Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 13 de Janeiro de 2014, aworldtowinns.co.uk
O veredicto do inquérito ao caso Mark Duggan de Tottenham:
A “morte legal” de um homem desarmado e a impossibilidade de reformar um sistema

Na quarta-feira, 8 de Janeiro, após três meses de depoimentos, saiu finalmente o veredicto dos juízes do inquérito à morte de Mark Duggan – o jovem negro de 29 anos cuja morte em Agosto de 2011 às mãos da Polícia Metropolitana de Londres desencadeou a maior revolta na Grã-Bretanha desde há uma geração. O veredicto: “morte legal”. As pessoas ficaram chocadas na zona de Tottenham, no norte de Londres, o bairro pobre da cidade onde Duggan viveu e onde a revolta começou, e em todo o país. Tinha-se propagado um sentimento generalizado de que teria havido jogo sujo na morte de Duggan, de que a polícia estava a esconder alguma coisa – por isso, como é que isto não emergiu ao fim de três meses de provas?
De certa forma, alguma da verdade emerge quando se dá uma vista de olhos pelo resto do veredicto dos juízes – e isso mostra muito sobre a forma como funciona o sistema de justiça criminal na mais velha democracia burguesa do mundo. Os juízes declararam quatro comprovações de factos: primeiro, que a morte de Duggan às mãos da polícia foi uma “morte legal” e, segundo, que Duggan estava desarmado no momento em que foi abatido. Mas como é que uma morte pode ser considerada “legal” quando um polícia armado abate um homem desarmado na rua!?
O que esta conclusão aparentemente absurda revela é que, em primeiro lugar, as autoridades britânicas estavam firmemente decididas a assegurar por todos os meios que este caso iria servir os seus persistentes esforços para se vingarem da revolta em massa de 2011 contra o seu sistema e, em segundo lugar, que iriam proteger a todo o custo a linha da frente dos defensores desse sistema, a brigada armada de elite que abateu Duggan. Isto está reflectido no que os juízes concluíram, e no que não concluíram, para chegarem ao seu veredicto.
Em Agosto de 2011, quando Duggan foi abatido, as autoridades emitiram de imediato uma declaração em que alegavam que Duggan tinha disparado sobre eles quando saiu do táxi que os carros da polícia tinham “parado à força” e que os seus agentes só o tinham matado em autodefesa. Esta alegação foi reproduzida durante 24 horas pela comunicação social até que, devido à repetição de testemunhos em contrário, finalmente emergiu que Duggan nunca tinha disparado sequer um tiro e que a arma que ele supostamente tinha disparado fora encontrada a 5 ou 6 metros de distância do corpo dele. O facto de as autoridades terem mentido de uma forma tão descarada foi amplamente visto como mais um sinal de que estavam a encobrir a execução a sangue frio de mais um jovem negro.

Mas a polícia manteve a alegação de que tinha disparado em autodefesa, pelo que uma questão central a que os juízes tinham de responder era: como é que a arma apareceu no local onde estava? A explicação em linha com a história da polícia era que Duggan tinha saído do táxi, de arma na mão, e que depois, quando atingido, a deve ter atirado na agonia da morte. Deixando de lado o quão inverosímil é que tendo sido parado à força por carros da polícia com um total de 31 polícias a cercá-lo alguém saísse do seu carro a agitar uma arma, o problema em relação a isto é que: 1) todas as diferentes testemunhas, para além do polícia que o abateu, disseram que Duggan não tinha nenhuma arma nas mãos quando saiu do táxi, incluindo os depoimentos do motorista do táxi e de várias outras testemunhas, e 2) não havia nenhuma evidência forense que mostrasse que Duggan alguma vez tivesse sequer tocado na arma.
Mas havia outra explicação possível: várias testemunhas relataram que tinham visto um agente da polícia a entrar no carro, a vasculhar à volta, e depois a caminhar directamente para a parte de trás da barreira onde a arma foi encontrada pouco depois. Isto apontava para uma versão do “deitar para o chão” uma arma que é conhecida como sendo frequentemente usada pela polícia nos EUA quando dispara sobre alguém que está desarmado. Mas para aceitarem esta versão os juízes teriam de ir contra uma imensa pressão e preconceitos, incluindo tentativas sistemáticas de glorificar o “corajoso” trabalho da unidade especialista em armas de fogo e de minar a credibilidade das evidências fornecidas pelas testemunhas, e os juízes teriam sido forçados a concluir que pelo menos dois membros da unidade de elite especialista em armas de fogo – o atirador e o polícia que supostamente pegou na arma e a plantou atrás da barreira – conspiraram para encobrir um assassinato flagrante.
Isto era claramente um passo demasiado grande para os juízes – mas é aquilo em que amplamente acreditam milhões de pessoas, incluindo muitas que têm visto como funciona a justiça britânica do lado errado dos bastões da polícia. E é totalmente consistente com a denúncia da mentira sistemática que tem caracterizado outros assassinatos da polícia, como o do jovem brasileiro Jean Charles de Menezes em 2005, quando a polícia alegou que ele estava a agir de forma suspeita de tantas maneiras que fora forçada a concluir que ele era um “terrorista” – o que mais tarde se confirmou ser uma teia de mentiras.
Os juízes, em vez disso, concluíram por uma votação de 8-2 que Duggan saiu do carro e imediatamente atirou a arma por cima da barreira e que foi depois abatido pela polícia quando estava desarmado. Esta conclusão contraria os depoimentos das testemunhas e as provas forenses – mas é a “menos inacreditável” das versões que deixaram os polícias sem punição e evita que se chegue a uma conclusão que a maioria dos juízes teria indubitavelmente achado ser profundamente perturbadora.

