Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 10 de Abril de 2006, aworldtowinns.co.uk
De um correspondente:
Com o futuro bloqueado, os jovens franceses bloqueiam as vias-férreas
A 10 de Abril, numa importante concessão ao movimento estudantil francês, o politicamente humilhado Presidente francês Jacques Chirac anunciou que abandonava a cláusula mais contestada da Lei do Trabalho que ele obstinadamente tinha feito aprovar ainda na semana anterior. O seu primeiro-ministro, Dominique de Villepin, com um ar derrotado, pediu ao Parlamento que substituísse a cláusula que permitia o despedimento sem justa causa de trabalhadores com menos de 26 anos durante os seus dois primeiros anos em qualquer emprego.
As direcções sindicais aceitaram isso como o fim dessa batalha. Entre os estudantes universitários e do secundário, os sentimentos eram mistos. Em muitos estabelecimentos de ensino os manifestantes levantaram imediatamente as suas barricadas para que os estudantes pudessem preparar-se para o fim dos exames deste ano. Noutras escolas, eles votaram a continuação dos bloqueios e a preparação de novas acções. Em muitos lugares, os estudantes organizaram reuniões de massas para ver se e como poderiam manter algum do impulso sob novas formas e se poderiam continuar a opor-se à lei do emprego para jovens na sua totalidade e às mais recentes medidas repressivas do governo contra os imigrantes. O seguinte relato de um dia de acção em Paris a 6 de Abril – típico do que aconteceu nessa semana por todo o país – foi-nos enviado por um leitor de França. Encorajamos os nossos leitores a enviarem-nos mais relatos em primeira mão deste tipo.
Nessa manhã, o cartaz dizia: “AG [Assembleia Geral] às 1:30h”. Isso parecia estranho, uma vez que os jovens do secundário normalmente fazem mais cedo as suas reuniões diárias de massas. Quando regressei à hora marcada, descobri que todos eles sabiam algo que eu não sabia. Em vez de se reunirem hoje, estavam a preparar uma operação coup de poing, uma acção militante surpresa.
Estamos numa zona operária próxima de Paris. K., o líder, é um rapaz mais velho cujos pais são da Argélia. Próximo dele está F., uma rapariga cujo véu multicolor não é um clássico hijab discreto, mas que também cobre todo o seu cabelo. O seu longo impermeável contrasta com a pele visível de algumas das outras raparigas. Ela está sempre no centro das reuniões e da acção. Depois há o W., um miúdo branco cuja mãe é dirigente da federação sindical CGT e do PCF (o Partido Comunista que há décadas renunciou ao comunismo mas que manteve o nome e a lealdade de uma parte dos trabalhadores sindicalizados). Ele diz ser a favor do comunismo, mas não tem a certeza do que isso significa. A. é um jovem negro bem-falante que faz imensas perguntas sobre tudo. Muitos dos miúdos reconhecem-se pelas suas indumentárias bem definidas: jovens negros que se autodenominam hardcore e usam calças largas e sweatshirts; jovens hippies brancos com os seus longos cabelos presos por fitas. (Os jovens têm uma regra para os jornalistas: nenhum nome, poucos detalhes.)
Cerca de 80 miúdos juntam-se instantaneamente e alguns segundos depois estão dentro de um comboio rumo à Gare Saint Lazare, uma das principais estações de comboios de Paris. Com o barulho do comboio como fundo, uma rapariga que se senta perto de mim diz-me: “Agora estamos a sentir o nosso poder. Queremos a anulação do CPE [a lei do emprego para jovens que esteve no centro deste movimento de protesto desde Janeiro]. Mas agora também queremos derrubar o governo. Depois não sei. Talvez tenhamos de nos envolver mais na política.” Com isto ela queria dizer a política eleitoral.
