Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 10 de Novembro de 2014, aworldtowinns.co.uk
Os Estados Unidos de regresso a Bagdad
As pessoas irão sempre ser enganadas, escreveu uma vez Lenine, até aprenderem a discernir os interesses de classe por trás de todos os fenómenos sociais. No auge da guerra do Vietname, a banda norte-americana antiguerra Country Joe and the Fish disse isto de outra forma: “Por que nós estamos a lutar?” Porque é que a classe dominante luta com a sua “coligação” contra o Daesh (ISIS) no Iraque e na Síria? Mais pessoas precisam de estar a fazer esta pergunta, sobretudo aqueles para quem o “nós” inclui objectivamente as forças armadas norte-americanas.
Toda a atenção tem estado merecidamente focada em Kobani, onde homens e mulheres combatentes curdos estão a resistir a um cerco do Daesh que, se vier a ter sucesso, poderá levar a um horrendo massacre. Como é que não se pode reter a respiração? A esta luz, as pessoas de boas intenções em muitos países tenderam a ver a crescente intervenção norte-americana como parte do que elas consideram ser uma “frente única” para “salvar Kobani”, a ver as acções norte-americanas na Síria e no Iraque como positivas – e mesmo a exigir uma maior intervenção das potências ocidentais que até agora se têm estado a conter, como a França. A convocatória para uma “Concentração Global Contra o ISIS – por Kobani, pela Humanidade” a 1 de Novembro, assinada por uma longa lista de personalidades progressistas internacionalmente prestigiadas, apelava aos “jogadores globais” da “chamada coligação internacional contra o ISIS” a concretizarem “as suas verdadeiras obrigações legais internacionais”. Isto significa que eles querem que a “chamada coligação internacional” se torne numa verdadeira coligação e entre mais em acção.
O primeiro problema desta ideia é que foram os EUA, a Grã-Bretanha e a França que ergueram a bandeira das “obrigações legais internacionais” (incluindo aquilo em que a França foi pioneira em apelar ao “dever de intervir para proteger as pessoas”) e a usaram para atacar ou invadir o Afeganistão, a Líbia e o Iraque (entre outros lugares). Esta bandeira não pode ser usada contra eles, porque só pode significar mais intervenção.
Segundo, porque é que os EUA têm bombardeado o Daesh em Kobani e actuado sobre o Daesh no Iraque? Será verdade que a opinião pública mundial os forçou a o fazerem apesar dos seus próprios objectivos, como argumentam os que alegam que “os EUA apoiam os sauditas e os sauditas têm apoiado o Daesh, pelo que resistir ao Daesh significa atingir os EUA”? Este argumento simplifica demasiado algumas verdades (nos primeiros dois pontos) para construir uma mentira. A situação está cheia de contradições e os imperialistas gostam de ter tantos cartões quanto possível nas suas mãos. Mas os EUA querem certamente derrotar o Daesh, que emergiu como principal desafio à dominação regional sem a qual os EUA não podem manter por muito tempo o seu estatuto dominante entre as potências imperialistas. São estes os mesmos motivos que os levaram a fazer pressão contra os regimes iraniano e sírio e a fazerem do apoio a Israel uma componente essencial e insubstituível da sua projecção de poder no Médio Oriente.
Não é verdade que foram os EUA que criaram o Daesh ou outras forças islamitas, embora Washington e os seus aliados tenham feito muito para encorajar o seu crescimento, sobretudo em tempos anteriores, quando isso servia os seus interesses. O fundamentalismo islâmico tornou-se numa força em si mesmo, com os seus próprios objectivos independentes e altamente reaccionários. O que é verdade é que a explosiva expansão dessas forças seria inconcebível sem as acções dos EUA e seus aliados na região. Ou seja, sem os seus crimes selvagens (o núcleo central do Daesh emergiu do centro de tortura norte-americano de Abu Ghraib e a sua base social iraquiana é especialmente forte onde os EUA praticaram amplas atrocidades, como em Falluja) e sem a sua destruição das antigas estruturas de poder, numa tentativa falhada de erguerem novos regimes em que os EUA pudessem confiar mais. Mais importante que muitas conspirações norte-americanas, israelitas e sauditas, foram as enormes mudanças económicas e sociais quando a região foi ficando cada vez mais apanhada nas malhas do capital internacional. (Por exemplo, o catastrófico colapso de muita da sociedade rural síria que se seguiu à abertura de Assad aos mercados internacionais forneceu uma componente vital da base social repentinamente expandida para as forças islamitas antes mais limitadas).