O anúncio do veredicto na quarta-feira foi recebido com gritos angustiados e indignação pelas dezenas de familiares e amigos que se tinham concentrado no Tribunal. O irmão de Duggan disse que a família “tinha vindo pedir justiça, mas tudo o que obtivemos foi injustiça” – a tia dele, Carol Duggan, gritou “Sem justiça, não há paz”. Os esforços do Vice-Comissário da Polícia nas escadas de tribunal para justificar o veredicto foram submersos por gritos de “assassinos, assassinos”, e a polícia mobilizou imediatamente centenas de polícias antimotim em alerta total em Tottenham e por toda a Londres.
O aumento da presença policial foi acompanhado de uma investida frenética na comunicação social para justificar ou “explicar” o veredicto – que incluiu ataques perversos ao próprio Duggan, com o Daily Mail por exemplo a fazer manchete falando no “assassino cuja morte desencadeou motins” – como se fosse normal a polícia disparar sobre um homem desarmado desde que depois se possa estabelecer o carácter desonroso dele. Isto evocou comparações com a forma como a comunicação social norte-americana tentou usar o assassinato de carácter em relação a Trayvon Martin na Flórida para justificar o assassinato dele às mãos do vigilante racista George Zimmerman.
Para se perceber como é que os tribunais britânicos puderam chegar a um veredicto tão inverosímil, é importante colocar isto no contexto do que aconteceu desde as revoltas de 2011. A classe dominante britânica ficou chocada e posta na defensiva pela fúria das massas que explodiu das “mais baixas profundidades” da sua ordem de classe, qunado a revolta lançou luz sobre a privação e a miséria que são a vida diária de milhões de pessoas. A revolta cresceu, tornando-se mais vigorosa e propagando-se a cada dia como um incêndio sem controlo durante mais de três dias, de Tottenham aos bairros pobres da cidade de Londres e depois a grande parte de Inglaterra – mostrando claramente a fúria que ferve logo abaixo da superfície da actual ordem social – antes de acabar por se extinguir devido à enorme repressão policial e à intensa chuva.
A classe dominante britânica imediatamente cerrou fileiras, dos trabalhistas aos Tory [conservadores], numa campanha de vingança. Os participantes na revolta foram impiedosamente perseguidos e punidos – mais de 5000 pessoas foram detidas nos últimos dois anos e meio, e mais de 3000 foram encarceradas, a vasta maioria delas muito depois dos acontecimentos com base em gravações CCTV. Ainda hoje, dois anos e meio depois, a Scotland Yard continua a emitir novos mandatos de prisão com base em imagens CCTV e tecnologia de reconhecimento facial.