Os estudantes querem a demissão do envelhecido Presidente gaullista Jacques Chirac que há pouco aprovou a lei do primeiro-ministro Dominique de Villepin que a enviara ao parlamento sem discussão para descobrir que o seu próprio partido não estava muito disposto a defendê-lo quando as coisas se tornaram mais difíceis. Mas eles estão preocupados com Nicolas Sarkozy, o Ministro do Interior e rival de Villepin. O responsável máximo pela polícia do país, Sarkozy foi um alvo da rebelião juvenil dos subúrbios guetizados, em Novembro passado. Em Março, encabeçou a repressão policial aos estudantes que tomaram a Sorbonne, um símbolo da revolta universitária desde Maio de 1968. Sarkozy vangloriara-se que o pacote legislativo sobre o emprego dos jovens tinha sido ideia sua; agora está a tentar dissociar-se dele. Muitos estudantes temem que Sarkozy se aproprie dos frutos da sua luta e emirja como vencedor das eleições presidenciais do próximo ano.
Um rapaz perto de nós discorda da definição da colega sobre política. Nada de bom veio alguma vez da política eleitoral, argumenta ele; se entrarem agora nessa forma de pensar, estão tramados. A rapariga não tem a certeza. Discutem sobre se o governo Mitterrand, cuja eleição em 1980 marcou o ponto final na ebulição social dos anos 60 e 70, teria ou não feito as coisas melhorarem ou piorarem. Nenhum deles conseguiu indicar um nome de qualquer dirigente actual do Partido Socialista em que pudessem confiar (e dificilmente algum jovem o poderia fazer). O rapaz cita uma manchete do jornal Libération: “A esquerda apressa-se para não fazer nada” – quer dizer, para não tomar nenhuma posição clara nesta crise.
Descem do comboio e caminham através dos últimos quarteirões antes da Gare Saint Lazare, à espera que a polícia não os veja chegar. Quando lá chegam, bandos de Robocops de capacete já estão frente à entrada. Aparentemente, cerca de 50 jovens tinham bloqueado a via-férrea nessa manhã e a polícia tinha retomado o controlo da situação. Toda a gente se afasta em passo acelerado e caminha pela cidade num dos principais boulevards de Paris. São agora vários milhares, estudantes de outras escolas secundárias de dentro e fora de Paris, estudantes universitários e alguns jovens em roupas de trabalho e com autocolantes sindicais. À medida que passamos pelos edifícios comerciais, toda a gente canta: “Juntem-se a nós, juntem-se a nós, jovens e trabalhadores, na rua, todos unidos!” Numa rua de lojas de luxo, alguns transeuntes fazem o sinal do polegar para cima, outros apontam os polegares para baixo. Os folhetos são poucos e parecem improvisados pelos próprios estudantes, alguns com um forte elemento utópico. Um panfleto anarquista fala de “uma explosão de alegria e raiva contra o sistema capitalista”. Alguns professores e outros veteranos de cabelo grisalho dos anos 60 aparecem aqui e ali entre os rostos jovens. Não há nenhum sinal de presença de qualquer partido político.
O seu destino é secreto, mas ninguém se preocupa. Têm apenas um pensamento quanto ao que querem fazer hoje: obrigar o governo a desistir, elevar o custo da recusa do governo em escutá-los. Muita gente diz: “Agora estamos a fazer coisas que os atingem na carteira”. Aproximamo-nos da Gare du Nord, uma das mais importantes estações de comboios do país. A entrada secundária de acesso aos comboios suburbanos ainda está aberta. Os poucos guardas de segurança afastam-se. Agora, todos correm para entrar antes que seja tarde de mais. A luz do sol flui pela parede de vidro da entrada e os jovens fluem sob os seus raios. Todos gritam, não ameaçadoramente, mas numa expressão de excitação e alegria, alto e sem palavras.
Atravessam a estação, passam as plataformas e os comboios prestes a partir para o norte da França, a Bélgica, a Alemanha e a Grã-Bretanha. Na plataforma cheia de passageiros, uma rapariga que representa o comité coordenador dos estudantes universitários lê uma lista de exigências: a anulação do CPE (a cláusula que permite o despedimento instantâneo de jovens com menos de 26 anos) e de todo o pacote de emprego para jovens conhecido como “Oportunidades Iguais”, incluindo o deixar que miúdos de 14 anos abandonem a escola e que os que têm mais de 15 anos possam trabalhar à noite; e a anulação da legislação de Sarkozy contra os imigrantes. Alguns desses miúdos, incluindo o grupo com que estou, tornaram-se activos durante o último ano nos comités das escolas secundárias locais de apoio a colegas ameaçados de expulsão de França. Sarkozy encabeçou as autoridades numa busca às listas de estudantes do último ano, à procura de jovens que quando chegassem aos 18 anos estivessem sem documentos legais e assim se tornassem expulsáveis – alguns meses ou mesmo semanas antes de conclusão dos seus cursos.
