Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 25 de Novembro de 2013, aworldtowinns.co.uk

O Curdistão e os desenvolvimentos no Médio Oriente
Uma entrevista a Amir Hassanpour

Refugiados curdos sírios preparam-se para atravessar a fronteira
Dezenas de milhares de refugiados curdos sírios em fuga para o Iraque preparam-se para atravessar a fronteira em Agosto de 2013 (Foto:. AP)

A recente declaração de intenções sobre a formação de um governo autónomo de transição nas regiões curdas do norte e nordeste da Síria é um evento de uma série de desenvolvimentos que marcam uma situação nova e complexa que está a emergir entre os movimentos nacionais curdos. A seguir à retirada do exército sírio há mais de um ano, essas zonas ficaram sob o controlo militar e político do Partido da União Democrática (PYD). Esta organização curda síria é aliada do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) da Turquia, que ajudou a organizar a grande e crescente milícia do PYD, as Unidades de Protecção do Povo (YPG). Desde esse anúncio a 12 de Novembro, tem havido relatos de que as YPG têm derrotado nessa zona combatentes islamitas sunitas anti-Assad e estendido o controlo das PYD a outras aldeias e cidades curdas.

Estes acontecimentos ocorreram no contexto de dois desenvolvimentos regionais particularmente importantes. Um deles é um aparentemente importante avanço nas negociações que há muito decorrem com o estado turco, através das quais o PKK espera acabar com a sua insurreição armada e tornar-se num partido político convencional. O outro é a primeira reunião do Congresso Nacional do Curdistão (NCK) que decorreu em Erbil, a capital do Governo Regional do Curdistão no Iraque. Representantes do Curdistão turco, sírio, iraniano e iraquiano participaram no que eles vêem como sendo um passo inicial para a formação de um Grande Curdistão, um estado que virá a incluir todas as regiões curdas. Porém, este projecto nacionalista está cheio de contradições, entre as quais os regimes reaccionários rivais a que as várias organizações curdas estão aliadas, como comprovado pela por vezes ambígua relação entre o NCK e o PYD.

Estes desenvolvimentos regionais seriam inimagináveis sem as grandes mudanças políticas das duas últimas décadas. Uma delas foi o colapso da União Soviética que tornou possível aos EUA desencadearem a sua primeira guerra contra o Iraque em 1991 e ocuparem o país em 2003. Contudo, os EUA não conseguiram pôr o Iraque sob o seu controlo total e consolidar o seu domínio regional. Um outro factor importante foram as revoltas que varreram o Norte de África e o Médio Oriente e que desafiaram a configuração dos regimes reaccionários da região. Tudo isto foi claramente sentido no Curdistão.

Depois da I Guerra Mundial, quando as potências imperialistas dividiram entre si grande parte do mundo e sobretudo o Médio Oriente, elas negaram um estado nacional ao povo curdo e dividiram-no por quatro países: Turquia, Irão, Iraque e Síria. Durante os últimos 94 anos, os curdos têm lutado pelo seu direito à autodeterminação nesses países. Tem havido avanços e recuos na luta, mas a questão nacional curda continua por resolver.

Além dos imperialistas e outras potências reaccionárias e da sua cruel opressão e conspirações, um grande problema para o povo curdo no decurso da sua luta tem sido a liderança das classes e forças políticas reaccionárias, sobretudo os representantes das relações feudais e tribais. Imediatamente após a II Guerra Mundial, os curdos, sob a liderança de Ghazi Mohammad, formaram a República Democrática do Curdistão no Curdistão iraniano, mas esse regime foi esmagado exactamente um ano depois pelo Xá do Irão. O recrudescimento da luta curda durante e após a revolução iraniana contra o Xá em 1979 foi brutalmente reprimido pelo regime islâmico. Até a anos recentes, os curdos da Turquia não estavam autorizados a chamar-se a si próprios curdos nem a falar o seu próprio idioma. A luta curda atingiu um ponto alto no Curdistão iraquiano até à capitulação perante o governo iraquiano sob a direcção de Mullah Mostafa Barzani, líder do Partido Democrático Curdo (KDP) em meados dos anos 1970, mas entretanto cresceu de novo.

