Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 29 de Janeiro de 2007, aworldtowinns.co.uk

Raptado, torturado, libertado e depois declarado inimigo para toda a vida:
O caso do canadiano Maher Arar

Maher Arar
Maher Arar (Foto: Bill Grimshaw, www.maherarar.ca)

Maher Arar, um canadiano raptado em Nova Iorque por agentes dos serviços secretos norte-americanos e levado para a Síria para ser torturado, recebeu a 26 de Janeiro do governo canadiano uma desculpa formal e o equivalente a 8,9 milhões de dólares norte-americanos de compensações. A história dele deita um pouco de luz sobre as “capitulações extraordinárias” – aquilo a que o governo dos EUA chama quando rapta alguém e o leva de avião para outro país para ser torturado.

Arar, que nasceu na Síria e tem dupla cidadania, estava a regressar a casa em Montreal em Setembro de 2002, depois de umas férias com a esposa e a família dela na Tunísia, quando parou para mudar de avião no aeroporto JFK. Aí, foi despido, revistado e preso pelas autoridades norte-americanas de imigração, que mais tarde disseram que ele estava na sua “lista de vigilância” devido a uma informação do governo canadiano.

Segundo o artigo “A Tortura Secreta da CIA”, de Raymond Bonner na The New York Review of Books (11 de Janeiro de 2007), após 11 dias em detenção, o governo canadiano mudou de ideias e disse que não tinha nenhum indício contra ele. A sua informação original fornecida aos EUA tinha por base a alegação de que um ano antes a polícia canadiana tinha visto Arar a caminhar à chuva com outro sírio que ela estava a seguir. Os EUA insistiram junto do governo canadiano que estavam “inequivocamente” certos de que Arar era membro da Al-Qaeda. Mas, segundo se queixou um agente do FBI a um agente dos serviços secretos canadianos, os EUA não o podiam prender porque não tinham nenhuma prova. Será que podia ser a polícia canadiana a prendê-lo, desde que ela o entregasse a eles? Quando o agente canadiano disse que não, que Arar também não podia ser preso no Canadá sem uma justificação legal, a CIA prendeu-o pura e simplesmente, em total violação da lei internacional e da lei norte-americana. Puseram-lhe algemas e correntes e empurraram-no para o chão de um avião privado com destino à Jordânia. Daí, levaram-no para Damasco, na Síria – exactamente até à porta de entrada da famosa prisão da Rua da Palestina que tem celas especialmente construídas para a tortura. Foi espancado e torturado, por vezes até 18 horas de cada vez, durante quase um ano, e forçado a assinar uma falsa confissão de que era membro da Al-Qaeda.

O cinismo das relações de poder dos norte-americanos com outros países é revelado pelo facto de os EUA terem confiado em que os serviços secretos da Síria torturariam Arar (e numerosas outras pessoas) por eles, embora George Bush chegasse mais tarde a defender abertamente o derrube do regime sírio em nome da luta contra o “terrorismo” e da promoção da “democracia”.

Entretanto, a esposa de Arar, Monia Mazigh, uma perita financeira, exigiu publicamente que o governo canadiano admitisse o seu erro e interviesse em sua defesa. Um cada vez maior número de outras pessoas juntou-se à sua campanha, apesar de uma campanha dos agentes canadianos de fornecerem aos jornalistas falsas informações sobre Arar ser realmente “um sujeito muito mau” e de que as histórias sobre tortura eram mentira. O escritor Bonner, que durante os últimos cinco anos tem escrito frequentemente para o jornal The New York Times, teve o mérito de escrever no seu artigo: “demasiados jornalistas, incluindo este que aqui escreve, têm publicado alegações de ‘terrorismo’ ou ‘ligações à Al-Qaeda’, com base em afirmações de agentes que não são nomeados e que acabaram por estar erradas.”

Maher Arar e Monia Mazigh
Maher Arar e Monia Mazigh (Foto: CBC, Canadá)

Em Agosto de 2005, à medida que o clamor público crescia no Canadá, nos EUA e noutros lugares, a Síria libertou Arar. Um inquérito judicial canadiano conduzido pelo juiz Dennis O'Conner concluiu que a informação que a polícia canadiana tinha dado às autoridades norte-americanas era “inexacta e sem qualquer fundamento” e que, tendo em conta o clima político nos EUA, era “potencialmente extremamente inflamatória”. O relatório do juiz também detalhava o rapto e a tortura de Arar. O chefe da Real Polícia Montada do Canadá foi forçado a demitir-se por ter tentado encobrir o papel da sua organização no caso, bem como por ter dado falsas informações às autoridades norte-americanas.

Porém, nada disso, nem o pedido público de desculpas do primeiro-ministro canadiano Stephen Harper a Arar e a Mazigh, deu um final feliz a esta história.

Primeiro, porque Arar, de 36 anos, perdeu o emprego dele de engenheiro de software numa companhia norte-americana e não tem conseguido encontrar trabalho desde então. Ele sofre de severas sequelas psicológicas. “Eu acredito, cada vez mais, que nunca, nunca irei poder reconstruir a mesma vida que tinha antes”, disse ele. “Não há nenhuma quantidade de dinheiro que me possa compensar pelo que eu e a minha família passámos.” O primeiro-ministro Harper admitiu que, tendo em conta os resultados da comissão O'Conner, o governo canadiano poderia ter que pagar muitas vezes mais do que pagou pelos danos causados, se Arar não tivesse retirado o seu processo contra o Estado.

