1966. Mao Tsétung está de pé no mesmo terraço com vista para a mesma praça em Pequim a que ele se dirigiu em 1949 após a vitória da revolução. Só que agora ele está a observar a primeira reunião pública de jovens revolucionários. Eles chamam-se Guardas Vermelhos. Um milhão de Guardas Vermelhos estão aí reunidos. Estão a celebrar porque, apenas duas semanas antes, Mao tinha escrito um extraordinário cartaz de parede intitulado “Bombardear o Quartel-General”.

Isto foi algo que nenhum líder revolucionário no poder, na realidade nenhum líder que alguma vez esteve no poder, tinha antes feito na história. Mao estava a apelar ao povo a desafiar as estruturas dominantes opressoras: a se erguer e derrubar os altos funcionários do partido e do governo que estavam a tentar levar a China para a via capitalista. Estava a apelar ao povo a tomar de volta a partir de baixo as parcelas do poder político e da economia, da cultura e do ensino que tinham ficado sob o controlo dos seguidores da via capitalista.

Mao estava a iniciar uma revolução dentro da revolução.

Os Guardas Vermelhos como catalisador

Na manifestação de agosto, Mao acenou à multidão e colocou uma braçadeira dos Guardas Vermelhos. Foi um sinal de apoio e encorajamento aos jovens revolucionários. Mao queria desencadear o espírito crítico e rebelde deles. E os Guardas Vermelhos viriam a desempenhar um papel chave no início da Revolução Cultural.

Têm de compreender a China nessa altura. Havia alguns dirigentes entrincheirados no partido e na administração que, como mencionei antes, estavam a promover políticas burguesas camufladas de marxismo. Muitos camponeses e operários tinham assumido que os seus líderes, desde que se chamassem a si mesmo comunistas, tinham de ser bons. Mao queria minar essa vontade de alinhar com o statu quo. Queria minar a arrogância dos seguidores da via capitalista. A verdade é que, em muitas fábricas e zonas rurais, as pessoas tinham simplesmente demasiado medo de criticar a liderança.

Entram os Guardas Vermelhos.

Os Guardas Vermelhos causaram sensação na sociedade. Organizaram protestos e discussões. Criticaram funcionários de alto e baixo nível. Confrontaram administradores escolares que agiam como grandes senhores. A geração mais velha tinha passado pela revolução nas décadas de 1930 e 1940, na luta contra os invasores japoneses e as forças de Chiang Kai-shek apoiadas pelos EUA. Agora, uma nova geração estava a mergulhar na revolução. O governo permitiu que os jovens viajassem gratuitamente nos comboios. Os Guardas Vermelhos viajaram para diferentes regiões e para as zonas rurais, caminhando ou subindo a bordo de veículos militares. Visitavam as aldeias para se reunirem com os camponeses — pessoas de quem tinham estado afastados e para quem tinham sido ensinados a olhar de cima.

Os Guardas Vermelhos serviram de catalisador. Eles incentivaram as pessoas a erguer a cabeça, a falar e a protestar. Ouçam este relato de um camponês:

Os Guardas Vermelhos eram muito organizados. Eles dividiram-se e visitaram todas as casas da aldeia. Leram citações e falaram-nos da Revolução Cultural em Pequim e Xangai. Nunca antes tínhamos tido tanta gente de fora na aldeia. Fizeram-nos perguntas sobre a nossa vida. Queriam aprender connosco. Perguntaram-nos como estávamos a gerir as coisas aqui na brigada. Participaram em discussões com os quadros dirigentes da brigada e fizeram perguntas sobre o sistema de pontos de trabalho [o sistema de pagamento nas comunas]. Deram-me o livro de citações de Mao [o Livro Vermelho]. Distribuíram-no por várias casas. No final, todos nós o tínhamos. Esses Guardas Vermelhos foram muito importantes para nós. E nós continuámos a ler as citações depois de eles terem partido. Lemos e comparámos essas citações com o que estava a ser feito aqui e chegámos à conclusão de que muitas coisas precisavam de mudar.5

A orientação de Mao para a Revolução Cultural

A burguesia odeia a Revolução Cultural que ocorreu na China. Ela fala sobre isto como sendo “controlo do pensamento”. Ela propaga uma imagem de Guardas Vermelhos enlouquecidos que faziam investidas destrutivas. Submerge-nos com autobiografias e estudos muito publicitados que falam da Revolução Cultural como sendo apenas violência e vingança. Mas essa não foi a realidade fundamental da Revolução Cultural.

Em primeiro lugar, a Revolução Cultural não foi um violento vale tudo. A liderança maoista emitiu orientações para a Revolução Cultural. Um dos principais documentos, e as pessoas deveriam lê-lo, foi chamado “Decisão em 16 Pontos”. Eis alguns excertos das instruções de Mao:

  • Que as massas se eduquem neste grande movimento e façam a distinção entre o que é justo e o que não o é, entre as formas de agir corretas e as incorretas!
  • É necessário concentrar as forças para golpear esse punhado de direitistas burgueses ultrarreacionários (...). O movimento em curso visa principalmente os que, no seio do Partido, detêm postos de direção e se encontram embrenhados na via capitalista.
  • É necessário fazer uma estreita distinção entre as duas espécies de contradições de natureza diferente: as contradições que existem no seio do povo e as que existem entre os nossos inimigos e nós próprios. (...) É natural que haja opiniões diferentes no seio das massas populares. (...) Num debate, deve recorrer-se ao raciocínio e não ao constrangimento ou à coerção.6

Era esta a orientação. Houve desordem? Sim. Houve excessos e violência? Claro, era uma revolução. Mas os revolucionários maoistas tentaram manter este movimento a avançar na direção correta ao longo de toda a agitação: debate em massa, crítica em massa e uma massiva mobilização política.

Um conhecido episódio ilustra esta questão. Na Universidade de Tsinghua houve uma considerável luta faccionária entre os estudantes. Por fim, ela tornou-se violenta. Em resposta, a liderança maoista enviou à universidade uma brigada de operários desarmados para ajudar os estudantes a discutirem e resolverem as suas diferenças.

