Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 5 de Outubro de 2009, aworldtowinns.co.uk

O relatório da ONU sobre Gaza:
Os EUA e Israel contra a verdade

Lenço palestiniano

Um relatório recente elaborado para o Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU sobre a invasão israelita de Gaza faz acusações que são tão sérias quanto específicas. Os EUA e Israel responderam como rufiões que batem numa pessoa que os processou por a terem agredido.

O solene e meticuloso relatório documenta factos que irão enfurecer toda a gente que ouse pensar nos palestinianos como seres humanos. O CDH da ONU nomeou Richard Goldstone, um juiz sul-africano, ex-procurador principal do tribunal internacional para os crimes contra a humanidade na Bósnia e no Ruanda, juntamente com três outros proeminentes juristas internacionais, para fazerem uma investigação das operações militares que foram realizadas em Gaza por ambos os lados durante o período de 27 de Dezembro de 2008 a 18 de Janeiro de 2009 e relatarem as suas conclusões factuais e legais.

A sua descrição dos acontecimentos começa assim: “O momento do primeiro ataque israelita, às 11:30 de um dia de semana, quando as crianças regressavam da escola e as ruas de Gaza estavam abarrotadas de pessoas que faziam a sua vida diária, parece ter sido escolhido para criar a maior perturbação e o pânico generalizado entre a população civil”. O relatório documenta repetidos “ataques directos” a civis com a intenção de os matar, um “irresponsável menosprezo” pelas vidas civis em geral e uma campanha de destruição deliberada contra a produção de alimentos e as infra-estruturas, concebida para tornar a vida em Gaza miserável durante muito tempo. Tudo isto são delitos criminais muito graves perante o direito internacional.

Os quatro juízes concluíram: “Embora o Governo israelita tenha tentado retratar as suas operações como sendo essencialmente uma resposta a ataques de rockets, exercendo o seu direito à autodefesa, a Missão considera que o plano foi dirigido, pelo menos em parte, contra um alvo diferente: os habitantes de Gaza no seu todo”.

O seu relatório recomenda que o Conselho de Segurança da ONU exija que as autoridades israelitas e palestinianas investiguem por si próprias as acusações do relatório e que, na ausência de um sério assumir de responsabilidades e de acção legal contra os responsáveis, o Conselho de Segurança peça ao Tribunal Criminal Internacional de Haia que inicie uma investigação com vista a julgar as lideranças de Israel e do Hamas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Também levanta a ideia, pelo menos hipoteticamente, de que outros governos possam, por si próprios, iniciar processos legais ao abrigo da doutrina de “jurisdição universal” que exige aos países individuais que tomem acções legais face a violações das Convenções de Genebra.

A embaixadora dos EUA na ONU, Susan Rice, reagiu declarando inequivocamente que não permitiria que o Conselho de Segurança discutisse o tema. “A jurisdição apropriada para apreciar este relatório é o Conselho de Direitos Humanos”, disse ela (BBC, 29 de Setembro de 2009). De seguida, ela actuou de forma a garantir que também o CDH não o pudesse avaliar, esvaziando uma tentativa de que o CDH votasse para endossar ou não o relatório que tinha pedido. De uma forma bastante reveladora, Rice nada disse sobre a verdade ou falsidade das conclusões dos juízes, só que o seu governo estava a “rever cuidadosamente esse documento que é muito extenso”. Em vez disso, ela atacou a decisão do Conselho de Direitos Humanos de, desde logo, ter iniciado a investigação, um acto que ela apelidou de “desequilibrado, unilateral e basicamente inaceitável” (Reuters, 17 de Setembro de 2009).

A decisão de pedir o relatório foi tomada antes de os EUA terem voltado a integrar o CDH da ONU, no início deste ano. Quando Obama decidiu reocupar o lugar dos EUA no CDH que Bush tinha repudiado, algumas pessoas esperavam que isso marcasse uma mudança para melhor da política norte-americana. Porém, Rice explicou ao conhecido blogue Politicus que isso colocaria os EUA numa melhor posição para “combater o lixo anti-israelita” (4 de Abril de 2009). A posição de Washington face ao relatório Goldstone é semelhante à de Israel, que diz ter feito a sua própria investigação dos 36 incidentes que Goldstone documentou, mas que se recusa a divulgar os seus resultados ou tentar refutar as conclusões do relatório porque a investigação dele foi ilegítima. “Foi concebido no pecado e é o produto de uma união entre propaganda e influência”, como disse um porta-voz do primeiro-ministro israelita Benjamim Netanyahu (Guardian, 16 de Setembro).

O CDH da ONU nunca discutiu sequer o relatório Goldstone. Estava agendado para a ordem de trabalhos de 2 de Outubro. No último minuto, a suposta delegação palestiniana ao CDH da ONU, nomeada pela Autoridade Palestiniana liderada por Mahmoud Abbas e agindo sob uma “intensa diplomacia” de Washington, retirou o seu apoio à moção que endossaria o relatório que ela própria tinha pedido. Os representantes da Autoridade Palestiniana fingiram que essa “mudança surpreendente” (New York Times, 3 de Outubro de 2009) não era uma inversão de posição, porque supostamente o CDH pode voltar a considerar a questão na sua próxima reunião em Março de 2010. Até lá, os EUA, Israel e os outros governos representados no Conselho esperam que o conteúdo explosivo do relatório já se tenha dissipado um pouco.