Muitos jovens foram encarcerados durante 2 ou 3 anos por nada mais que terem retirado refrigerantes ou guloseimas de lojas de conveniência pilhadas durante a revolta, e um jovem que, em estado de embriaguez, pôs um apelo na sua página do Facebook a uma concentração e à “revolta” no dia seguinte, mas que nunca sequer saiu do seu apartamento – e em que nem uma única pessoa apareceu em resposta ao apelo dele a não ser a polícia – foi condenado a 4 anos – mais do que as penas recebidas por muitos dos condenados por violação na Grã-Bretanha. A severidade das penas foi chocante, e pretendia sê-lo, mas foi agressivamente justificada pelo sistema judicial britânico como garantida, devido ao “carácter organizado” da revolta.
A revolta inspirou jogos, filmes, poesia e música, muitos deles produzidos por radicais negros e por activistas contra as operações “parar e revistar” e o racismo. Alguns, como o documentário Riots Reframed [As Revoltas Reenquadradas], centrou-se em repudiar os esforços da comunicação social e dos políticos para retratarem os rebeldes como “assassinos inconscientes”, “arruaceiros” e por aí adiante – mostrando em vez disso a dura vida do “subproletariado”, as escolhas limitadas que têm e a brutalidade diária que sofrem às mãos dos defensores do sistema. Outros, como a peça de “prova falada” The Riots [As Revoltas] que foi representada durante várias semanas em salas esgotadas em Tottenham, tentaram dar um quadro mais preciso dos acontecimentos reais que ocorreram durante os três dias, em contraste com os esforços da comunicação social para salientar circunstâncias em que as massas foram atacadas por participantes na revolta.
Esta batalha trouxe à superfície grandes linhas de divisão na sociedade britânica e expôs o verdadeiro papel das suas instituições – os meios de comunicação de massas revelaram os seus dentes como órgãos de propaganda do estado capitalista, partidos como o Trabalhista defenderam vigorosamente a brutal repressão dos jovens marginalizados, órgãos social-democratas como o jornal The Guardian torceram as suas mãos e “explicaram” o problema como sendo “excessos” que precisam de ser “reformados”. E, do outro lado, dezenas de milhares de jovens mostraram a sua vontade de assumirem enormes riscos para se erguerem contra a linha da frente dos defensores do sistema, com apelos a tréguas entre gangs num esforço para forjarem uma unidade contra o que foi percebido como sendo o inimigo principal. A erupção obteve mesmo simpatia entre muita gente dos estratos médios, o que levou a um grande debate em todo o país sobre a verdadeira fonte do que os jovens enfrentam. Esta batalha também deu um breve vislumbre do potencial para forjar uma força revolucionária pelo derrube do actual sistema – não, é verdade, como os jovens, ou quaisquer outras pessoas, são hoje, mas forjada a partir da fúria que ferve logo abaixo da superfície que explodiu da parte dos que nada esperam da actual sociedade, a partir do realinhamento que a erupção provocou de uma forma tão imediata entre os mais vastos estratos sociais, e da clareza que evidenciou sobre o verdadeiro papel de todas estas diferentes forças.

Como é que se comportaram as forças marxistas e “revolucionárias” organizadas da Grã-Bretanha face a tudo isto? Miseravelmente. O maior dos partidos ditos marxistas da esquerda, o Partido dos Trabalhadores Socialistas [SWP, Socialist Workers Party], será que defendeu que “motins” como estes, ainda que causados pelas desigualdades da ordem social britânica, são em última análise ineficazes e que o era preciso era em vez disso... uma ofensiva revolucionária organizada contra o poder existente?! Sonhem – não, longe disso, o SWP concluiu que o “motim” apontava para a necessidade de um... “movimento organizado dos trabalhadores” – por outras palavras, mais do sindicalismo e reformismo economicista que há muito caracterizam as forças marxistas na Grã-Bretanha, e que repetidamente acabam por sugar a energia revolucionária das massas e depois por ser sugados na peugada do Partido Trabalhista. O “movimento dos trabalhadores” continua a ser um termo sagrado na terra onde Marx estabeleceu as bases da revolução comunista.
Uma vez mais, na sequência do veredicto do inquérito, os comissários da polícia andam a prometer reformas – como fazer com que a unidade especializada em armas de fogo use “máquinas fotográficas corporais” – e os políticos e analistas, do primeiro-ministro David Cameron para baixo, estão a exigir que todo o descontentamento com o veredicto tenha de seguir os “canais formais” – por outras palavras, mais investigações por este ou aquele organismo oficial, em particular a Comissão Independente de Reclamações da Polícia. O apelido generalizado que lhe tem sido atribuído – Comissão Independente de Encobrimentos da Polícia – é uma indicação do que se pode esperar desse organismo.
Inquest [Inquérito], um documentário produzido por uma ONG local, mostra que das 300 mortes sob custódia policial na Grã-Bretanha durante pouco mais de uma década, nem um polícia foi alguma vez acusado com êxito por uma única morte. Numa dúzia de inquéritos, foi mesmo possível terem chegado à conclusão que alguém que morre sob custódia policial tinha sido vítima de “morte ilegal” – conclusões que foram amplamente elogiadas como mostrando que “o sistema funciona” – apesar de que, mesmo nessa dúzia de casos, quando a vítima estava no interior de uma esquadra da polícia completamente sob controlo da polícia, nem um único polícia foi processado com êxito.
Assim, em conclusão, gostaríamos de perguntar: se este caso – em que os juízes concluíram que a morte de alguém é “legal”, apesar de aceitarem que essa pessoa não estava armada, e depois de uma revolta que envolveu centenas de milhares de pessoas e que deu o veredicto das massas sobre o assassinato de Duggan, e com tudo o que aconteceu desde então – se isto não mostra a impossibilidade de reformar este sistema, então do que você precisa para se convencer disto?