13. A Revolução Cultural — Uma luta complexa e libertadora

Uma das principais distorções sobre a Revolução Cultural é a de que Mao controlou e manipulou tudo o que aconteceu. Diz-se que Mao é responsável por todos os atos e lutas que ocorreram. Mao é considerado responsável por todo e qualquer dos casos de violência. Criou-se uma noção de que tudo foi emitido de um único centro de poder e decisão: Mao.

Diferentes forças de classe e forças sociais estiveram envolvidas na Revolução Cultural. Havia os maoistas genuínos no partido e nas organizações de massas. Havia grupos anti-Mao dentro do partido que organizaram estudantes, operários e camponeses. E havia forças militares conservadoras, grupos de ultraesquerda, organizações de massas que se dividiram entre os campos rebeldes e conservadores, elementos criminosos e outros. Estavam em jogo diferentes interesses sociais e motivações. Algumas pessoas usaram a Revolução Cultural para resolver disputas pessoais. Frequentemente, os inimigos de Mao dentro do Partido que estavam sob ataque político recorreriam à tática de fingirem apoiar Mao e de incitarem ao facciosismo e à violência em nome da Revolução Cultural. Eles faziam isso para desviarem a luta para longe deles e para desacreditarem o movimento revolucionário. A realidade é que a Revolução Cultural foi uma luta complexa sobre que classe iria governar a sociedade: o proletariado, que em aliança com os seus aliados que constituem a grande maioria da sociedade queria continuar a revolução para transformar a sociedade, ou uma nova classe burguesa.

Contudo, no decorrer desta luta, Mao e a liderança revolucionária conseguiram encaminhá-la numa certa direção: a de focar a luta política contra os principais seguidores da via capitalista, de revolucionar ainda mais a sociedade e de dar poder às massas.

Pensem no que estava a acontecer. Mao estava a libertar centenas de milhões de pessoas para lutarem e debaterem o rumo da sociedade e para assumirem a responsabilidade pelo futuro da sociedade. Nada assim alguma vez tinha acontecido antes na história. Nos Estados Unidos e noutras democracias burguesas, a vida política é definida pelo voto. A cada quatro anos, as pessoas participam num ritual que reforça o statu quo e as deixa passivas. Aqui, na China revolucionária, houve um incrível fermento e convulsão — o que é excelente na sociedade. E nesta situação as coisas iam para todo o tipo de direções. Houve alguns Guardas Vermelhos que se entusiasmaram no seu zelo de libertar a sociedade de influências burguesas e que cometeram excessos. Nesta atmosfera, Mao e os líderes revolucionários tiveram de liderar as massas para analisarem a situação, retirarem lições e métodos de luta e consolidarem os ganhos.

A luta de classes na sociedade — sobre se continuaria na via socialista ou se regressaria ao capitalismo — estava concentrada na cúpula do partido e do estado. Ao lidar com isto, Mao não estava a tentar apoderar-se do poder para ele, como nos dizem frequentemente. Ele podia ter feito com que todos os opositores dele fossem presos. Mas, como mencionei antes, ele não fez isso — porque isso não teria resolvido o problema de impedir a revolução de ser invertida. Mao estava disposto a arriscar tudo ao confiar e mobilizar politicamente as massas para assumirem as grandes questões que a sociedade enfrentava. Mao salientou que a Revolução Cultural foi uma luta para derrubar os seguidores da via capitalista. Mas, a um nível mais profundo, a Revolução Cultural envolveu a questão da conceção do mundo, de capacitar as massas a compreenderem e transformarem conscientemente o mundo e a elas próprias.

Um movimento revolucionário de massas sem precedentes

A Revolução Cultural criou um grande debate e questionamento. Houve manifestações políticas, reuniões de protesto, marchas e reuniões políticas de massas. Foi publicado um grande número de pequenos jornais. Só em Pequim, havia mais de 900 jornais. Foram distribuídos inúmeros folhetos policopiados. Os materiais e as instalações para todas estas atividades eram disponibilizados gratuitamente, incluindo papel, tinta, pincéis, cartazes, impressoras, salas de reuniões e sistemas de som.

Os Guardas Vermelhos ajudaram a expandir o movimento ao proletariado. E quando a Revolução Cultural se estabeleceu entre os operários, deu uma nova volta. Em 1967-68, 40 milhões de operários empenharam-se numa intensa e complexa luta e sublevações de massas para retomarem o poder aos dirigentes municipais entrincheirados no partido e na cidade que eram viveiros do conservadorismo. Através de experimentação, debates e análise, e com uma liderança maoista, as massas criaram novos órgãos de poder político proletário.

Pela sua dimensão e intensidade, a Revolução Cultural não tem nenhum paralelo na história humana. A rotina da vida quotidiana foi desfeita. Pessoas de todos os meios sociais envolveram-se num vasto debate.

Os camponeses estavam a discutir de que maneira os antigos e reacionários valores confucianos continuavam a influenciar a sua vida. Os operários das fábricas de Xangai estavam a experimentar novas formas de gestão participativa.

Nada nem ninguém estava acima de crítica. Foram pedidas contas a autoridades políticas, administrativas e educativas que se tinham divorciado do povo. Os funcionários já não podiam ficar fechados nos gabinetes a vomitar ordens. Eles tiveram de ir ao terreno e conhecer a situação dos operários e camponeses.

A Revolução Cultural estimulou uma profunda autoanálise ideológica. Mao disse que não podia haver revolução se ela não transformasse os costumes, os hábitos e as maneiras de pensar. A revolução tem de criar um novo etos, uma nova forma de as pessoas se relacionarem umas com as outras. “Servir o povo” foi um slogan popularizado durante a Revolução Cultural. Isto não tinha nada a ver com a ideia burguesa dos atos caridosos dos ricos em relação aos pobres. Significa servir as necessidades da grande maioria da sociedade e a causa do comunismo a nível mundial. Significa desafiar a atitude capitalista do “eu primeiro”.