Uma voz aparece no altifalante, uma voz feminina que eu sempre pensei ser sintética. Canta uma curta melodia mas, em vez de anunciar o próximo comboio, diz, calma e alegremente como sempre: “Cuidado com os fios eléctricos em cima. Por favor, baixem os vossos cartazes.” Meio a correr sob a luz do sol, por cima das linhas, os jovens espalham-se ao longo de um quilómetro ou dois da via-férrea.
E agora? Tudo parece estranhamente sossegado depois dos ecos da estação. Grupos dispersos de miúdos conversam em todo o lado, alguns sentados nas linhas, outros vagueando à volta ou dançando ao som dos tambores. Nenhum polícia à vista, apenas algumas dezenas de trabalhadores ferroviários parados à sua volta, a observar. Interrogo-me sobre a sua atitude. Muitos deles são membros da CGT.
Alguns dias antes, durante o dia nacional de manifestações de 4 de Abril, as brigadas de segurança da CGT, como sempre, assumiram para si a manutenção da “ordem.” No final da manifestação de Paris, montaram um perímetro entre o principal grupo de manifestantes e os jovens que escarneciam e atiravam pedras ao grande número de polícias que guardavam os edifícios. Armado com os mesmos bastões telescópicos metálicos pesados usados pela polícia à paisana, um bando de valentões da CGT protegeu as instalações do Banco da China. Jovens negros e outros entraram em escaramuças com a polícia e, de vez em quando, entre eles próprios e com outros manifestantes. Mas a coisa mais feia que eu vi nesse dia foi isto: um miúdo negro de 15 anos, solitário e esquelético, deitado no chão enquanto meia dúzia de mercenários sindicais brancos mais velhos e corpulentos, o espancavam e pontapeavam. Não foi o incidente mais violento do dia, mas dizia muito sobre a divisão na classe operária, entre o sector mais baixo, sobretudo os jovens, que vos poderão dizer instantaneamente que não têm nada a perder, e esses trabalhadores (e sobretudo os seus representantes políticos) que podem combater ferozmente o governo mas que temem e se opõem a qualquer desorganização social profunda.
Porém, hoje, nas vias-férreas, a situação foi diferente. Os trabalhadores ferroviários mostraram simpatia. Ao nosso lado está um decrépito comboio suburbano vazio; do outro lado, está uma nova e grande locomotiva de alta velocidade. A sua buzina toca ao ritmo dos gritos: “Re-sis-tência!” Os miúdos discutem sobre se devem ou não sabotar as linhas e o equipamento de mudança de via. Alguns tentam; outros apelam a que se tenha cuidado para não se danificar nada. Alguns pegam em picaretas e noutras ferramentas de trabalho, mas não têm a certeza do que fazer com elas. Fala-se em erguer barricadas.
Falando com um grupo de raparigas de uma escola secundária de um bairro mais pobre do norte de Paris, faço a mesma pergunta que tenho feito repetidamente, como tantos outros jornalistas. O que é que realmente querem? Uma responde: “Bem, nós queremos o CPE anulado. E queremos derrubar o governo. E depois precisamos de uma revolução planetária.” Todos se riem. “Bem, nós iremos fazê-la”, diz ela, “mas primeiro vamos derrubar o governo e depois veremos.”
Em Novembro, quando os jovens dos guetos se revoltaram, o governo e toda a “classe política” uniram-se contra eles. Era inconcebível que deixassem o governo cair às mãos da “escumalha”, como Sarkozy os chamou. Uma coisa diferente agora é que a unidade da classe política foi bastante debilitada. Não é inconcebível que haja demissões ao mais alto nível. Mas muitos estudantes se interrogam: se o governo se demite e há eleições, então o quê? De qualquer modo, derrubar o governo já é um bom começo.
