O seguinte artigo foi publicado no jornal A Capital de 17 de Junho de 2005 (ver acidi.gov.pt.s3.amazonaws.com/docs/Publicacoes/ARRASTAO.pdf).

A história do arrastão que nunca existiu

Houve roubos, como sempre na praia mais perigosa do país, mas um “arrastão” como acontece no Brasil ninguém viu no dia 10 de Junho em Carcavelos.

Por Nuno Guedes

Banhistas, polícia e jovens presos há uma semana em Carcavelos garantem que o “arrastão” do passado 10 de Junho, afinal, nunca existiu. Todos confirmam que existiram assaltos pontuais no areal, apesar de não existir uma única queixa de roubo na PSP, mas as imagens daquele dia, difundidas por todo o mundo como um “arrastão” organizado por 400 pessoas, mostram sobretudo a fuga de centenas de jovens provocada pela chegada da polícia à praia.

Pedro e João, alunos numa das várias escolas secundárias da Amadora, e dois dos jovens detidos naquele dia pela polícia, garantem que tudo não passou de uma enorme confusão. O início do Verão aproximava-se e, como noutros anos, explicam, “milhares de alunos das várias escola s da Linha de Sintra foram passando a palavra dizendo que no feriado iam à praia a Carcavelos”.

O ponto de encontro seria, como sempre, a velha bola da Nívea, mesmo no centro da praia. Hora e meia de viagem depois, Pedro e João (nomes fictícios de dois adolescentes de 16 e 17 anos de cor negra e branca, respectivamente, que nos recebem à porta da sua escola secundária) chegaram ao início da tarde à praia, que na zona da bola de Nívea já estava completamente cheia de grupos de jovens, sobretudo de pele negra.

Aqui, a versão da polícia, responsáveis dos bares da praia e restantes banhistas de Carcavelos diverge da dos jovens detidos a 10 de Junho na praia. Pedro e João garantem que tudo começou quando uma roda de jovens, sobretudo negros, se juntou à volta de um grupo com um rádio a dar músicas de hip hop. No meio, outro grupo dançava.

“Uma senhora até nos perguntou se estavam à porrada, mas quando lhe explicámos que estavam a dançar, até se riram”, conta Pedro.

Nuno, Filipa e Bárbara, outro grupo de jovens que ontem estava em Carcavelos e que presenciou o alegado “arrastão”, contam uma versão diferente: “No meio da roda estavam dois membros de bairros rivais a lutar”, garantem. Versão confirmada por uma fonte policial, que afirma que isso mesmo já foi confirmado junto desses bairros. A polícia, tal como os diferentes jovens ouvidos, admite que, no meio da confusão, aproveitaram para roubar outros banhistas.

A proprietária do Windsurf Café, mesmo em frente à bola da Nívea, conta outra versão: “Desde o início que vimos que aquele ajuntamento de gente não era normal e que íamos ter problemas na praia. A determinada altura, do meio daquela roda de gente, sai um indivíduo de Leste aos berros dizendo que tinha sido espancado e lhe tinham roubado um fio de ouro”. Foi aí que a responsável deste bar à beira da praia, farta dos problemas constantes na praia mais perigosa do país e que nas costas do telemóvel tem colado o número da PSP, chamou as autoridades.

A chegada da polícia

“Viram centenas de pretos todos juntos e acharam que estavam a fazer algo de mal”, defendem Pedro e João, que acreditam existir muito racismo no meio deste “arrastão”. E foi quando a polícia chegou que se instalou a confusão geral apresentada pelas imagens captadas pelo proprietário do Windsurf Café, que ilustraram televisões e jornais do planeta como se fosse o maior “arrastão” do mundo.

Pedro reconhece-se numa das fotografias, mas garante que a mala e toalha que tem na mão são dele. Tal como a grande maioria das restantes pessoas que aparece nas imagens, diz que apenas pegou nas suas coisas para fugir à polícia que, garante, entrou no meio dos diferentes grupos de jovens negros, entretanto já dispersos pelas suas toalhas, à “cacetada”.

Nuno, Filipa e Bárbara, o grupo de jovens que ontem se mantinha em Carcavelos, tal como a proprietária do Windsurf Café, garantem que muitos dos que estavam no meio daquelas centenas de adolescentes negros se viraram contra a polícia, que assim não teve outra hipótese se não se defender. “Os polícias não são os maus desta história e muita coragem tiveram ao intervir no meio de centenas sendo apenas 13 agentes”, afirma a responsável do bar da praia.

“Mas qual é o jovem que, sendo branco ou preto, respeita a polícia”, pergunta Carolina Nunes, outra das banhistas que naquele dia estava em Carcavelos, e que garante que nunca se apercebeu de qualquer “arrastão”. “A determinada altura vi toda a praia a olhar para esse enorme grupo de negros, e apenas me apercebi de uma confusão que parecia ser barafunda motivada por algum piropo enviado à namorada alheia”, explica.

Só abandonou a praia quando chegou a polícia e os agentes dispararam para o ar. “Pegámos nos filhos e fomos embora”, conta o marido, Marco Nunes. Quanto ao alegado “arrastão”, só ouviram a palavra quando chegaram a casa e ligaram a televisão, estranhando não ter ouvido ninguém na praia dizer que estava a ser roubado.

Roubos na confusão

Pedro e João, os adolescentes detidos naquele dia, admitem, no entanto, que no meio da confusão motivada pela chegada da polícia, houve uma minoria que, em vez de pegar nas suas coisas, pegou nas de outros. “Mas eram putos que só vão para a praia arranjar confusão”, garantem.

Entre os quatro detidos pela policia naquele dia, Pedro e João acabaram presos acusados de agressão às autoridades. Ambos defendem-se dizendo que não fizeram nada e que foram agarrados pela PSP quando se deslocavam para a praia da Torre para continuar o dia à beira-mar. “Apenas fomos presos porque éramos só três, tínhamos um ar mais frágil, e um de nós era branco”, garante João, que recorda os comentários racistas dos agentes aquando da entrada de rompante na praia.

Estiveram três horas na esquadra, de onde saíram acompanhados pelos pais. Na terça-feira foram ao tribunal, que abandonaram sem qualquer acusação por falta de provas. Quanto ao “arrastão” promovido por 400 indivíduos, conforme afirmou a PSP há uma semana, Nuno, Filipa e Bárbara, garantem que o que aconteceu foi apenas uma “enorme confusão e fuga descontrolada” com a chegada da polícia.

Fonte policial próxima do processo garante também que não se pode falar num arrastão. “Não houve nada planeado e não existiam 500 pessoas na praia organizadas com a intenção de roubar. Tudo começou com uma briga entre dois indivíduos de dois bairros, que permitiu a uma meia dúzia fazer alguns assaltos isolados. É verdade que o número de pessoas aglomerada na praia era anormal, mas não podemos proibir ninguém de estar no areal só por ser de raça negra”, afirma o mesmo agente, que admite que a confusão maior registada pelas fotografias se deu devido à chegada da PSP.

“Arrastão, como no Brasil, nunca existiu em Carcavelos naquele dia”, conclui o responsável. Até porque toda a confusão se centrou num único ponto da praia, à volta da bola da Nívea, que há anos que os responsáveis Windsurf Café tentam retirar da praia para evitar que continue a ser ponto de encontro para os milhares de jovens que procuram a praia mais acessível do país.

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