O que Mao estava a salientar era que ainda que haja uma economia socialista, mas se não se está a promover o espírito de trabalhar para o bem social geral, então a propriedade socialista é uma conversa oca.

Impacto internacional

Não consigo salientar o suficiente o impacto que a Revolução Cultural teve nas pessoas fora da China. Foi um tempo de agitação radical e revolucionária em todo o mundo. Foi um tempo em que a União Soviética se tinha tornado numa força absolutamente oposta à revolução proletária. E aqui estava Mao a apresentar uma visão de uma revolução comunista até ao fim.

Posso falar pessoalmente sobre o efeito que os Guardas Vermelhos tiveram em mim como jovem rebelde no ensino secundário e na universidade. Eu queria ser como eles. Também me lembro do quão tremendamente inspirador foi quando Mao emitiu a famosa carta dele de apoio às massas negras que se tinham levantado em rebelião nos EUA em abril de 1968, depois de Martin Luther King ter sido assassinado. A China maoista não estava só a apoiar a revolução em todo o mundo, também estava a fazer novamente a revolução dentro da sua própria sociedade. Para mim isso era incrível. E ainda é...

14. A Revolução Cultural — Sucessos na educação e na cultura

A “narrativa padrão” que guia a maioria dos estudos ocidentais contemporâneos sobre a Revolução Cultural, e que é mais ou menos a “história oficial” divulgada pelo regime anti-Mao na China, é de que a Revolução Cultural submergiu o país numa “idade das trevas”. Os sucessos da Revolução Cultural são sistematicamente distorcidos.

Mas coisas extraordinárias aconteceram.

Ensino: Expansão e inovação

Podemos começar pelo ensino. Uma acusação comum é a de que Mao era contra o saber e a educação. Em Mao: A História Desconhecida, Jung Chang e Jon Halliday chegam ao ponto de dizer que a abordagem de Mao ao ensino era de destinar a maioria da população a serem “trabalhadores escravos analfabetos ou semianalfabetos”. Uma vez mais, viram a realidade completamente de pernas para o ar.

Prova n.º 1: Os recursos para o ensino foram imensamente expandidos nas zonas rurais.

Entre 1965 e 1976, o número de matrículas nas escolas primárias aumentou de 115 milhões para 150 milhões e o de matrículas nas escolas secundárias subiu de 15 milhões para 58 milhões — um aumento quase para o quádruplo. Os camponeses tinham acesso a uma rede de escolas primárias em cada aldeia, de escolas intermédias integradas para várias aldeias e de escolas secundárias em cada comuna. Nas zonas montanhosas, havia salas de aula itinerantes. Em 1973, 90% das crianças em idade escolar frequentavam uma escola. O número de matrículas de operários e camponeses nas universidades explodiu na década de 1960.

Prova n.º 2: Atacar o elitismo no ensino superior.

Antes da Revolução Cultural, as universidades eram exclusivamente para os filhos e filhas de membros do partido e das classes privilegiadas. As crianças competiam em exames para entrarem numa hierarquia cada vez mais seletiva de escolas de preparação para a universidade. A China tinha uma longa história de um sistema de ensino feudal-confuciano que criou uma pequena elite privilegiada, divorciada das pessoas comuns e do trabalho produtivo na sociedade.

A Revolução Cultural aboliu esse sistema de proteção das elites e de exames competitivos. Quando completavam o ensino secundário, os estudantes iam viver e trabalhar para os campos ou empregavam-se em fábricas. Após dois ou três anos, os estudantes, independentemente da origem deles, podiam então candidatar-se à universidade. Parte do processo de admissão envolvia uma avaliação e recomendação vinda das unidades de trabalho dos jovens.

Os antigos planos de estudos foram revistos como parte da eliminação do elitismo. O estudo era combinado com trabalho produtivo. Estudava-se teoria revolucionária e política revolucionária. Os velhos métodos de ensino, em que os estudantes eram recetáculos passivos do conhecimento e os professores e instrutores eram autoridades absolutas, foram criticados.

A Revolução Cultural desafiou a ideia elitista burguesa de que a educação é uma escada para as pessoas “subirem na vida”, ou uma maneira de usarem as suas capacidades e conhecimento para obterem uma posição de vantagem face aos outros. Não foi nenhum anti-intelectualismo, mas antes uma questão de pôr o conhecimento ao serviço de uma sociedade que estava a lutar para eliminar as desigualdades sociais.

Prova n.º 3: Investigação de “portas abertas”.

Um dos avanços mais entusiasmantes da Revolução Cultural foi o que se chamou investigação de “portas abertas”. Nas zonas rurais, foram instaladas estações científicas perto dos campos. Os camponeses, juntamente com especialistas vindos das cidades, faziam experiências sobre cereais híbridos, estudos sobre os ciclos de vida dos insetos e outros aspectos da ciência na agricultura. Isto ajudou as massas a começarem a compreender as questões científicas e o método científico; e ajudou os cientistas a terem uma melhor perceção da situação na sociedade, incluindo nas zonas rurais.

Nas cidades, as grandes instituições de ensino e institutos de investigação desenvolveram relações com as fábricas, os comités de bairro e outras organizações. As pessoas iam aos laboratórios e os laboratórios iam ter com as pessoas. E houve soluções inovadoras, como a de as mulheres das fábricas de bairro produzirem componentes para computadores avançados — não como a mão-de-obra explorada no Terceiro Mundo, mas numa relação de cooperação com um laboratório ou instituição, e estudando a ciência de tudo isso.

Profissionais que foram para as zonas rurais

Durante a Revolução Cultural, artistas, médicos, trabalhadores técnicos e científicos e todo o tipo de pessoas foram chamados a viver entre os operários e os camponeses: para aplicarem os seus conhecimentos às necessidades da sociedade, para partilharem as vidas dos trabalhadores, para intercambiarem conhecimento e aprenderem com as pessoas comuns.

