Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 20 de Novembro de 2006, aworldtowinns.co.uk
As causas da guerra civil no Iraque – I
O texto que se segue é o primeiro de uma série de quatro artigos.
Quase todos os dias são mortas no Iraque dezenas se não mesmo centenas de sunitas e xiitas, numa sangrenta guerra sectária. Muitas vezes as vítimas são amarradas, atingidas a tiro na cabeça e abandonadas numa vala à beira da estrada ou num monte de lixo. A vasta maioria dos mortos parece ser totalmente inocente, excepto o facto de ser da religião “errada” ou de estar no lugar “errado”. Frequentemente, são pessoas que apenas estavam numa fila para o combustível de cozinha ou outra primeira necessidade. Sunitas e xiitas têm abandonado as suas aldeias e bairros; os insurrectos sunitas têm matado milhares de xiitas com carros-bomba e em assassinatos; esquadrões da morte das milícias xiitas têm torturado e matado centenas, se não milhares, de sunitas. Quando a noite cai, os bairros tornam-se campos de batalha aberta.
Tem havido um fluxo ininterrupto deste tipo de notícias desde o passado mês de Fevereiro, quando o santuário de al-Askari em Samarra foi atacado à bomba. A destruição desse local, um dos mais sagrados para os muçulmanos xiitas, não foi o início desta cruel guerra religiosa, mas intensificou-a a um novo e terrível nível. Há relatos de muitas pessoas a mudar os seus nomes para esconderem a sua orientação religiosa, sobretudo quem tinha nomes sunitas típicos como Omar, Othman e Ayesha. Algumas milícias xiitas que usam uniformes das forças governamentais de segurança (às vezes falsamente, mas frequentemente como genuínos membros dessas forças) fazem parar carros e autocarros ou entram em locais de trabalho e pedem a identificação de todas a gente. Os que têm um nome “errado” são levados e os seus corpos serão depois encontrados nalgum canto da cidade. Há alguns meses, quando foram encontrados juntos os corpos de 14 pessoas, chamavam-se todas Omar.
Mark Lattimer, director do Grupo dos Direitos das Minorias / Internacional, descreve a vida “em distritos como al-Dora, no sul de Bagdad, onde sunitas e xiitas viveram lado a lado durante gerações, mas que agora está a ser sistematicamente esvaziado da sua população original à medida que as pessoas fogem para a segurança relativa dos seus. Os corpos das vítimas dos assassinatos sectários são abandonados à putrefacção ou para serem comidos pelos cães nas ruas, porque as suas famílias estão demasiado assustadas para os irem buscar.” (Guardian, 4 de Agosto de 2006)
O governo dos EUA está a tentar negar ou minimizar as dimensões da crise por causa dos seus próprios motivos. Isso levou muitas pessoas a entrarem numa discussão infindável e oca sobre saberem se isto pode ser chamado de guerra civil ou não. O Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, sentiu-se forçado a declará-lo condicionalmente quando disse, após uma viagem ao Iraque em Setembro: “Se os actuais padrões de alienação e violência persistirem durante mais tempo, há o perigo sério de o estado iraquiano se desmoronar, provavelmente no meio de uma guerra civil generalizada.” Os números divulgados por um relatório da ONU indicavam que quase 7000 civis foram mortos no Iraque durante Julho e Agosto, a maioria deles devido à luta entre sunitas e xiitas. Além disso, o relatório acrescenta que 300 000 pessoas tinham sido deslocadas no Iraque desde o atentado contra o santuário de Samarra. Uma média de 3000 iraquianos, sobretudo sunitas e curdos, foge diariamente do país, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
É esta a situação no Iraque de hoje sob ocupação dos imperialistas norte-americanos e britânicos; foi isto que aconteceu ao que eles proclamaram que viria a ser o “modelo de democracia” para o Médio Oriente.
De quem é a culpa?