A seguir à guerra de 1991, os EUA patrocinaram a formação de um governo autónomo curdo no Iraque, sob a presidência de Massoud Barzani, filho de Mostafa, como parte do seu plano para reorganizar o Médio Oriente sob o seu controlo. Apesar disto, as coisas não resultaram da forma que estes imperialistas queriam. Com as revoltas árabes e a entrada da Síria numa guerra civil impulsionada em não pequena escala por uma intervenção estrangeira reaccionária, a questão curda tornou-se num factor ainda mais poderoso na geopolítica regional.

Uma entrevista a Amir Hassanpour publicada na edição de Novembro de 2013 do Haghighat, órgão do Partido Comunista do Irão (Marxista-Leninista-Maoista) explora esta situação e centra-se nas negociações na Turquia no âmbito deste contexto mais vasto. Hassanpour, um académico e investigador curdo iraniano, é actualmente professor associado na Universidade de Toronto. Estes excertos foram ligeiramente editados.

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Em que medida o processo de paz e compromisso entre o PKK e o estado turco fazem parte de um projecto regional e internacional mais vasto? Será que parece que o âmbito deste projecto não se limita às fronteiras da Turquia, mas faz parte de um projecto imperialista mais vasto para toda a região?

Tem havido muita discussão sobre este assunto. As várias análises deste projecto formam um espectro, desde os que lhe chamam uma “mudança histórica” num sentido positivo aos que lhe chamam traição. Porém, este tipo de teorias nacionalistas não consegue chegar à essência da questão. Claramente não é apenas um desenvolvimento interno – tem dimensões regionais e internacionais – mas a questão é a forma como as contradições internas e externas se desenvolveram para tornarem possível este projecto.

Olhando para isto internamente, a contradição entre o estado turco e o povo curdo que atingiu o seu ponto mais alto com uma guerra entre o governo e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) não pode ser resolvida militarmente, tal como o vê o líder do PKK, Abdullah Öcalan. Após mais de trinta anos de guerra, mesmo com o segundo maior exército da NATO e a ajuda dos EUA, de Israel e de alguns estados europeus, a Turquia não conseguiu eliminar o PKK da cena política da Turquia e da região. Mesmo depois de as forças de segurança turcas terem sequestrado Öcalan em 1999, o governo de Ancara não consegue acabar com o conflito a seu favor. O PKK conseguiu preservar as suas forças militares à sombra dos desenvolvimentos que se seguiram às guerras dos EUA contra o Iraque em 1991 e 2003. Reconfigurou-se a si mesmo, política e organizativamente, assegurando a liderança de Öcalan a partir da prisão, e fez sentir a sua presença e poder em todas as esferas políticas, legais, mediáticas e diplomáticas na Turquia e na região.

Porém, embora a Turquia não possa eliminar o PKK e o movimento nacional do povo curdo na Turquia, o PKK não consegue mudar o sistema político da Turquia, nem separar o Curdistão da Turquia. Nem sequer conseguiu obter a autonomia curda dentro do estado turco. Isto não é uma questão exclusivamente militar. Do ponto de vista militar, o PKK tem levado a cabo uma guerra de guerrilhas, não uma guerra popular como no Vietname, que durante mais de quatro décadas conseguiu derrotar três potências imperialistas – o Japão, a França e os Estados Unidos. Nenhum dos lados na Turquia tem conseguido derrotar o outro.