Como é que, verdadeiramente, alguém pode dizer que “se o mundo quer a democracia no Médio Oriente deve apoiar a resistência curda em Kobani”, como o faz a convocatória do 1 de Novembro, quando claramente não é isso que os governantes deste mundo ou qualquer outros dos principais “jogadores” estão a fazer? Como é que uma maior intervenção norte-americana pode ter qualquer outra coisa que não seja resultados negativos, em termos dos interesses da humanidade?
Basta ver o que os EUA e a Turquia têm feito até agora para “salvar” Kobani. A Turquia e os EUA têm interesses e objectivos contraditórios neste momento, mas nem Obama nem Erdoğan querem ver o partido curdo sírio PYD e a sua milícia YPG emergir como força fora do seu controlo, e isto guia as acções deles. Isso deveria ser óbvio na decisão conjunta, independentemente do torcer de braços que foi necessário para a obterem, de “ajudarem” Kobani enviando tropas do Governo Regional Curdo (GRC) do Iraque, em vez de armarem melhor a YPG. Estes reforços de peshmergas devem manter-se nas suas próprias unidades sob o comando do GRC e manter os seus rockets e artilharia pesada sob o seu próprio controlo.
Tanto Ancara como Washington preferem fortemente o GRC, dominado pelos clãs de Barzani e Talabani, de base feudal, cuja ascensão no mundo é tornada possível pela vontade deles em se submeterem à Turquia (o seu principal parceiro comercial) e aos EUA (que os levou ao poder). Depender da ajuda norte-americana e turca para salvar Kobani ou ecoar o apelo de Obama a uma coligação global contra o Daesh não é apenas uma “táctica” – implica seguir essa mesma política.
Mesmo que a pressão do Daesh sobre Kobani seja diminuída pelos bombardeamentos liderados pelos norte-americanos, qual é a solução para a opressão curda que visam os líderes da YPG síria – e do PKK na Turquia a que esta milícia está associada? E quais serão os efeitos mais vastos da intervenção norte-americana para a região e o mundo? Embora, num sentido táctico, qualquer pessoa numa batalha desesperada dê as boas-vindas a qualquer alívio que possa obter, se a defesa de Kobani for a tabuleta sob a qual os esforços globais e o projecto dos EUA para a região são legitimados e saudados, isso é muito mau. Apelar a uma frente única ou a uma coligação internacional para salvar Kobani não é ser anti-imperialista mas sim ser enganado pelos imperialistas.
As acções militares norte-americanas até agora já revelaram muito sobre os objectivos da sua guerra. A guerra posicional que está a ser feita pelos sitiadores do Daesh tem feito com que se tornem vulneráveis a ataques aéreos, mesmo quando respondem a esses ataques noutros lugares, dispersando as suas forças e abandonando o uso de grandes comboios e instalações e posições fixas. Mas as autoridades políticas e militares norte-americanas têm dito aberta e repetidamente que esses ataques aéreos têm de levar a mais guerra no terreno, e isto não acontecerá sem mais tropas dos EUA e outras potências ocidentais.
