Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 17 de Abril de 2006, aworldtowinns.co.uk
Uma conversa sobre a situação no Curdistão iraquiano
O que se segue são excertos editados de uma conversa ao vivo na internet em Outubro passado com Amir Hassan Pour, no chatroom Paltalk, após uma visita dele à Palestina e ao Curdistão iraquiano. Foi publicada nos números 25 e 26 do Haghighat, órgão do Partido Comunista do Irão (Marxista-Leninista-Maoista). Hassan Pour é um revolucionário veterano curdo iraniano que vive actualmente no Canadá onde é conferencista universitário. Estes excertos centram-se na discussão sobre o Curdistão iraquiano, nas perguntas e respostas no final dessa conversa e numa curta resposta sobre a Palestina. A conversa está disponível na sua totalidade em farsi em: www.etehadesocialistha.com/arshivsada-TSA.htm.
Pergunta: Qual é a posição dos dois partidos nacionalistas curdos iraquianos sobre a proposta de Constituição do Iraque?
Resposta: As duas principais organizações curdas iraquianas, a União Patriótica do Curdistão (PUK) e o Partido Democrático Curdo (KDP), têm muitas diferenças sobre muitas questões. No período antes do início da guerra e depois disso, sob pressão norte-americana, eles tentaram diminuir as suas diferenças, mas toda a gente sabe que elas ainda existem. Elas incluem a relação entre o governo curdo e o governo nacional iraquiano e sobre se devem ou não continuar enquadrados do estado iraquiano. Por exemplo, nos últimos anos, o KDP tem dado uma maior ênfase à questão do Curdistão, enquanto o PUK se tem centrado nos direitos curdos no quadro de um Iraque unificado. [O líder do PUK, Jalal Talabani, é o presidente do Iraque apoiado pelos EUA.] Nos territórios sob domínio do KDP, nos edifícios governamentais apenas é içada a bandeira curda, enquanto nas áreas sob controlo do PUK a bandeira iraquiana flutua ao lado da bandeira do Curdistão.
Ambos exigiram algumas alterações à proposta de Constituição. A mais importante foi o direito à separação. Essa exigência foi basicamente aceite nestes termos: se o governo federal mobilizar as suas forças contra o Curdistão e começar a massacrar e a matar e oprimir o povo curdo, então este tem o direito de se separar do estado iraquiano. Outra exigência foi a de que o governo curdo passasse a ter controlo permanente sobre todas as zonas que actualmente controla mais algumas zonas que continuaram sob controlo de Saddam depois de 1991. Isso não foi aceite. Uma terceira exigência foi a de que Kirkuk fosse reconhecida como capital do Curdistão e que todos os rendimentos dos principais campos petrolíferos locais fossem partilhados entre o Curdistão e o resto do Iraque. Uma exigência final foi a de que o governo central não concentrasse em si o poder financeiro e militar, dado que isso permitiria mobilizar os seus recursos contra os curdos e talvez levar a cabo uma campanha de limpeza étnica contra eles. Em suma, eles não conseguiram obter as suas exigências mais importantes.
No que diz respeito às pessoas simples do Curdistão, às pessoas da rua, os que não estão envolvidos na actividade intelectual e política dos partidos estão muito insatisfeitos com o governo curdo. O seu descontentamento é tal que há alguns meses as massas se revoltaram em Kalar, uma cidade no sul do Curdistão iraquiano sob controlo do PUK. O PUK está muito consciente da corrupção e do descontentamento. As pessoas também estão insatisfeitas com a presença dos EUA e preocupadas com isso. Quando fui entrevistado por um canal curdo de televisão chamado SAT, critiquei a actual situação. Depois disso, encontrei muitas pessoas que tinham visto o programa. Elas manifestavam a sua aprovação e agradeciam-me por ter levantado essa questão. Não é verdade que as pessoas vejam os EUA como os seus salvadores. A gente comum não vê as coisas dessa maneira. Há um grande descontentamento. Todos manifestam claramente a sua preocupação com o futuro do Iraque. Sentem que é muito incerto.
Podes contar-nos mais sobre o crescimento das forças religiosas no Curdistão?
O movimento curdo nunca foi um movimento religioso. Quando os teocratas tomaram o poder no Irão, a República Islâmica do Irão [RII] tentou fortalecer os sentimentos religiosos em vez dos movimentos nacionais. Especialmente depois de 1986, tanto o PUK como o KDP assumiram compromissos com o regime islâmico iraniano. O KDP mantém relações com a República Islâmica do Irão desde o início. Isso fazia parte dos planos da RII para fortalecer a corrente islâmica no Curdistão (tanto no Irão como no Iraque) e em toda a região. O regime iraniano ajudou mesmo as organizações curdas iraquianas a formarem uma frente única, ao mesmo tempo que também conseguiam organizar forças islâmicas no Curdistão iraniano. Esta cooperação deu vantagens às forças islâmicas. Por exemplo, no Curdistão iraquiano foram construídas tantas mesquitas que agora há mais mesquitas que grandes edifícios não religiosos. Foram construídas cerca de 700 mesquitas em Arbil, uma cidade cuja população se estima ser apenas um milhão! Dar facilidades financeiras e reduções de impostos às instituições religiosas e a qualquer um que se ofereça para construir uma mesquita foi uma maneira de os dois partidos chegarem a compromissos com as forças religiosas.