Embora os partidos xiitas tenham acusado os extremistas sunitas, entre os quais Abu Musad al-Zarqawi (o fundamentalista jordano que se diz ter sido o líder da Al-Qaeda no Iraque), de terem começado a assassinar xiitas, os sunitas apontam para o profundo envolvimento da polícia do Ministério do Interior no assassinato de civis sunitas. Diz-se que as forças policiais incluem nas suas fileiras elementos organizados da Brigada Badr, a ala militar do Conselho Supremo da Revolução Islâmica do Iraque. O CSRII é o maior partido político xiita do Iraque. O seu objectivo é o estabelecimento de um estado islâmico controlado pelos xiitas. O Exército do Mahdi, a milícia da organização fundamentalista islâmica xiita rival liderada por Moqtada Sadr, cujos objectivos são semelhantes, também tem sido acusado de envolvimento em muitos dos assassinatos sectários e no incêndio de mesquitas. Também se diz que eles têm enviado os seus membros para as forças policiais para levarem a cabo assassinatos em uniforme.
Vários porta-vozes governamentais e comentadores da comunicação social dos EUA e de outros países acusam um ou o outro desses partidos de estar por trás dos assassinatos sectários. Quem eles nomeiam depende quase sempre da sua própria agenda política. Durante muito tempo, a culpa de tudo foi atribuída a Zarqawi e aos seus seguidores (sunitas) estrangeiros e dizia-se que a solução era eliminar Zarqawi (e isso parece ter sido conseguido). Contudo, olhando para trás, pelo menos até meados de 2005 se não mesmo antes, os assassinatos em massa de sunitas, levados a cabo sobretudo pela polícia e pelos esquadrões da morte formados dentro da polícia, foram encobertos. Os corpos eram encontrados, as testemunhas falavam aos jornalistas e muitas evidências foram acumuladas, mas era-lhes dada pouca atenção oficial e ainda menos importância. Os protestos e os pedidos de ajuda dos sunitas foram ignorados. Apenas se lia que mais uma dúzia, ou algo assim, de corpos de civis tinham sido encontrados abandonados em Bagdad, com as mãos atadas e com marcas de tortura. Nos últimos meses, todas as culpas foram atribuídas ao Exército do Mahdi e pouco foi dito sobre o CSRII que controla o Ministério do Interior. A razão disso foi que, pelo menos até agora, os esforços dos EUA e da Grã-Bretanha para conseguirem um governo estável e favorável à ocupação dos EUA têm dependido em grande parte dos seus arranjos com o CSRII. Embora o Exército do Mahdi se tenha oposto a desencadear uma guerra contra as forças de ocupação e seja um dos pilares do actual governo de ocupação, os EUA não o consideram suficientemente adaptável nesta altura.
Dizem-nos agora que a solução é desarmar as milícias – mas quais milícias? Apenas o Exército do Mahdi? Qual é, de facto, a diferença entre uma milícia e outra – ou entre quaisquer dessas “milícias” e o Ministério do Interior, ou mesmo o chamado Exército iraquiano?
É muito provável que todas essas forças – a Brigada Badr, o Exército do Mahdi e os grupos fundamentalistas sunitas – sejam responsáveis pelo assassinato de muitos milhares de pessoas e que estejam a ser cada vez mais atraídas para uma guerra religiosa de retaliação. Mas os acontecimentos são mais complicados do que possa parecer e certamente mais do que é dito pela comunicação social reaccionária e pelos imperialistas, cuja explicação é a de que apenas se trata da “cultura” dos povos do Médio Oriente que resolvem as suas diferenças de uma forma violenta.
O pano de fundo desta guerra civil
Embora a maioria dos iraquianos esteja contra esta guerra e se sinta repugnada com ela e lhe tenha mesmo resistido, pelo menos alguns importantes sectores das massas foram claramente atraídos para ela. Que condições estiveram na origem desta situação?
Bush e os seus têm negado descaradamente a sua responsabilidade e culpado Saddam Hussein. Bush diz que os assassinatos sectários no Iraque são um legado da era de Saddam. É certamente verdade que as políticas opressivas e discriminatórias da era de Saddam espalharam as sementes da discórdia mas, mesmo assim, os conflitos entre as massas nunca atingiram o nível actual. Em geral, as pessoas não se viravam umas contra as outras. Os curdos combateram o regime de Saddam durante anos, mas não entraram em guerra contra as massas árabes. Lutaram contra o poderoso exército de Saddam mas não atacaram mercados ou autocarros ou outros lugares públicos. Muitos xiitas estavam fartos das políticas antixiitas de Saddam e lutaram contra o regime, mas não visaram os sunitas em geral porque tinham a percepção de quem era o seu inimigo. As massas sunitas também sofreram sob o regime de Saddam.