A verdadeira razão para o “recuo” da Autoridade Palestiniana foi que os EUA ameaçaram cortar o seu apoio vital à Autoridade Palestiniana (AP) que tem apostado a sua existência na esperança de poder vir a fazer algum tipo de acordo com Israel (Robert Blecher, analista do Grupo Internacional de Crise, Guardian, 2 de Outubro de 2009). O primeiro-ministro israelita tinha ameaçado vingança se a AP não recuasse. Ele avisou que a aprovação do relatório seria considerada um ataque a Israel e que Israel não distingue entre ataques com “granadas e balas ou palavras” (NYT, 2 de Outubro).

Diplomatas israelitas tinham avisado os EUA de que se a ideia de Israel ter cometido crimes de guerra vier sequer a ser ouvida na ONU, os EUA poderão vir a enfrentar acusações semelhantes. Um artigo no jornal Haaretz de Telavive comparou a acusação de que Israel tinha violado o direito internacional ao matar civis em Gaza com o massacre aéreo norte-americano de um grande número de civis afegãos em Kanduz, em Agosto passado, e com o infame massacre de camponeses em My Lai durante a ocupação norte-americana do Vietname. O argumento do autor não foi condenar todos esses crimes mas defender que seria melhor que os EUA assumissem uma posição inequívoca e avançassem para uma ofensiva contra o relatório Goldstone. Com esse tipo de apoio dos EUA, “as IDF [o exército israelita] e o governo podem sair do bunker e verificar que houve poucos danos” (16 de Setembro). A metáfora é apropriada: os EUA servem de retaguarda do apoio militar, político e económico a Israel porque o estado sionista é um bunker da linha da frente dos interesses imperialistas norte-americanos no Médio Oriente.

Resistente palestiniano

Quando a delegação palestiniana retirou o seu apoio à moção sobre o relatório, o Paquistão, patrocinador formal da moção e representante no CDH de vários países árabes e ditos “islâmicos”, retirou-a. Abandonar a questão sem discussão permitiu que os governos europeus e do terceiro mundo no CDH salvassem a face porque já não tinham que fingir que se preocupam, já para não falar em não terem que enfrentar os EUA. A Líbia, por exemplo, tinha prometido o que foi descrito como uma discussão “simbólica”, mas mesmo isso foi evitado, para alívio geral de todos os 47 membros do CDH, nenhum dos quais levantou objecções à mudança de acontecimentos.

No final, o bloqueio pelos EUA de qualquer análise do relatório Goldstone foi propagandeado como sendo uma coisa boa para os palestinianos porque permitia que Obama extraísse algumas concessões de Israel, em compensação. Claro que isso tem sido há décadas a rotina de “polícia bom, polícia mau” dos EUA e Israel, em que mesmo as mais ligeiras “concessões” que Israel possa considerar fazer à Autoridade Palestiniana encolhem continuamente até à insignificância. (Veja-se o exemplo dos colonatos israelitas que, tal como salienta o relatório Goldstone, são completamente ilegais ao abrigo do direito internacional, mas já ocupam cerca de 40 por cento da Cisjordânia. A Washington de Obama está a pedir a Israel que reduza ligeiramente a sua velocidade de expansão.)

Quanto à condenação do Hamas pelo relatório, embora o relatório se esforce em ser bilateral, não pode condenar da mesma forma Israel e o Hamas, porque a realidade não o permite.

Conclui ser credível a estimativa de que cerca de 1400 palestinianos morreram na invasão israelita e dá exemplos específicos de muitos civis mortos deliberadamente ou devido a “irresponsável menosprezo”, por bombas, obuses de fósforo branco e balas israelitas. (O grupo israelita B'Tselem publicou uma investigação detalhada que mostra que dos 1387 mortos, 773 eram civis, entre os quais 252 pessoas com menos de 16 anos de idade. BBC, 9 de Setembro de 2009).

O relatório Goldstone diz que, durante a invasão, os rockets palestinianos mataram três civis e um soldado israelita e que a campanha de rockets e morteiros palestinianos durante os três meses anteriores – a suposta justificação para a incursão – não causou nenhuma morte. Em anos anteriores, o exército israelita tinha disparado dez vezes mais projécteis sobre Gaza que o contrário. A utilização de bombistas suicidas pelos palestinianos tinha sido suspensa. Ao condenar o Hamas por usar rockets pouco fiáveis que podem atingir civis em vez de alvos militares, o relatório alega: “Quando não há nenhum alvo militar específico e se lançam rockets e morteiros sobre zonas civis, isso constitui um ataque deliberado contra a população civil. Esses actos constituem crimes de guerra e podem ser considerados crimes contra a humanidade.” Se isto é uma tentativa de delinear uma equivalência entre os dois lados, não é convincente. Além disso – para os revolucionários ou para qualquer outra pessoa –, não há absolutamente nenhuma razão para que a oposição aos crimes israelitas seja associada a um apoio a essa organização fundamentalista islâmica reaccionária. O relatório salienta que as autoridades israelitas só fornecem abrigos contra ataques aéreos aos colonatos judeus, e não às aldeias palestinianas do sul de Israel também ameaçadas pelos erráticos rockets de Gaza. Isto torna muito claro que a invasão israelita de Gaza nada teve a ver com proteger nenhuma vida.