Outros desenvolvimentos nesta situação incluem o colapso parcial do estado baathista no Iraque e a formação do Governo Regional Curdo em 1991, o colapso total de Saddam Hussein em 2003 e o subsequente caos político no Iraque, e em particular a guerra que tem estado a decorrer na Síria durante os dois últimos anos com o envolvimento activo do governo de Erdoğan. Isto criou uma situação em que o PKK pôde obter vantagens, impor a sua hegemonia entre os curdos sírios e obter um peso político e militar que já não pode ser ignorado pela Turquia, pelo Irão e por outros países da região.

Durante os últimos trinta anos, a contradição entre o estado turco e o movimento nacional curdo obscureceram todas as outras relações de classe e género, bem como as relações regionais e internacionais da Turquia. A questão é perceber porque é que o governo turco, depois de ter resistido ao desafio do PKK durante mais de trinta anos, acabou por recorreu a negociações e procurou obter uma solução política, ao contrário dos governos iraquianos entre 1961 e 1991? O que é que levou um estado mais poderoso e mais estável como a Turquia a negociações com um partido cujo líder está na prisão há quase 15 anos?

Claramente, o Iraque de Saddam era diferente da Turquia de hoje. Há duas condições históricas muito diferentes. Uma é a posição da Turquia na actual ordem mundial e a situação caótica dessa ordem. A ordem mundial estabelecida por potências imperialistas como a Grã-Bretanha, a França e os EUA após a redivisão que eles fizeram das colónias e das esferas de influência nas I e II Guerras Mundiais está agora numa intensa crise caracterizada pela instabilidade económica e política – caos e desordem.

Devido à sua forma de funcionar e de se reproduzir, o sistema imperialista sempre precisou de uma divisão de trabalho entre os seus elementos ou componentes. A Turquia, no passado e em particular após a II Guerra Mundial, tem feito parte da engrenagem do sistema e representado um importante papel no seu funcionamento. A Turquia é membro da NATO e foi uma das mais importantes bases norte-americanas de inteligência (espionagem) contra os soviéticos. Participou activamente nas invasões norte-americanas da Coreia e do Vietname e tem sido um dos apoiantes dos sionistas. Deste ponto de vista, a Turquia tem representado o papel de gendarme regional. As suas pequenas diferenças com os EUA, no meio do caos actual, sobre o seu papel na guerra de 2003 contra Saddam, as suas diferenças com Israel e a natureza islâmica do governo não alteraram esta relação.

De facto, a Turquia tem um grande potencial para representar um papel efectivo na actual configuração imperialista. Além dos factores geopolíticos, a Turquia tem o segundo maior exército da NATO. Tem uma força laboral e recursos naturais (excepto petróleo) suficientes. Do ponto de vista dos EUA e da União Europeia [UE], o “Islão moderado” do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) no governo é um modelo ideal para os países islâmicos.

Porém, para que a Turquia desempenhe um papel efectivo nesta situação crítica, precisa de ser politicamente estável e de fortalecer e consolidar a sua economia. A importância do papel que a Turquia tem assumido não resulta apenas da geopolítica ou da sua força militar. Do ponto de vista ideológico, com o governo do AKP a Turquia está à espera de uma restauração do Império Otomano sob alguma nova forma ou numa escala muito limitada.

Embora o AKP, tal como os Kemalistas, seja nacionalista, do ponto de vista ideológico (ao contrário dos Kemalistas) também está empenhado numa combinação entre religião e política, nacionalismo e islamismo. O novo projecto otomano da Turquia é consistente com o projecto do Grande Médio Oriente defendido por George W. Bush e outros políticos imperialistas norte-americanos que desejam redesenhar o mapa político do Médio Oriente e instalar regimes islâmicos moderados.

Levar a cabo o novo projecto otomano é uma tarefa muito difícil, mesmo nesta situação caótica, e esta questão precisa de ser examinada em si mesma. Mas no que diz respeito à questão curda, se as negociações com o PKK tiverem êxito, essa paz ajudaria a trazer mais estabilidade política e económica à Turquia. Também privaria os estados rivais da região, como o Irão, a Rússia e a Síria, da oportunidade de explorarem a contradição entre o estado turco e o PKK, e libertaria o exército turco.