Dizem-nos que enviá-los para as zonas rurais foi uma forma de castigo contra os profissionais. Bem, e isso aplica-se aos camponeses? Quem perguntou aos camponeses se eles queriam viver nas zonas rurais? A verdade é que esta política de enviar profissionais para as zonas rurais fez parte de uma tentativa consciente de eliminar as desigualdades na sociedade e para reduzir os fossos culturais e de recursos entre a cidade e o campo.

Como é que esta política foi aplicada? Sob a ameaça de armas? Não. Em primeiro lugar, houve um apelo aos interesses e aspirações mais elevados das pessoas de servirem a sociedade. Segundo, foi levada a cabo uma luta ideológica. Foi feita uma discussão massiva da seguinte questão: o que é mais importante, que um médico qualificado tenha “direito” a uma vida privilegiada na cidade, ou que os cuidados de saúde estejam amplamente disponíveis? Terceiro, houve muitas pessoas que assumiram isto com entusiasmo e compromisso e que foram um exemplo para os outros. Por fim, houve alguma coerção. A política de enviar pessoas para as zonas rurais foi institucionalizada. Mas nem toda a coerção é má. Por exemplo, será que é errado um governo eliminar a segregação racial nas escolas, mesmo que algumas pessoas se oponham a isso?

Ora, como eu disse, muitos profissionais e jovens responderam com grande entusiasmo a esta chamada para irem para as zonas rurais. Recomendo-vos muito que deem uma olhada a um livro recente, Algumas de Nós: Mulheres Chinesas Que Cresceram na Era de Mao.7 Tem vários ensaios escritos por mulheres chinesas que participaram na Revolução Cultural e que agora vivem no Ocidente. Elas falam sobre quão positiva foi essa experiência de irem para as zonas rurais e de como isso lhes mudou a vida: de como aprenderam com os camponeses, de como fizeram coisas que nunca tinham pensado poderem fazer e de como obtiveram uma perceção da força delas como mulheres, e de como a Revolução Cultural promoveu um espírito de pensamento crítico.

Cultura

Abordemos agora a cultura. Dizem-nos que a Revolução Cultural transformou a China num deserto cultural. Mas a verdade é bastante diferente. Houve uma explosão de atividade artística entre os operários e os camponeses — poesia, pintura, música, contos e mesmo filmes. Grandes projetos de arte e novos tipos de obras artísticas populares e colaborativas espalharam-se, incluindo às zonas rurais e às regiões remotas. Obras coletivas de escultura em grande escala, como as figuras do Pátio de Cobrança das Rendas, atingiram um nível muito elevado de expressão artística e de conteúdo revolucionário.

A Revolução Cultural produziu obras que foram chamadas “obras revolucionárias modelo”. Elas estabeleciam arquétipos que as pessoas em toda a China podiam usar como modelos no desenvolvimento de inúmeras obras artísticas. Óperas e balés modelo punham as massas à frente e no centro do palco. Transmitiam as suas vidas e o seu papel na sociedade e na história. Essas obras modelo eram de um nível extraordinariamente elevado, combinando formas chinesas tradicionais com instrumentos e técnicas ocidentais. Significativamente, as mulheres fortes figuravam proeminentemente nas óperas revolucionárias.

Várias companhias de Ópera de Pequim viajaram até às zonas rurais, ajudaram os grupos culturais locais a se desenvolverem e aprenderam com os espetáculos locais. Deixem-me ler-vos um relato de um camponês que conta como as obras revolucionárias modelo e a disseminação geral da cultura revolucionária tiveram impacto na aldeia dele.

Diz ele:

Testemunhei um auge sem precedentes de atividades culturais e desportivas na minha própria aldeia natal, a aldeia de Gao. Pela primeira vez, as aldeias rurais organizaram grupos de teatro e apresentaram espetáculos que incorporavam os conteúdos e a estrutura das oito óperas modelo de Pequim com a língua e a música locais. Os aldeãos não só se entretinham como também aprendiam a ler e a escrever para perceberem os textos das peças, e organizavam encontros desportivos e jogos com outras aldeias. Todas estas atividades davam aos aldeãos uma oportunidade para se encontrarem, comunicarem, apaixonarem. Estas atividades deram-lhes uma perceção de disciplina e organização e criaram uma esfera pública onde as reuniões e comunicações iam além dos clãs tradicionais das famílias e da aldeia. Isto nunca antes tinha acontecido e desde então nunca mais aconteceu.8

15. A Revolução Cultural: Saúde e economia

Saúde

Vejamos como eram os cuidados de saúde durante a Revolução Cultural. Deixem-me dizer isto em termos simples. A China maoista, que não era um país rico, conseguiu criar aquilo que os EUA nem chegaram perto de ter: um sistema universal de cuidados de saúde. Os cuidados de saúde eram fornecidos gratuitamente ou a baixo custo e o sistema de saúde guiava-se por princípios de cooperação e igualitarismo.

A ênfase na China de Mao era a prevenção, a higiene e outras medidas de saúde públicas de massas. Durante a Revolução Cultural, o foco das despesas de saúde e distribuição de recursos mudou para as zonas rurais, ainda que apesar disso os cuidados de saúde em geral também tenham melhorado nas cidades. Mesmo nas regiões mais remotas do país, estavam disponíveis vários serviços médicos.

Nas zonas rurais, cada comuna tinha uma rede de saúde que incluía uma grande clínica ou um hospital, unidades de saúde e consultórios médicos ao nível das aldeias. O custo médio anual dos serviços médicos para os camponeses era de 1 a 2 dólares. Um dos mais emocionantes desenvolvimentos da Revolução Cultural foi o movimento dos “médicos pés-descalços”. Eram jovens camponeses ou jovens urbanos enviados para as zonas rurais que tinham recebido um treino rápido em cuidados básicos de saúde e medicamentos orientados para satisfazerem as necessidades locais e que eram capazes de tratar as doenças mais comuns. Os médicos das cidades também iam às zonas rurais — durante essa época, em qualquer momento dado, um terço dos médicos urbanos estava a trabalhar nas zonas rurais.