Os EUA têm actualmente 1400 tropas no Iraque, 800 delas a proteger a embaixada norte-americana e o aeroporto de Bagdad (a porta para uma maior invasão) e o resto em Erbil, no Curdistão iraquiano, onde trabalham com as FRG, tal como o têm feito há mais de duas décadas. Agora, o Presidente norte-americano Barack Obama anunciou uma “nova fase” em que esses números serão incrementados para 3100, com as tropas adicionais a ser enviadas para “treinar” o exército iraquiano na província de Al-Anbar e noutros lugares onde a sobrevivência do regime iraquiano está em jogo. Elas não vão proteger os curdos, os sunitas iraquianos, os xiitas ou qualquer outra pessoa, nem impedir uma guerra religiosa. O trabalho delas é atingir o objectivo que levou os EUA a invadirem o Iraque em primeiro lugar: garantir a dominação regional norte-americana e construir um regime que os possa ajudar a fazê-lo.
Porque é que estas tropas estão de regresso ao Iraque? Afinal de contas, as autoridades militares norte-americanas pronunciaram o exército daquele país como estando bem treinado quando a maioria das tropas estrangeiras foram retiradas em 2011 (“Gastámos muito dinheiro e esforço a treinar o exército iraquiano. Quando saímos em 2011, deixámo-las capacitadas”, disse recentemente o adido de imprensa do Pentágono, Almirante John Kirby). Apesar disso, batalhões inteiros desmoronaram-se face à ofensiva do Daesh em Junho, quando se recusaram a combater pelo corrupto e completamente criminoso regime sectário xiita que os EUA tinham estabelecido para proteger os seus interesses. E não mostraram muito entusiasmo em combater para defender o novo governo sectário xiita que os EUA instalaram para o substituir. Quer as tropas norte-americanas se envolvam ou não directamente em combate, a tarefa delas neste momento é juntar um exército que faça o que os EUA querem que faça – a mesma tarefa que os “conselheiros” norte-americanos estão a fazer com os peshmergas do GRC.
O mundo já tem experiência mais que suficiente para perceber para que é que são esses “conselheiros”. A palavra tornou-se infame durante os primeiros dias da guerra norte-americana contra o povo vietnamita, quando ficou claro que era um eufemismo para o que agora se chama “botas no terreno”. Mas ainda antes da invasão total em 1965, os EUA precisaram de “conselheiros” a trabalhar com as tropas vietnamitas como parte do seu esforço para construírem o tipo de regime de que precisavam.
Se os EUA não conseguirem esse esforço no Iraque, o governo que representa os interesses da sua classe dominante capitalista e imperialista já disse abertamente o que poderia acontecer: “Com o passar do tempo, se não estiver a resultar, então vamos ter de reavaliar e teremos de decidir se vale a pena pôr lá outras forças, incluindo forças norte-americanas”, avisou o chefe do estado-maior das forças armadas norte-americanas Ray Odierno. Quando perguntado sobre se o mais recente envio de tropas é um prelúdio para mais envios, Obama respondeu: “Como comandante-chefe, nunca digo nunca”. Isto não é de forma nenhuma o que eles estavam a dizer antes, quando parecia que os EUA poderiam ficar na retaguarda e continuarem a manter o controlo – e eles não consideram que manter o controlo da região é uma opção.
Num detalhe que apesar disso é revelador, as tropas oficiais norte-americanas no Iraque são complementadas por mercenários originalmente contratados pela companhia de segurança Blackwater, cujos homens abriram fogo em 2007 numa rotunda de Bagdad sem nenhuma boa razão, matando 17 pessoas (entre as quais duas crianças) e ferindo outras 18. Como é que alguém pode alegar seriamente que enviar mais forças norte-americanas para o Iraque será algo mais que um festival de morte? Mas esta é a lógica de um apelo a uma coligação anti-Daesh.
Quem tem a esperança de que, de alguma forma, o fundamentalismo islamita possa ser parado com a ajuda dos aviões de guerra e das armas norte-americanas deveria pensar no efeito de se deixar o Daesh agarrar a bandeira da resistência aos EUA e de as forças laicas a abandonarem. É isso que está em jogo em Kobani.