No rescaldo da primeira guerra norte-americana contra o Iraque em 1991, quando Saddam intensificou a repressão dos xiitas e dos curdos, alguns líderes curdos tenderam a querer juntar o Curdistão iraquiano à Turquia. Eles pensavam que essa jogada aumentaria o número de curdos na Turquia, para que, sob pressão da UE, a Turquia fosse forçada a reconhecer os direitos curdos. Porém, isso não aconteceu. Pelo contrário, foi formado um governo autónomo, e depois desenvolvimentos posteriores, em particular a guerra norte-americana de 2003 contra o Iraque e as suas consequências, transformaram o Governo Regional do Curdistão numa importante força regional, dada a importância da sua economia e do seu petróleo. Hoje, a maioria do investimento no Curdistão iraquiano vem da Turquia e a Turquia espera que o petróleo curdo venha a impulsionar a sua economia e o seu projecto de gendarme.

Ao mesmo tempo, a fluidez da região tornou possível ao PKK tornar-se numa importante força no Curdistão sírio e utilizá-lo a seu favor na oposição a Ancara e a Erbil (a capital do Governo Regional do Curdistão). No verão de 2012, quando o Partido da União Democrática (PYD), um partido curdo sírio que apoia o PKK, assumiu o controlo das regiões curdas da Síria, isso causou consternação em Erbil e Ancara. A retirada do exército sírio das regiões curdas e a nova hegemonia do PKK aí tornaram ainda mais claro ao governo turco que não podia abandonar o processo de paz, e ao mesmo tempo também permitiu ao PKK avançar com a possibilidade de unir algumas partes do Curdistão.

Embora o projecto de paz aumente a possibilidade de participação dos curdos – ou, para ser mais preciso, da burguesia curda – no estado turco, ao mesmo tempo a fluidez da região também deu lugar a uma discussão sobre a formação de um estado curdo independente no Iraque e de um governo curdo autónomo na Síria, e mesmo da integração dessas zonas num único estado curdo (o Grande Curdistão, como eles lhe chamam). Lembremos que, na Turquia, a um nível limitado, o PKK já está a partilhar o poder político. Por exemplo, o Partido Paz e Democracia (BDP) tem representantes no Parlamento e ajuda a gerir algumas municipalidades. Um dos principais objectivos do projecto de paz é afastar todo o pensamento de uma revolução ou de uma tomada do poder político através da luta armada, e ao mesmo tempo salvar o actual sistema, usando o parlamento para incluir o PKK e a burguesia curda na estrutura de poder.

Parece que este compromisso político tem bases ideológicas e teóricas, ideias que se formaram num contexto político e regional/internacional específico. As fontes históricas oficiais do PKK indicam que este processo de mudanças ideológicas e políticas começou depois de Öcalan ter sido transferido para a Prisão de Imrali (uma ilha perto de Istambul) em 2000. O próprio Öcalan formulou isto nos seus Escritos da Prisão, em cinco volumes, onde diz que tem revisto a experiência do “socialismo real” – com o que quer dizer a experiência da União Soviética.

Têm sido dadas diferentes explicações para a viragem à direita do PKK. Algumas pessoas alegam que, tal como aconteceu com outros partidos revisionistas, a mudança no PKK foi basicamente devida ao colapso do bloco soviético. Outras pensam que, com início por volta de 2000, quando se estavam a propagar os rumores de uma nova invasão norte-americana do Iraque e do estabelecimento formal de um governo curdo, Öcalan considerou que isso era uma oportunidade para participar na concretização desse plano. Você acha que estas ideias têm alguma base? Nesse caso, o que é que mais influenciou o PKK, a derrota do socialismo do século XX ou a atmosfera política criada na região?