Segundo, porque a decisão de Harper não é tão inocente como parece. Na opinião pública canadiana, a repulsa em torno do caso de Arar esteve muito ligada ao questionar do importante papel que as forças armadas canadianas estão a desempenhar na ocupação do Afeganistão liderada pelos EUA. A Secretária de Estado norte-americana Condolezza Rice falou directamente sobre isso durante a sua visita ao Canadá no final do ano passado. Questionada sobre Arar numa conferência de imprensa, ela pôs uma pose conciliatória e prometeu que o governo dos EUA iria “rever” o caso e depois começou a louvar o papel do Canadá no Afeganistão, indicando claramente esperar que o primeiro não afectasse o segundo. Harper apontou a decisão de Arar como um exemplo de independência em relação aos EUA: “Este governo reserva-se o direito de discordar dos norte-americanos quando tem algo de substantivo sobre que discordar”. A invasão, a ocupação e a escalada da guerra no Afeganistão são, aparentemente, um ponto substantivo de discórdia.

Terceiro, depois da “revisão” prometida por Rice, em vez de recuarem, os EUA lançaram uma ofensiva contra a opinião pública. Um porta-voz do governo norte-americano anunciou que, apesar de um pedido do governo canadiano, os EUA ainda consideravam Arar um “risco” e que ele e a sua família, incluindo não só a sua esposa mas também as suas duas crianças pequenas, estavam proibidos para sempre de entrarem nos EUA ou mesmo de sobrevoarem o espaço aéreo dos EUA. Quando o Ministro da Segurança Pública do Canadá, Stockwell Day, pressionou novamente os EUA para removerem os nomes da família da lista de vigilância e disse que tinha visto toda a informação norte-americana e que não havia nada nela que a comissão judicial não tivesse examinado, o Embaixador dos EUA no Canadá, David Wilkins, dinamitou os esforços do governo de Otava, avisando que o ministro canadiano seria um “presunçoso” se pensasse que tinha alguma coisa a dizer sobre o assunto. Isto é irónico porque o Ministro Day fora recentemente criticado por ter tentado manter em segredo uma reunião em que tinha estado com o chefe dos serviços secretos norte-americanos, John Negroponte, presumivelmente para discutir assuntos de interesse mútuo. Os EUA não têm nenhuma intenção de tolerar sequer as críticas mais ligeiras em relação a este caso, mesmo que essas críticas sejam, em última instância, para neutralizar a oposição à aliança do Canadá com os EUA.

Maher Arar e a filha
Maher Arar e a filha (Foto: CBC, Canadá)

No seu programa de capitulações, a CIA realizou pelo menos 1245 voos sobre a Europa ou aterrando em aeroportos europeus, segundo um relatório da comissão do parlamento europeu tornado público a 29 de Novembro. Como o pequeno avião privado da CIA que levava Arar parou em Roma para reabastecer, ele faz parte dessas estatísticas, embora os que tenham sido raptados noutros lugares além dos EUA e da Europa não o façam necessariamente.

O destino de alguns deles é conhecido. O artigo de Bonner conta a história de dois deles. Binyamin Mohamed, um jovem etíope que tinha estudado em Londres, foi apanhado no aeroporto de Carachi. Um avião privado norte-americano levou-o para Marrocos onde foi detido, interrogado e torturado durante 18 meses. Mohamed acredita que a jovem loira que liderava a equipa de tortura era norte-americana, embora ela lhe tenha dito ser canadiana. Entre outras coisas, usaram um escalpelo médico para cortar às fatias várias partes do seu corpo, incluindo o seu pénis. Mamdouh Habib, um australiano nascido no Egipto, também raptado no Paquistão, foi torturado e interrogado por uma equipa que incluía uma norte-americana que se assemelhava à que liderava os homens que torturaram Mohamed, bem como vários australianos, e depois levado para o Egipto para uma tortura e encarceramento mais prolongados. (Ao contrário da Síria, o Egipto é um dos aliados mais próximos dos EUA no mundo, e por isso ainda é considerado altamente “democrático”.) Finalmente, Habib acabou em Guantânamo. Bonner entrevistou-o em 2005, depois da sua libertação.

O que Bonner não diz – e talvez não possa dizer muito alto, embora a implicação esteja lá – é isto: todos os casos de “capitulação” que conhecemos, envolvem pessoas que sobreviveram à experiência, e a maior parte dos relatos de tortura vêm de pessoas que acabaram por ser libertadas. Porque é que não há um maior clamor a exigir saber o que é que aconteceu aos que não tinham famílias e advogados determinados, desafiantes, eloquentes e diligentes a lutar por eles no estrangeiro, ou cujos entes queridos nunca souberam o que é que lhes aconteceu? O que é que aconteceu aos restantes passageiros desses 1245 voos e aos outros arrebatados e não contabilizados em lugar nenhum?

Arar, conclui Bonner, teve de facto muita sorte em comparação com os restantes. Quando essa é a conclusão a tirar sobre um homem que, como ele, passou pelo inferno, o mundo está em grandes dificuldades.

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