Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 5 de Abril de 2004, aworldtowinns.co.uk
Os crimes da ocupação e a revolta em Falluja
Falluja foi durante muitos anos um alvo dos crimes norte-americanos. O sangue que inúmeras vezes as suas gentes derramaram irrigou uma resplandecente flor de resistência.
Os EUA começaram a matar gente em Falluja em 1991. Durante a primeira guerra dos EUA contra o Iraque, mísseis de cruzeiro – que as autoridades norte-americanas dizem ter uma precisão cirúrgica – explodiram num mercado cheio de gente dessa cidade que se situa a 50 quilómetros a oeste de Bagdad. Morreram pelo menos cem pessoas.
Os EUA nunca explicaram por que é que apontaram as suas armas de destruição em massa às pessoas que faziam compras na cidade. Nos últimos dias, as autoridades norte-americanas tentaram argumentar que não mereciam o ódio feroz do povo de Falluja, dizendo que a cidade era uma praça-forte de Saddam Hussein. Isso é mentira. O governo de Saddam considerava essa cidade no Rio Eufrates como perigosa. Os seus operários das fábricas, camponeses e outros habitantes pobres, tal como a maioria dos iraquianos, foram oprimidos pelo regime que, na realidade, foi apoiado pelos EUA e por outras potências ocidentais até aos anos 90. Os imãs de Falluja eram conhecidos por se recusarem a obedecer às ordens de Saddam para incluírem o seu nome nas orações.
Em Abril de 2003, duas semanas após a “vitória” dos invasores, tropas de elite da 82ª Divisão Aerotransportada dos EUA ocuparam uma escola de Falluja e aí montaram o seu quartel. Quando as crianças da escola, com os seus pais e outros habitantes, se manifestaram para exigir que os soldados saíssem de modo a que ela pudesse ser usada para as aulas, as tropas estacionadas no topo do edifício de dois andares dispararam tiros de metralhadora contra a multidão. Continuaram a disparar durante 20 minutos, começando por matar as pessoas que tentavam fugir e depois matando as pessoas encurraladas nas casas onde se tinham refugiado. A Cruz Vermelha relatou que os EUA mataram 15 pessoas e feriram outras 53, incluindo três crianças com menos de 11 anos e outras não muito mais velhas. Tiros das metralhadoras norte-americanas impediram as pessoas de salvar os feridos. Muitos sangraram até à morte enquanto os seus familiares assistiam. Dois dias depois, quando mil residentes de Falluja manifestaram-se para protestar contra esse crime, os soldados mais uma vez dispararam sobre a multidão, matando mais quatro pessoas. No dia seguinte, dois iraquianos – descritos como adolescentes pelas autoridades dos EUA – atiraram granadas de mão para o edifício ocupado. Os ocupantes mudaram-se para uma base a cinco quilómetros da cidade.
A 1 de Maio de 2003, ao mesmo tempo que Bush estava prestes a declarar a guerra como ganha, e novamente um mês depois, Falluja foi o local de duas das primeiras três emboscadas com êxito no Iraque contra as colunas militares de ocupação. As tropas dos EUA obrigaram os habitantes da cidade a um recolher obrigatório, a rusgas e a humilhantes e por vezes mortais invasões de casas. Outra coluna militar dos EUA foi novamente atacada com granadas nos finais de Junho. No fim desse mês, alguns dias após granadas-roquete terem atingido a nova base dos EUA, dez pessoas foram mortas quando uma bola de fogo atravessou a principal mesquita da cidade. As autoridades de ocupação explicaram que “a explosão esteve aparentemente relacionada com uma aula de fabrico de bombas que estava a ser dada dentro da mesquita”. Isso foi desmentido por testemunhas oculares que contaram aos repórteres da televisão Al-Jazeera que um helicóptero dos EUA tinha disparado um míssil para a mesquita, aparentemente como vingança contra o movimento de guerrilha da cidade.
Em Setembro passado, os GIs norte-americanos fizeram chover balas sobre um hospital de Falluja. Alguns dias depois desculparam-se e disseram ter sido um engano. Entre os mortos encontravam-se um polícia iraquiano, nove guardas do hospital e um trabalhador, bem como dois homens que os EUA disseram que suspeitavam serem ladrões – os alegados supostos alvos dos norte-americanos. Dizia-se nas ruas de Falluja que o que os ocupantes quiseram com este massacre foi dar uma lição às pessoas por apoiarem a resistência. Os habitantes de Falluja convocaram uma greve geral e fizeram uma manifestação armada. Disseram ao presidente da Câmara nomeado pelos ocupantes para não assistir às cerimónias fúnebres. Dessa vez as tropas dos EUA mantiveram a distância. Foram atacadas pelo menos três vezes nesse dia.
Desde então, muitos soldados norte-americanos foram mortos em emboscadas nas ruas de Falluja e nas estradas que passam pelos palmeirais vizinhos. Pelo menos três helicópteros dos EUA foram derrubados nessa zona, incluindo um grande Chinook porta-tropas em Novembro passado. Não há um registo do número de combatentes e civis mortos, mas a contagem de vítimas é de longe maior que a de ocupantes.