O PKK foi formado durante as lutas políticas dos anos 1970. Assumiu as expressões “partido dos trabalhadores” e “Marxismo-Leninismo” e adoptou o símbolo da foice e do martelo e um programa de empenho na criação de um “Grande Curdistão socialista” (i.e., um Curdistão unificado). Durante os últimos 35 anos, este partido influenciou a situação política no Curdistão e na região e ao mesmo tempo foi influenciado por importantes acontecimentos como o golpe burguês na China e o colapso do bloco social-imperialista soviético em 1989-1992, a ascensão de uma teocracia islâmica ao poder no Irão, e as guerras norte-americanas contra o Iraque. Porém, não acho que o PKK possa ser considerado comunista, nem no seu início nem durante os anos subsequentes do seu desenvolvimento. Para uma pessoa ou um partido poderem ser ou não considerados socialistas ou comunistas, isto depende sobretudo da sua linha política e ideológica, não dos seus desejos ou do que eles alegam ser, nem do pano de fundo ou do estatuto dos seus membros ou líderes.

O PKK emergiu como partido de esquerda no movimento nacional do Curdistão, tal como o Komalah (Marxista-Leninista) no Curdistão iraquiano e a Organização Revolucionária dos Trabalhadores Curdos-Komalah no Irão durante os anos 1970. Parte da particularidade do radicalismo deles era uma ruptura com a linha feudal-tribal que dominava este movimento nacional, uma ruptura devido ao desenvolvimento socioeconómico do Curdistão. Eles também foram influenciados pelo movimento comunista internacional, sobretudo pela ruptura com o revisionismo soviético liderada pelo Partido Comunista da China. Embora a linha do PKK e dos dois Komalahs (do Iraque e do Irão) tenha representado um importante desenvolvimento no movimento nacional curdo, a viragem deles à esquerda não foi uma excepção.

De facto, muitos movimentos nacionalistas e de libertação nacional em África, Ásia e América Latina durante os anos 1960 e 1970 alegaram ter sido inspirados pelo Marxismo, pelo Leninismo e pelo Maoismo. No Médio Oriente, isso era verdade no movimento palestiniano e no movimento de libertação nacional de Omã. Até o KDP iraquiano, que era totalmente nacionalista e se tinha distanciado completamente do Partido Comunista do Iraque, declarava no seu programa que era inspirado pelo Marxismo-Leninismo. Apesar disto, embora muitos membros e combatentes do PKK e dos dois Komalahs tivessem atracção pelo comunismo, essas organizações não conseguiram romper com a perspectiva capitalista e com a política nacionalista.

Quando esteve na Europa por um breve período em 1998, antes de ser sequestrado, Öcalan sugeriu um cessar-fogo e negociações para uma solução política da questão curda. Obviamente, as condições da prisão impõem sérias limitações a qualquer combatente encarcerado, e essas limitações podem ter um impacto na sua linha e programa. Os guardas prisionais, neste caso o governo turco, decidem o que é que o prisioneiro está autorizado a ler, ouvir e ver, e se as discussões ou pensamento dele ou dela devem ou não ser autorizados a sair dos muros da prisão – e a forma como as ideias deles devem ser filtradas. Mas é errado atribuir os desenvolvimentos na linha deste prisioneiro excepcional às limitações da prisão. Ele próprio, num texto intitulado “Manifesto para uma solução democrática da questão curda” publicado em 1999, escreveu que já tinha declarado um cessar-fogo em 1993, e noutras ocasiões sugeriu negociações para uma solução política.

Na mesma obra, ele fazia um comentário sobre o colapso do bloco soviético: “à medida que nos aproximamos do fim do século XX, a vitória pertence à democracia que está cada vez mais amadurecida” e citava os EUA e a Grã-Bretanha como exemplos históricos de democracia. Na mesma obra, ele chama a toda a experiência do socialismo no século XX de “totalitarismo de igualdade extrema”, e declara que “o sufocante totalitarismo do fascismo e o nacionalismo burguês” tinham sido derrotados porque abandonaram o quadro da democracia. Destes comentários e de muitos outros escritos, fica claro que em vez de fazer uma crítica marxista dos reveses que ocorreram quando o capitalismo foi restabelecido na União Soviética em 1956 e na China em 1976, Öcalan repudia toda a experiência socialista do século XX e vê o futuro como sendo de corrigir e reforçar a democracia burguesa.