E os cuidados de saúde também melhoraram nas cidades. No início da década de 1970, Xangai tinha uma taxa de mortalidade infantil mais baixa que a da Cidade de Nova Iorque nessa altura. E, como mencionei no início desta conferência: a esperança de vida no tempo de Mao duplicou de 32 anos em 1949 para 65 anos em 1976.

Vocês ouvem todas essas acusações sobre o número de mortes de que Mao seria responsável. Mas a verdade é que a revolução socialista salvou de facto dezenas de milhões de vidas. Se não fosse a revolução, calculem todas as mortes prematuras e evitáveis causadas pela subalimentação, pobreza, ausência de cuidados médicos básicos, falta de preparação e capacidade institucional para responder a catástrofes naturais. Não há comparação.

Amartya Sen, galardoado com um Prémio Nobel, salientou que, em 1949, a China e a Índia tinham semelhanças notáveis no seu desenvolvimento social e económico. Mas, continua Sen, durante as três décadas seguintes, “há poucas dúvidas de que, no que diz respeito à morbilidade, mortalidade e longevidade, a China teve um grande e decisivo avanço em relação à Índia”. Como resultado disto, Sen estima que teriam morrido menos perto de quatro milhões de pessoas na Índia até 1986 se a Índia tivesse tido o sistema de cuidados de saúde e a rede de distribuição de alimentos da China de Mao.9

Noam Chomsky fez um cálculo interessante tendo por base os dados de Sen. Há um ensaio anticomunista chamado O Livro Negro do Comunismo. Este livro fala sobre aquilo a que chama o “colossal fracasso” do comunismo e acusa o comunismo de ter causado a morte de 100 milhões de pessoas. Ora, mesmo que esse número fosse verdadeiro — que não é —, ainda assim, como diz Chomsky, e deixem-me citar: “Na Índia, a ‘experiência’ capitalista democrática desde 1947 causou mais mortes que toda a história da ‘colossal e completamente fracassada (...) experiência’ do comunismo em todo o lado desde 1917: mais de 100 milhões de mortes até 1979, e dezenas de milhões mais desde então, só na Índia.”10

Transformação económica

Em termos económicos: a China maoista conseguiu impressionantes sucessos. Atingiu um rápido desenvolvimento na agricultura, na indústria, nos transportes e na construção. A indústria cresceu a uma taxa média anual de 10% durante a Revolução Cultural, que é um valor elevado mesmo segundo os padrões capitalistas. A China construiu uma base industrial moderna que combinava indústria pesada e ligeira, sem depender de empréstimos ou investimentos estrangeiros. A agricultura cresceu a cerca 3% ao ano, acompanhando o crescimento da população. O fosso entre a cidade e o campo foi reduzido e o bem-estar global dos camponeses melhorou.

E, como mencionei antes, em 1970 a China conseguia produzir e distribuir os alimentos necessários para evitar a fome e a subalimentação. Isto foi conseguido através de um sistema de planificação centralizada em que a indústria foi orientada para servir a agricultura; de um sistema de agricultura coletiva que promovia a mobilização de base; através do controlo das cheias; de um contínuo investimento em infraestruturas rurais, da distribuição equitativa de alimentos aos camponeses e do racionamento dos alimentos essenciais de maneira a que todas as pessoas tivessem garantidos os seus requisitos mínimos. Isto foi uma rutura radical com o passado da China.

Num mundo em que perto de mil milhões de pessoas sofrem de subalimentação e fome, as lições são muito profundas.

A China maoista tomou uma via sem igual de desenvolvimento económico. Iniciou um processo de industrialização que não foi ao mesmo tempo um processo de urbanização caótica e não planificada. Foram feitos esforços conscientes para restringir o crescimento e a dimensão das cidades e para desenvolver cidades de pequena e média dimensão. A indústria foi descentralizada para eliminar as desigualdades regionais. Foram canalizados recursos para as regiões mais pobres. Foi dada ênfase a tratores e maquinaria adequados às condições rurais. Tudo isto contém lições muito importantes para o mundo de hoje.

O socialismo é criticado por produzir sistemas hiperburocratizados de planificação. E, sim, esse foi um perigo que teve de ser reconhecido e restringido. Mas na China maoista houve uma abordagem mais flexível à planificação que conseguiu combinar a coordenação centralizada com a iniciativa e o controlo locais. As empresas industriais e agrícolas cooperavam entre si. A saúde, o meio ambiente e a segurança dos trabalhadores eram uma preocupação da planificação local. Quando havia desastres naturais, o estado proletário reunia recursos e mobilizava as pessoas para agirem em conjunto e implementarem planos coerentes.

O desenvolvimento económico na China maoista baseava-se, acima de tudo, nas massas, armadas de uma compreensão política das metas e contradições da revolução socialista e com uma perceção do seu papel decisivo no refazer da sociedade.

Este sistema de planificação centralizada guiado por princípios socialistas está a um mundo de distância da economia capitalista. No capitalismo, o lucro guia o que é feito e como é feito. As unidades privadas de capital, cada uma delas prosseguindo os seus próprios interesses, competem umas com as outras a uma enorme escala. Neste sistema anárquico, não há nem pode haver nenhuma planificação racional em toda a sociedade para satisfazer as necessidades sociais.

Vejam como é o mundo que o capitalismo produz. Estou a falar do acentuar do fosso entre ricos e pobres... Estou a falar das megacidades do Terceiro Mundo com os seus anéis de favelas esquálidas... Estou a falar das vastas novas zonas de exploração criadas para servirem as empresas transnacionais... Estou a falar da inexorável mercantilização da natureza — desde as patentes empresariais de sementes e herbicidas naturais à privatização da água em países africanos atingidos pela seca. A China maoista estava a avançar numa direção completamente diferente.

16. A derrota do socialismo na China e as lições para o futuro

A China já não é socialista

China já não é a sociedade que acabei de descrever. Já não é socialista. Em 1976, Deng Xiaoping liderou um golpe de estado que derrubou o regime proletário. Os seguidores da via capitalista, contra quem Mao tinha liderado a luta popular, ganharam.