A mais importante insuficiência do relatório está no pressuposto de base dos seus autores e da ONU: o de que Israel tem direito a existir. Segue a posição tradicional da ONU (antes de os EUA terem conseguido trazer esse organismo internacional para mais próximo dos seus calcanhares) que faz uma distinção entre Israel e os “Territórios Palestinianos Ocupados” (a Cisjordânia e Gaza), como se o próprio Israel não tivesse sido construído em terras ocupadas de onde a maioria dos palestinianos foi expulsa. Assume que tanto os palestinianos como os judeus têm “direito ao seu próprio país”. Embora reconheça que a lei israelita nega explicitamente direitos integrais aos não-judeus, não chega à conclusão lógica de que a existência de um estado judeu tem tanto de justo como a existência do estado dos colonos supremacistas brancos da África do Sul do apartheid. É esta a errónea premissa que está por baixo da sua condenação do Hamas por perturbar vidas israelitas.

Goldstone foi descrito como “um querido amigo de Israel” por um antigo juiz do Supremo Tribunal israelita (Haaretz, 18 de Setembro de 2009). A sua filha Nicole disse à Rádio do Exército israelita: “O meu pai aceitou este trabalho porque pensou que estava a fazer a melhor coisa para a paz, para toda a gente e também para Israel”. Depois acrescentou: “Não foi fácil. O meu pai não estava à espera de ver e ouvir o que viu e ouviu.” (Haaretz, 16 de Setembro). Os ataques israelitas a Goldstone foram tão encarniçados em parte porque ele se identifica a si próprio como judeu e é, por isso, visto como traidor, por ser mais leal à verdade que a Israel. A doutrina sionista que tenta identificar todas as pessoas de ascendência judia com um estado criminoso é uma importante fonte do actual anti-semitismo nebuloso e alimenta as tentativas dos fundamentalistas islâmicos de enquadrarem a luta contra Israel em termos religiosos e racistas.

Goldstone e a sua equipa “viram e ouviram” 188 entrevistas, 10 mil páginas de documentos e 1200 fotografias. Israel impediu Goldstone de entrar em Israel, em Gaza ou na Cisjordânia – os membros da ONU não parecem ter ficado incomodados com esta medida extraordinária tomada contra um dos principais juízes internacionais do mundo, numa missão oficial da ONU – por isso, ele levou as testemunhas palestinianas e israelitas para fora do país. Algumas das conclusões da missão são apresentadas num anexo a este artigo. A mais central é a seguinte:

“A Missão é de opinião que a operação militar de Israel em Gaza entre 27 de Dezembro de 2008 e 18 de Janeiro de 2009 e o seu impacto não podem ser entendidos e avaliados isoladamente de desenvolvimentos anteriores e subsequentes a ela. A operação encaixa na continuação de políticas que visam atingir os objectivos políticos de Israel em relação a Gaza e aos Territórios Palestinianos Ocupados como um todo. Muitas dessas políticas baseiam-se ou resultam em violações da lei dos direitos humanos e da lei humanitária internacional. Os objectivos militares, tal como declarados pelo governo de Israel, não explicam os factos averiguados pela Missão, nem são congruente com os padrões identificados pela Missão durante a investigação.”

“A continuidade é mais imediatamente evidente na política de bloqueio que precedeu as operações e que, na perspectiva da Missão, constitui um castigo colectivo infligido intencionalmente pelo Governo de Israel aos habitantes da Faixa de Gaza.”

O alvo de Israel foram “os habitantes de Gaza no seu todo”. Os crimes ocorreram não devido a excessos ou erros no decurso da batalha mas porque “as operações basearam-se numa política deliberada de força desproporcionada dirigida não ao inimigo mas à ‘infra-estrutura de apoio’. Na prática, isso parece querer dizer a população civil.”

Os EUA estão a tentar caluniar e esmagar este relatório assim tão arduamente porque ele documenta crimes israelitas em Gaza com um detalhe chocante, descreve a ilegalidade não só de acções particulares do exército israelita mas da estratégia de base do país nessa guerra e da sua abordagem aos palestinianos em geral e toma uma posição firme contra isso por isso pertencer à mais elevada categoria de crimes. Mina a legitimidade dos EUA e de Israel, ao rasgar o manto de direito internacional e de padrões civilizados com que eles se tentam cobrir. Este relatório é uma contribuição para a exposição das nuas relações de poder e violência em que se baseia a actual ordem mundial e, com o desenrolar dos acontecimentos, o papel da própria ONU como folha de parra.

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