As forças religiosas querem um governo islâmico e não acreditam no movimento nacionalista curdo. Toda a gente sabe que as forças islâmicas controlam as agências governamentais, as universidades e várias instituições não-governamentais nas regiões árabes (não-curdas) do Iraque. As mulheres iraquianas não se atrevem a sair sem ser acompanhadas de um homem. As mulheres são obrigadas a cobrir a cabeça e frequentemente todo o corpo. A situação no Curdistão ainda não é a mesma. Porém, na região norte do Curdistão iraquiano, sob controlo do KDP, o uso do hijab é mais comum e as mulheres saem menos frequentemente de casa. A situação é, em geral, um pouco diferente na região sul, sob controlo do PUK, embora o hijab tenha sido imposto em Halabja devido à influência há muito existente do regime iraniano. Há um ciclo vicioso. O movimento nacionalista não se consegue apresentar como uma alternativa boa ou efectiva ao regime do Partido Baath de Saddam, apesar de deter o controlo da maior parte do Curdistão iraquiano desde 1991. Isto permitiu que as forças religiosas alargassem a sua influência, apresentando-se como uma alternativa ao movimento nacionalista.
Eu também acho que o movimento nacionalista do Curdistão no Iraque está num beco sem saída. Como activista político curdo experiente, que tipo de alternativa sugeres para o Curdistão?
Em minha opinião, as forças religiosas e nacionalistas que tomaram o poder na região, sejam curdas, turcas, persas ou árabes, todas elas chegaram a um beco sem saída. Todas foram postas à prova e nenhuma tem qualquer solução para as contradições de classe e a pobreza e miséria que as pessoas enfrentam. Os sistemas patriarcais e teocráticos, a violência contra as mulheres e as minorias, toda a violência governamental e não-governamental durante o século XX, causaram um grande sofrimento às massas. Basta olhar para a história da região; verá que essas forças estiveram envolvidas na maior parte do sofrimento que as massas enfrentaram. A minha solução é uma revolução socialista. Nesses países, não houve nenhuma revolução democrática. No século XX, o movimento comunista discutiu a relação entre as revoluções democráticas e socialistas nos países do oriente. Nesses países, o proletariado conseguiu aliar-se às burguesias locais, relativamente pouco desenvolvidas, contra o colonialismo, mas essas burguesias foram incapazes de levar a cabo uma revolução democrática. Essa liderança tem que ser agarrada por outra classe, o proletariado.
A experiência do movimento nacionalista curdo, de luta contra a opressão nacional numa situação muito difícil, e também a experiência dos outros movimentos nacionalistas no Irão e nos países árabes na região, demonstrou na prática a análise de Lenine. Essa é a minha alternativa para toda a região: derrubar o feudalismo, o tribalismo, o sistema capitalista, o imperialismo, o sistema patriarcal e os regimes nacional-fascistas.
Penso que a questão da terra e o problema das relações feudais e tribais no Iraque ainda não foram resolvidos. Saddam teve um papel no reavivar desse fenómeno. O movimento nacionalista curdo fez exactamente o mesmo no Curdistão iraquiano. O feudalismo e o tribalismo tinham sido debilitados, mas entretanto foram revitalizados. Deste ponto de vista, a revolução democrática na região ainda não está resolvida.
Sobre a Palestina
Durante as duas semanas em que estive na Palestina este Verão (2005), costumava reunir-me com cerca de 80 professores palestinianos na Universidade de Biet al-Haram e discutir várias questões. Eles ensinavam em aldeias de diferentes regiões. Numa das discussões, éramos um grupo de meia dúzia de homens e mulheres de diferentes origens. Os palestinianos perguntaram-me sobre o meu passado. Quando lhes disse que eu era um curdo e era do Irão, eles ficaram contentes e à espera que eu compreendesse os seus problemas. Só ouvi simpatia e compaixão, o que não me surpreendeu nada. O movimento palestiniano tem sido tradicionalmente encorajador do movimento curdo e da sua luta pela libertação da opressão nacional. Mas nos últimos anos, desde que os EUA invadiram o Iraque e o movimento nacionalista ficou sob a liderança dos EUA, isso causou alguma hostilidade entre palestinianos e curdos. Alguns curdos dizem que os palestinianos apoiaram Saddam. Se o tivessem feito eu tê-los-ia criticado, mas acho que a maioria dos palestinianos não apoiou Saddam nem acreditou que ele era seu aliado [como fez a OLP de Yasser Arafat]. Mas o meu argumento dirige-se sobretudo aos curdos que se opõem ao movimento palestiniano. Apenas quero refrescar a sua memória. Durante a última década, o KDP convidou o exército baathista a ajudá-lo na sua guerra contra o PUK. O exército do Baath ajudou o KDP a eliminar o PUK da região de Hewler [o nome curdo de Arbil]. E ambos os líderes curdos visitaram Saddam Hussein e beijaram o seu rosto. Após 1991, quando a guerra dos EUA passou a ser contra o povo do Iraque, bem como noutros períodos, os dois partidos curdos também estiveram envolvidos em negociações com o Partido Baathista.
Em suma, do meu ponto de vista, o movimento palestiniano apoia o povo curdo na sua luta pela autodeterminação. Em particular, eu quero dizer que o movimento radical e de esquerda da Palestina, e mesmo outros sectores do movimento palestiniano, partilham dessa posição. Eu não vejo isso como uma questão de os palestinianos, tal como os povos do Iraque e da Síria, serem todos árabes. Eu acho que Israel é o inimigo do movimento curdo. Israel nunca esteve a favor do direito à autodeterminação do Curdistão e nunca quis que qualquer região do Curdistão fosse independente, porque eles acham que um tal desenvolvimento encorajaria e daria mais legitimidade à luta palestiniana a nível regional e internacional.