As políticas desta nova classe capitalista conduziram a uma extrema polarização económica e social. A China foi transformada numa plataforma de mão-de-obra barata para as empresas transnacionais. E sim, algumas pessoas na China ficaram muito ricas e uma nova classe média está a expandir-se rapidamente. Mas que significa tudo isto para as vastas massas populares? Façamos um rápido instantâneo:

  • As fábricas nas zonas económicas especiais sujeitam os trabalhadores a longas e insuportáveis jornadas de trabalho, a uma alimentação de má qualidade, a dormitórios apinhados, a maus tratos por parte dos gestores.
  • Os camponeses estão sujeitos a impostos exorbitantes e ao não-pagamento das colheitas pelo estado. Os governos locais conluiados com os promotores imobiliários estão envolvidos em massivas apropriações de terras. Isto tem desencadeado vagas de protestos dos camponeses.
  • 200 milhões de camponeses migrantes vagueiam pelas zonas rurais e fluem para as cidades em busca de trabalho, sem garantia de emprego ou alojamento.
  • Só entre 1995 e 2000, 48 milhões de trabalhadores foram despedidos de empresas estatais.
  • A prostituição é galopante nas cidades. Há agora um mercado mundial de bebés chinesas indesejadas em rápida expansão.
  • O desmantelamento das comunas nas zonas rurais levou ao colapso do sistema rural de saúde pública. Isto foi um importante fator na expansão da epidemia de SARS [síndrome respiratória aguda grave] em 2003. A indústria do sexo em rápida expansão, o aumento do uso de drogas intravenosas e o facto de os camponeses desesperados estarem agora a vender sangue para sobreviverem têm contribuído para uma crise de SIDA/AIDS.
  • A introdução de práticas de mercado livre nos campos significou que as escolas rurais estão agora a ser financiadas por matrículas e outras receitas. O resultado é que muitos aldeãos pobres já não conseguem mandar os seus filhos à escola.
  • As cidades estão sufocadas em poluição; os resíduos industriais estão a ser vazados para os rios; as reservas florestais estão a ser abatidas — é este o preço ambiental de um negligente mastodonte económico na China que é glorificado no Ocidente.

Onde Mao disse “servir o povo”, Deng Xiaoping disse “ficar rico é glorioso”.

O capitalismo foi restaurado na China.

Avançar com base na primeira vaga de revoluções socialistas

A derrota da revolução chinesa em 1976 marca o fim de uma etapa. A primeira vaga de revoluções proletárias chegou ao fim. A Revolução Bolchevique de 1917 foi o primeiro passo em frente na tomada do poder e de usar esse poder para construir uma nova sociedade. A Revolução Chinesa, e sobretudo a Revolução Cultural, representou um avanço para além da experiência soviética.

Mao Tsétung estava à procura de um meio e um método de impedir que uma nova classe capitalista tomasse o poder. Ele abriu novos caminhos de tentar resolver esse problema. Criou uma via de transformação revolucionária que é mais libertadora e mais consistente com os meios e as metas da revolução comunista do que no caso da União Soviética quando esta era socialista entre 1917 e 1956. Apesar disso, o proletariado foi derrotado na China.

Não há nenhum país socialista no mundo de hoje. Mas ainda estamos num ponto de desenvolvimento da sociedade em que a humanidade tem de avançar para além do capitalismo.

O capitalismo não é o fim da história. Na realidade, é o principal obstáculo à concretização do potencial para um mundo diferente.

É por isso que temos de aprender com esta primeira vaga de revoluções socialistas. Temos de avançar a partir dos melhores aspectos da experiência soviética e sobretudo da experiência maoista. Mas também temos de criticar as coisas que se interpõem ao avanço rumo ao comunismo.

Precisamos de uma nova síntese e compreensão marxista-leninista-maoista. E é precisamente isso que Bob Avakian, Presidente do Partido Comunista Revolucionário, EUA, tem vindo a formular. Recomendo vivamente que estudem obras dele como: O Fim de Uma Etapa e o Início de Uma Nova Etapa;11 Ditadura e Democracia, e a Transição Socialista para o Comunismo;12 Como Vencer a Colina;13 e a recém-publicada Observações sobre Arte e Cultura, Ciência e Filosofia.14

Conclusão — A nova visão do socialismo de Bob Avakian

Bob Avakian elaborou um novo modelo radical da sociedade socialista.

A ditadura do proletariado é a forma de poder de estado e de governo de classe que permite ao proletariado e seus aliados tomarem as rédeas da sociedade... para a transformarem... e para a fazerem avançar para o comunismo: uma comunidade de seres humanos livremente associados. É necessária uma liderança firme e visionária que guie as complexas e difíceis lutas para alcançar esta meta da sociedade sem classes. E é necessário preservar o poder, pois não queremos deixar que os capitalistas regressem ao poder.

Mas, como diz Avakian, este novo poder tem de valer a pena ser preservado. O socialismo tem de ser um lugar vibrante e entusiasmante em que as pessoas queiram viver... e que abra a porta ao comunismo. Avakian tem analisado diversos aspectos deste desafio de uma maneira que tem alargado os horizontes do marxismo. Quero aqui realçar parte do que Avakian tem vindo a analisar sobre o fermento intelectual e a dissensão na sociedade socialista.

A importância do fermento intelectual

No socialismo, as massas populares são incentivadas a governar e a transformar a sociedade rumo à meta do comunismo. É uma sociedade em que queremos e precisamos de unir e liderar vastos setores do povo para que abracem a meta da criação de um mundo novo. Em relação a isto, Avakian tem chamado a atenção para a importância das esferas intelectuais, artísticas e científicas na sociedade socialista e para o papel particular que os intelectuais podem desempenhar na sociedade socialista.