Porque é que a situação atingiu hoje um ponto tal que algumas pessoas estão a atacar-se umas às outras em vez do inimigo? Porque é que os ocupantes e o regime fantoche estão a conseguir escapar aos golpes mais duros e são as massas que pagam o preço? Além disso, o que é que fizeram os ocupantes norte-americanos e o seu regime fantoche para inverterem essas políticas de Saddam?
A realidade é que, antes da invasão de 2003, todas as principais forças de oposição do Iraque, incluindo os curdos, apoiavam quanto ao essencial a continuação da existência de um estado iraquiano unificado. A cooperação entre as comunidades não enfrentava grandes problemas. Muitas tribos incluíam pessoas das duas religiões. Os casamentos mistos eram comuns. “Durante a guerra Irão-Iraque, os xiitas combateram ao lado dos sunitas e mesmo nas insurreições no sul do país em 1991, que foram sobretudo xiitas ou integradas por xiitas, participaram xiitas e sunitas e ambos foram alvo da vingança de Saddam”, escreveu o acima citado Lattimer.
As políticas norte-americanas encorajaram as divisões enraizadas dentro da sociedade iraquiana que, mesmo em circunstâncias muito melhores, teriam demorado muito tempo a sarar. Em primeiro lugar, e destacadamente, está a política norte-americana de estabelecer um governo fantoche, inicialmente o Conselho de Governo Iraquiano, dividido entre sunitas, xiitas e curdos. Os ministérios governamentais também foram divididos. Como resultado, os recursos financeiros foram divididos entre os organismos governativos controlados pelos líderes de cada seita ou grupo étnico particular.
Uma indicação de que os EUA procuraram fomentar deliberadamente não apenas uma disputa pelas migalhas deixadas pelos ocupantes mas a violência intercomunidades é que ignorou o crescendo de relatos de que o Ministério do Interior e a polícia eram responsáveis pela tortura e pelo assassinato em massa, em particular de civis sunitas. Os EUA foram responsáveis pelo estabelecimento e pela supervisão dessas instituições. Por exemplo, os Comandos Especiais da Polícia do Ministério do Interior têm sido na realidade um dos mais notórios esquadrões da morte do Iraque desde que foram criados em 2004, com a participação directa de conselheiros militares norte-americanos. No ano passado, o comandante das forças norte-americanas no Iraque elogiou-os como sendo “o cavalo a apoiar” (U.S. Air Force News, 16 de Fevereiro de 2005). Mesmo depois de homens que envergavam uniformes dos Comandos Especiais terem raptado a 14 de Novembro cerca de 140 pessoas no Ministério do Ensino Superior, controlado pelos sunitas, dando aquele que pode ter sido o golpe mortal nas já cambaleantes universidades do país, as autoridades políticas e militares norte-americanas mantiveram-se silenciosas.
Esta política não acontece por acaso. Faz parte de uma estratégia para tentar obter uma base entre as forças fundamentalistas xiitas para a ocupação liderada pelos EUA. A política de “contra-insurreição” dos EUA tem implicado tratar todos os sunitas como “terroristas”, baathistas e saddamistas. Por isso, se alguns reaccionários xiitas continuaram a assassinar civis sunitas, isso não estava em contradição com a política e os objectivos da “guerra contra o terrorismo” dos EUA. Na realidade, a cumplicidade dos EUA nos assassinatos praticados pelos esquadrões da morte apenas complementa a campanha que as “forças da coligação” – cuja coluna vertebral são os 140 000 soldados dos EUA e os cerca de 40 000 iraquianos treinados pelos EUA – brutalmente lançaram contra os iraquianos. Sobretudo nas zonas sunitas, eles arrombam casas, levam os homens, por vezes violam as mulheres e em muitos casos são todos mortos. Mas apenas uma muito pequena fracção da realidade da vida quotidiana do povo do Iraque se reflecte na comunicação social.