A 82ª Divisão Aerotransportada partiu o mês passado. Os fuzileiros navais (marines) dos EUA substituíram-nos. Continuaram as rusgas inexoráveis e o saque de casas, o roubo de bens e as tentativas de desgraçar e humilhar as pessoas. As armas dos EUA dispararam sobre carros e casas durante quatro dias e quatro noites de intensas incursões na parte oriental da cidade, nos finais de Março. Mataram 18 pessoas, incluindo um operador de câmara iraquiano que os filmava. Também morreram em combate dois marines.
Este é o cenário por trás do que aconteceu a 31 de Março em Falluja. Quatro norte-americanos fortemente armados e usando protecção corporal deixaram a base dos EUA em dois veículos de tipo militar e dirigiram-se para o centro da cidade. Os mercenários eram todos ex-comandos das Operações Especiais dos EUA. Usavam roupa civil. Por outras palavras, pareciam-se com as tropas das Forças Especiais dos EUA no Iraque que, em violação das Convenções de Genebra, recusam usar uniformes porque sentem que isso diminuiria o seu estatuto especial de assassinos altamente treinados. Imagens posteriores dos seus veículos desfeitos que passaram na televisão mostravam um cartão de identificação do Departamento de Defesa dos EUA, um passaporte dos EUA e coleiras de cão de tipo militar. As autoridades norte-americanas disseram que os quatro homens tinham sido enviados para proteger uma coluna militar que trazia alimentos para as tropas dos EUA. Isso não parece consistente com o seu itinerário. O que quer que fosse que esses mercenários estivessem a fazer, envolvia fazer avançar os objectivos militares da ocupação. Os habitantes da cidade disseram depois aos repórteres que, do modo como os quatro estavam vestidos e se comportavam, toda a gente assumiu que eram agentes da CIA.
A coluna foi emboscada numa rua cheia de lojas no coração da cidade, por alguns guerrilheiros com granadas de mão e armas ligeiras. Como o mundo inteiro viu na televisão, uma grande e jubilosa multidão juntou-se para celebrar. Aparentemente algumas pessoas sujeitaram os corpos dos mercenários ao mesmo tipo de indignidades que muitos iraquianos tinham experimentado. “As pessoas que arrastaram os cadáveres provavelmente tinham perdido algum ente querido morto pelos norte-americanos ou visto o seu pai preso e humilhado pelos soldados que lhe puseram as suas botas na cabeça”, explicou um mecânico de Bagdad ao Washington Post.
O líder dos EUA no Iraque, Paul Bremer, apelidou as mortes de obra de “cobardes e demónios”. “Os acontecimentos de ontem em Falluja são um exemplo dramático da luta contínua entre a dignidade humana e o barbarismo”, declarou.
Isto é inverter as coisas. Quem são os cobardes e os demónios? Quem representa a dignidade humana e quem representa o barbarismo? Mercenários, parte de um exército de ocupação fortemente armado, morreram em combate. Uma multidão levemente armada manteve à distância durante pelo menos quatro dias 4000 marines dos EUA apoiados por veículos blindados Humvees, tanques pesados, veículos de combate Bradley e aviões. De facto, ao mesmo tempo que os norte-americanos enviavam à pressa reforços em massa, colunas militares dos EUA foram atacadas várias vezes. Durante esses dias, os guerrilheiros emboscaram colunas militares perto de Falluja, Ramadi e Habbaniya a oeste. Em Bagdad, os ocupantes montaram patrulhas maciçamente armadas numa demonstração de força como há muito tempo não se via na capital.
No momento em que escrevemos, os EUA não tinham ainda ousado reentrar no centro de Falluja. Cercaram a cidade e disseram estar a visionar o vídeo feito por jornalistas iraquianos para identificar os participantes na multidão. Todas as estradas de entrada e saída da cidade foram bloqueadas. A cadeia de televisão norte-americana CNN chamou-lhe um “lockdown”, um termo normalmente reservado para prisões. Foram interrompidas as distribuições de comida de que Falluja depende. Durante a noite de 4 de Abril, uma força de 1200 marines começou incursões casa-a-casa em Haye Al-Jolan, na extremidade norte da cidade. Destruíram 10 casas, mataram cinco pessoas e feriram outras 15. Os marines de um posto de fiscalização num extremo da cidade dispararam sobre um carro e um camião e mataram mais duas pessoas. No dia seguinte, um marine foi morto na zona de Falluja e outros quatro algures na província de Al Anbar, embora o exército dos EUA se tenha recusado a dizer exactamente onde.
Apesar de se encontrarem de repente com as suas mãos ocupadas a tentar esmagar uma insurreição xiita em Bagdad e noutras cidades, os norte-americanos anunciaram claramente a sua intenção de castigarem Falluja. O porta-voz militar dos EUA, General Mark Kimmit, avisou que os marines “entrarão, restabelecerão a ordem e reporão essa gente no seu lugar”. Não pode haver nenhuma dúvida de que os EUA farão o seu melhor para fazer “essa gente” pagar o mais alto preço pelo seu desafio. No mundo inteiro, mesmo nas pátrias imperialistas, os homens e mulheres que sabem o que significa ser “essa gente” aos olhos do império, retém a sua respiração.
Por uma vez as autoridades tiveram que baixar (mas não abandonar) os seus gritos sobre “terroristas estrangeiros”, “extremistas religiosos” e “apoiantes de Saddam”. No mundo inteiro as pessoas viram a multidão cantar “O que te fez vir aqui, Bush, meter-te com as gentes de Falluja!” O mundo inteiro viu as massas populares de Falluja unidas no apoio à muqawama, a resistência.