Os intelectuais e o fermento intelectual podem contribuir para o dinamismo e o espírito crítico que devem caracterizar a sociedade socialista. Um dos aspectos muito positivos da vida intelectual é a tendência para olhar para as coisas de novas maneiras e de novos ângulos, para desafiar o statu quo e o pensamento convencional. É preciso que seja muito mais assim no socialismo. O fermento intelectual e científico é essencial para a busca da verdade — para que as pessoas conheçam mais profundamente o mundo, de maneira a que este possa ser mais completamente transformado.

As pessoas que estão no fundo da sociedade têm sido historicamente excluídas da esfera do “trabalho com as ideias”. A sociedade burguesa cria ilhas e bolsas onde uma minoria se pode ocupar da esfera das ideias, enquanto a grande maioria da humanidade é explorada e impedida de prosseguir uma atividade intelectual. A sociedade socialista tem de transformar esta situação. Tem de pôr fim à exploração e capacitar as massas populares a trabalharem com ideias, a se envolverem com todo o tipo de questões e a participarem na sociedade de uma maneira plena. Isto foi algo que a Revolução Cultural tentou fazer de uma maneira muito poderosa.

Ao mesmo tempo, Avakian mostrou que a sociedade socialista precisa de dar margem e espaço aos intelectuais, aos artistas e aos cientistas. O objetivo não é manter e reproduzir as relações de redoma de vidro que existem nas sociedades capitalistas divididas em classes. Mas também não é asfixiar nem pôr um colete-de-forças aos intelectuais. Queremos unir-nos a eles e liderá-los.

Deve dizer-se que houve um problema com as anteriores sociedades socialistas. Havia uma tendência para ver a atividade intelectual que não estivesse diretamente ao serviço nem ligada ao programa do estado socialista num dado momento como não sendo importante — ou como sendo disruptiva desse programa.

Ora, ao desenvolver esta compreensão e ao apontar estas fraquezas, Avakian tem retraçado a experiência da revolução proletária nas esferas intelectual e científica.

Lições do caso Lysenko

Vejamos o famoso caso Lysenko. Lysenko era um agrónomo soviético de origem proletária. Na década de 1930, ele defendeu a teoria de que características adquiridas poderiam ser herdadas. Essa teoria é incompatível com a biologia e a genética modernas. Mas ela era atrativa porque prometia uma rápida expansão da produção de cereais. E, como salientei quando discuti a experiência soviética, havia uma necessidade real de resolver problemas económicos chave.

Estaline promoveu fortemente Lysenko e as ideias dele. Muitos dos cientistas que criticavam Lysenko eram da velha guarda académica. E alguns deles eram politicamente reacionários. E as críticas deles foram reprimidas. Mas o problema era o seguinte: eles tinham razão em relação à ciência e Lysenko estava errado.

Avakian vê isto como emblemático de um problema no movimento comunista internacional. Tem havido tendências para pensar que só os marxistas detêm a verdade. Tem havido tendências para assumir que, se uma pessoa é politicamente reacionária, então isso significa que as ideias científicas ou intelectuais dela devem ser suspeitas ou incorretas.

Mas isto não é uma abordagem marxista à verdade. A verdade é a verdade, independentemente de onde venha. Os reacionários podem ter uma verdade parcial. Ter uma origem proletária ou ter um compromisso com o marxismo e a transformação revolucionária não é garantia de que se tenha a verdade. As teorias devem ser julgadas numa base científica.

O marxismo precisa de ser levado, adotado e criativamente aplicado a diferentes esferas da inquirição intelectual — porque o marxismo é o reflexo mais sistemático e científico da realidade material em toda a sua variabilidade. O marxismo permite a mais rica síntese de diferentes ideias e compreensões. O marxismo permite que se retirem lições da realidade ao serviço dos interesses das massas populares de transformação do mundo. Mas o marxismo não substitui as características específicas das diferentes esferas do conhecimento e da prática científica. E os marxistas não têm sempre razão. Frequentemente outras pessoas possuem a verdade.

Por isso, é necessário que exista uma dinâmica na sociedade socialista em que haja esta luta pela verdade, com toda a sua riqueza e intercâmbio, em que o marxismo está a ser promovido e criativamente aplicado. Queremos seguir a verdade, onde quer que ela conduza. Isto é essencial para se chegar ao comunismo.

A dissensão e os direitos das pessoas

Na sua nova visão do socialismo, Bob Avakian tem sublinhado o papel da dissensão na sociedade socialista. Avakian tem dito que a dissensão deve ser não só permitida mas também ativamente fomentada, incluindo a oposição ao governo.

Isto é algo completamente novo na compreensão dos comunistas. Porque é a dissensão tão importante? Porque ela revela defeitos e problemas na nova sociedade... Porque contribui para o espírito crítico que tem de permear a sociedade socialista e faz progredir a busca da verdade... E porque a dissensão pode contribuir para as lutas por uma ainda maior transformação da sociedade. Não chegaremos ao comunismo sem este tipo de convulsão.

Ora, o que estou a discutir é de facto um aspecto da democracia sob ditadura do proletariado. Não se pode permitir que algumas pessoas se organizem para derrubar o sistema. Mas também não se pode criar uma situação em que as pessoas têm medo de criticar o regime e de enfrentar a repressão, como aconteceu na União Soviética no tempo de Estaline. As pessoas têm de sentir que têm espaço para discordar com aqueles que estão em posições de autoridade. E a sociedade socialista tem de disponibilizar os recursos e os meios para que as pessoas possam exprimir esses pontos de vista.

A sociedade socialista é organizada para atingir a meta de abolir todas as classes e distinções de classe; de eliminar todos os sistemas e relações de exploração; de eliminar todas as instituições e relações sociais opressoras, como a opressão das mulheres; e de capacitar as pessoas a abandonarem todas as ideias e valores opressores e escravizadores.

Esta meta será escrita na Constituição da sociedade socialista. Esta Constituição também irá institucionalizar o direito da grande maioria da sociedade a falar, a divergir, a fazer greve, a protestar, etc. Mas a classe dominante derrubada e os representantes políticos e agentes dela não terão esses direitos. E aqueles que estejam a trabalhar ativamente para derrubar o sistema socialista terão os seus direitos retirados ou restringidos conforme os seus crimes na velha sociedade ou na nova sociedade socialista.