Saddam, apesar das suas políticas opressivas, procurou unir os líderes feudais e tribais e a grande burguesia sob a bandeira do nacionalismo e do pan-arabismo (o qual, pela sua natureza, excluía os curdos). Até certo ponto, ele conseguiu unir os sunitas e a maioria das forças xiitas e conseguiu recrutar entre essas comunidades para a guerra reaccionária Irão-Iraque. Mas os EUA tiveram uma abordagem diferente. Em vez de tentarem unir essas comunidades, mesmo que numa base reaccionária, para eles o sucesso da ocupação dependia de dividirem ainda mais todas as comunidades.
Essa política vem da primeira guerra do Golfo em 1991. A resolução da ONU que impôs sanções contra o Iraque foi um dos primeiros grandes golpes contra a unidade do povo iraquiano.
A resolução da ONU imposta pelos imperialistas ocidentais atingiu não Saddam mas as massas populares. Apertou a corda do sofrimento económico em torno dos seus pescoços. Ao mesmo tempo, como parte de um plano deliberado encabeçado pelos EUA, a região curda recebeu um tratamento especial. Com o esquema “alimentos por petróleo”, organizado pela ONU, a zona curda recebeu 43 por cento dos rendimentos do petróleo do país, embora os curdos constituam apenas 13 por cento da população do Iraque. Dez por cento desses rendimentos foram pagos em dinheiro nas zonas curdas, enquanto as outras zonas apenas receberam alimentos e não dinheiro que poderiam ter usado para comprar outras coisas. Isso foi um castigo para as massas populares árabes. Pôs as massas do país abertamente em oposição, umas contra as outras, com base na sua etnia.
A zona de proibição de voos estabelecida pelos EUA e pela Grã-Bretanha também foi planeada a pensar nessa estratégia. Os EUA e a Grã-Bretanha alegaram que os seus aviões estavam a cumprir uma missão “protectora” ao impedirem que o regime de Saddam actuasse na região curda do norte e na zona xiita do sul. Mas, combinada com o esmagador embargo económico, o resultado foi que para satisfazerem as mais básicas necessidades da vida, os sunitas tiveram que recorrer a contrabandistas e a todo o tipo de procedimentos perigosos.
Essa estratégia significou que os EUA se aliaram em primeiro lugar aos líderes curdos para matarem os árabes. Depois aliaram-se aos líderes curdos e aos grupos fundamentalistas xiitas para matarem os sunitas. Fizeram tudo o que puderam para forçar o povo curdo a procurar abrigo sob o guarda-chuva dos EUA e empurraram as massas populares xiitas a procurarem protecção nesses partidos fundamentalistas. Isso deixou muitos sunitas a sentirem que estavam “sem alternativa” a não ser a de se virarem para os baathistas ou para os grupos fundamentalistas sunitas. De facto, os EUA criaram uma situação em que muitos milhões de pessoas se sentiram deliberadamente “sem alternativa” a não ser a de se juntarem a uma ou outra dessas tendências armadas reaccionárias religiosas e de base étnica.
É muito importante salientar que a política dos EUA de se aliar aos fundamentalistas xiitas não se manterá necessariamente para sempre. Por causa da muito turbulenta situação na região, é possível que os EUA tentem encontrar novos aliados entre os líderes reaccionários sunitas ou baathistas e se voltem contra os seus anteriores amigos.
Isso não quer dizer que os EUA tenham realmente criado a guerra civil no Iraque. A questão é que para imporem a sua vontade no Iraque, os EUA ficaram eles próprios numa situação “sem alternativa” – tiveram que dividir as massas e usá-las umas contra as outras. Como é que os EUA puderam ter sonhado com uma ocupação de longo prazo sem que isto fosse um aspecto essencial? Mesmo um estudo rápido da história revela que “dividir para reinar” sempre foi uma parte fundamental do domínio imperialista em todo o terceiro mundo.
1ª Parte: As causas da guerra civil no Iraque – I
2ª Parte: Terão os EUA fomentado deliberadamente esta guerra civil?
3ª Parte: As consequências para o Iraque e para a região
4ª Parte: Os interesses dos EUA – e os interesses do povo