O governo tentou combinar a sua autoridade com tentativas de dispersar o movimento dizendo, essencialmente, primeiro deixem passar a lei e depois nós podemos pensar nisso. Um slogan popular escarnece hoje essa atitude. Alguém pintou a spray em letras gigantes nas paredes ao longo da linha: “Primeiro façam a revolução e depois nós podemos pensar nisso”. O slogan não deve ser tomado literalmente, porque esses miúdos estão constantemente a pensar e a discutir sobre que tipo de futuro querem e para onde deve ir o seu movimento. Parece não haver nenhum consenso sobre alguma solução, apenas uma determinação em continuar a agir e a discutir e a pensar.
A atmosfera festiva torna-se negra de repente, embora o céu continue azul. Alguns polícias de choque CRS surgem nas linhas, a cerca de 50 metros à frente da multidão. Não eram suficientes para preocupações; de facto, eles próprios pareciam assustados. Mas a atenção de todos mantém-se focada. Então, mais umas centenas de CRS são despejados de uma porta escondida na parede e formam uma linha de combate de uma parede à outra. Há alguns empurrões e encontrões. Alguns miúdos são borrifados com mace. De repente, sem um sinal aparente, os capuzes são puxados para cima – uma grande minoria cobre as suas cabeças e rostos. Algumas pedras, archotes e barras de metal voam em direcção à linha policial. A maioria dos jovens grita “Não! Não!” em desaprovação. Por enquanto, há bastantes pedras em todo o lado. Mas uma outra linha de polícias está a aparecer na direcção oposta, saindo da estação por trás de nós, só a luz do sol que se reflecte nos seus capacetes os torna visíveis ao longe. Fomos apanhados.
Os jovens estão calmos. Já passaram por isto, alguns deles nessa mesma manhã. Os líderes gritam aos megafones para que todos se agrupem. Se a polícia carregar, agarrem as mãos, diz alguém. Nem todos estão convencidos. Alguns jovens escalam uma parede para um edifício de apartamentos de onde podem conseguir escapar, mas os megafones dizem: “Não vamos conseguir sair todos por aí, por isso fiquemos todos juntos.” As pessoas dão o seu melhor para se manterem desinteressados. Finalmente, abre-se um portão lateral e os manifestantes começam a subir uma escada de serviço. À medida que os polícias se aproximam, muitos dos miúdos que saem começam a andar mais lentamente. Uma hora depois, um punhado deles ainda está sentado, a conversar e a fumar cigarros nas linhas, com os polícias atrás deles. “Estamos a sair, mas custaremos muito dinheiro ao governo antes de partirmos”, exclama uma rapariga. A hora de ponta aproxima-se.
Mais tarde, soubemos mais sobre o que poderia ter acontecido. Em Toulouse, uma cidade do sul de França, a polícia preparava-se para carregar sobre várias centenas de estudantes sentados nas linhas. Eles gritaram: “Trabalhadores ferroviários, juntem-se a nós!” Um representante da CGT local disse à polícia; “Vocês devem negociar com eles. Se carregarem sobre esses miúdos nas nossas linhas, é melhor acreditarem que os trabalhadores ferroviários não aguentarão isso. A partir de hoje à noite, não se move mais nenhum comboio.” Os polícias de choque lutaram com alguns estudantes e feriram meia dúzia deles com os seus enormes bastões, mas não houve nenhuma carga geral. Nessa mesma manhã em Caen, na Normandia, 2000 jovens ocuparam a estação de comboios durante duas horas. A polícia carregou, os jovens ripostaram e a violência foi mais grave.
Os jovens à minha volta emergiam da escadaria para a rua de cima e separavam-se em grupos para falar sobre o que fazer a seguir. Um representante dos estudantes universitários com um megafone disse-lhes para se apressarem e se juntarem para a próxima acção. “Ninguém sai sem que todos estejamos aqui”, gritou um jovem. Esperaram pelos últimos caminhantes orgulhosos que surgiram ao cimo dos degraus. Um pequeno grupo que levava uma grande bandeira vermelha com o emblema da sua escola secundária pedia às pessoas para marcharem para oeste atrás deles. Os líderes estudantis, com os megafones numa mão e os telemóveis na outra, fazem consultas a outros lugares e entre si antes de pedirem à multidão para se dirigir para leste.
Bloqueiam a estrada circular que rodeia Paris. Há prisões. Mais tarde nessa noite, quando se agrupam para marchar através de um bairro de imigrantes, a polícia carrega, dispersando-os com mace, gás lacrimogéneo e bastões.