Isto não pode ser decidido arbitrariamente na sociedade socialista. Será abordado e decidido através de procedimentos e processos constitucionalmente estabelecidos e decretados. Os pontos de vista políticos e ideológicos reacionários, incluindo aqueles que se opõem ao sistema socialista e às políticas do governo, não serão reprimidos — exceto quando envolverem, ou fizerem diretamente parte, de tentativas de organizar de facto o derrube do sistema socialista.

Avakian tem escrito que seria bom permitir que mesmo os reacionários publiquem alguns livros e tenham a palavra na sociedade socialista. Isto contribuiria para o processo através do qual as massas populares aprenderiam a conhecer o mundo mais plenamente e a conseguir distinguir mais cuidadosamente o que corresponde e o que não corresponde à realidade, e o que corresponde e o que não corresponde aos seus interesses fundamentais de abolição da exploração, da opressão e das desigualdades sociais. Isto é uma forma importante de as massas conseguirem participar melhor no governo da sociedade e na transformação da sociedade e do mundo inteiro rumo à meta do comunismo.

O desafio perante nós

Este modelo de sociedade socialista está encapsulado naquilo a que Avakian chama “núcleo sólido com muita elasticidade”. O poder tem de ser preservado e a sociedade tem de estar a avançar rumo ao comunismo, não a regressar ao capitalismo. Isto é o núcleo sólido. Mas, no quadro de uma sociedade que está a eliminar todas as formas de exploração, opressão e desigualdade, tem de haver elasticidade: um grande debate, fermento, experimentação, convulsão e as pessoas a explorarem todo o tipo de direções criativas e diversificadas.

Bob Avakian examinou a experiência da revolução socialista desta maneira crítica e desafiadora. Da perspetiva de como a humanidade pode chegar ao comunismo. Avakian produziu uma extensa obra. E eu encorajo as pessoas a conhecerem os textos dele. Creio que as pessoas serão estimuladas e ficarão surpreendidas e inspiradas quando o fizerem.

Portanto, deixem-me concluir. Comecei por falar da urgência deste momento na história mundial. Está a humanidade condenada à cruel ordem do mundo de hoje? Ou será possível um outro mundo... um mundo radical e empolgantemente diferente? Sim, é. E que tem a experiência da revolução proletária dos últimos 100 anos a ver com isto? Muito. Esta primeira vaga da revolução marcou um começo... um começo histórico. Houve grandes feitos. Mas nós temos de conseguir mais. Temos de ir mais longe e melhor.


Notas

1  Jung Chang e Jon Halliday, Mao: A História Desconhecida. Edição portuguesa: Bertrand Editora, Lisboa, 2005. Edição brasileira: Companhia das Letras, 2012. [Nota do Tradutor]

2  John Reed, Dez Dias Que Abalaram o Mundo. Edição portuguesa: Jornal do Fundão, 1974. Edição brasileira: Penguin-Companhia, 2010. [Nota do Tradutor]

3  Citado no Informe ao IX Congresso Nacional do Partido Comunista da China, Pequim, Edições em Línguas Estrangeiras, 1969:

4  Da 11ª Parte, “Life and Death Situations...The Exercise of Power and the Rights of the People” [“Situações de vida ou morte... O exercício do poder e os direitos das pessoas”], da série On Proletarian Democracy and Proletarian Dictatorship: A Radically Different View of Leading Society [Sobre a democracia proletária e a ditadura do proletariado: Uma visão radicalmente diferente sobre como dirigir a sociedade]:

Um índice da série completa está disponível em:

5  Jan Myrdal e Gun Kessle, China: The Revolution Continued [China: A Revolução Continuou], Nova Iorque: Vintage, 1972, p. 106-107.

6  “Decisão do Comité Central do Partido Comunista da China Sobre a Grande Revolução Cultural Proletária” (Tomada a 8 de agosto de 1966), p. 8-11, Lisboa, Publicações Nova Aurora, 1975:

7  Xueping Zhong, Wang Zhen e Bai Di (eds.), Some of Us – Chinese Women Growing Up in the Mao Era [Algumas de Nós: Mulheres Chinesas Que Cresceram na Era de Mao], New Brunswick: Rutgers University Press, 2001.

8  Mobo Gao, “Debating the Cultural Revolution: Do We Only Know What We Believe?” [“Debatendo a Revolução Cultural: Será que só sabemos aquilo em que acreditamos?”], Critical Asia Studies, 34:3 (2002), p. 427-28, tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1467271022000008956 (em inglês).

9  Jean Drèze e Amartya Sen, Hunger and Public Action [Fome e Ação Pública], Oxford, Clarendon Press, 1989, p. 205 e 214, polsci.ucsb.edu/faculty/glasgow/ps15/DrezeSen.pdf (em inglês).

10  Noam Chomsky, “Millennial Visions and Selective Vision, Part One” [“Perspetivas milenaristas e perspetiva seletiva, 1ª Parte”], Z Magazine, 10 de janeiro de 2000, znetwork.org/zcommentary/millennial-visions-and-selective-vision-part-one-by-noam-chomsky/ (em inglês).

11  Bob Avakian, The End of a Stage—The Beginning of a New Stage [O Fim de Uma Etapa — O Início de Uma Nova Etapa], revista Revolution n.º 60, outono de 1990 (Chicago: RCP Publications, 1990):

12  Bob Avakian, Dictatorship and Democracy, and the Socialist Transition to Communism [Ditadura e Democracia, e a Transição Socialista para o Comunismo]:

13  Bob Avakian, Getting Over the Hump [Como Vencer a Colina]:

14  Bob Avakian, Observations on Art and Culture, Science and Philosophy [Observações sobre Arte e Cultura, Ciência e Filosofia]. Alguns excertos estão disponíveis através de:

 

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