Toda a concepção dos movimentos nacionalistas é formar o seu próprio estado nacional no quadro do capitalismo, e se eles vêem esse objectivo como irrealizável, ficam satisfeitos com a autonomia, os direitos nacionais e a partilha do poder político.

É claro que o PKK, e em particular Öcalan, não chegaram a estas conclusões e análises da noite para o dia. As ideias dele têm uma base teórica específica e passaram por certos processos para chegar ao seu ponto actual. Quais são as principais características e aspectos desse desenvolvimento? E também, acha que as raízes desta viragem à direita eram visíveis desde o início no pensamento teórico e político do PKK, ou esta linha só começou a desenvolver-se a partir de certo ponto?

Öcalan escreveu cerca de 15 mil páginas durante os seus trinta e cinco anos de actividade política e o desenvolvimento do pensamento dele pode ser seguido com cuidado. Nesta entrevista, podemos referir apenas alguns dos principais pontos que isso indicia. Neste caso e noutros, o abandono do socialismo e do comunismo e o abraçar da democracia burguesa está enraizado na resposta subjectiva dele, ou seja, no pensamento dele, em relação às condições e desenvolvimentos objectivos. Tal como muitos intelectuais burgueses, Öcalan concluiu que o colapso do bloco soviético representou a vitória final do capitalismo e o fim do socialismo e do comunismo.

Com o colapso do bloco soviético, para muitas pessoas nos movimentos nacionais que estavam a contar poder aproveitar o conflito entre as duas superpotências imperialistas, os EUA e a URSS, essa esperança transformou-se em desespero. Desde o início que Öcalan não tinha uma correcta compreensão da natureza capitalista dos social-imperialistas, e não é de admirar que ele considere o colapso do bloco soviético como o fim do socialismo.

Se no início o problema principal do PKK era a sua compreensão não-marxista do socialismo e do comunismo, durante os anos de prisão de Öcalan, ele orientou-se para abandonar completamente o Marxismo. E isto não foi apenas resultado das condições das prisões. Cemil Bayik, até recentemente comandante militar do PKK, escreveu uma introdução a uma das obras de Öcalan a explicar o desenvolvimento no pensamento e ideias do partido e da sua liderança: “A análise de Öcalan apresenta novos pontos de vista sobre as influências mútuas entre democracia e sociedade, por um lado, e socialismo, por outro. A análise e a investigação dele sobre a sociedade civil democrática deram lugar a uma revisão fundamental no PKK (...) [e] um intenso debate sobre a obra de Öcalan deu lugar a revisões ideológicas consistentes no PKK. Marx, Engels e Lenine são agora vistos de uma forma diferente. Os princípios que antes eram tão queridos deveriam ter sido questionados. (...) A reconstrução não significa que abandonámos o objectivo socialista; pelo contrário, vemos o processo como um aprofundar das nossas convicções. Em paralelo com estas dúvidas, as anteriores posições do PKK sobre a utilização do estado como ferramenta de poder foram radicalmente questionadas.”

“Devido à sua natureza, o Estado está em contradição com a sociedade e a democracia. Por isso, é lógico abandonar a doutrina socialista clássica da ditadura do proletariado. Finalmente, chegámos a uma compreensão do socialismo que já não usa posições nem argumentos centrados no estado. Estamos convencidos que não se pode concretizar o socialismo no quadro do estado. Em resultado disto, o PKK abandonou o seu anterior objectivo de uma nação-estado para o povo curdo e decidiu avançar na questão curda de uma forma que não prevê mudar as fronteiras actuais. A nossa política já não é definida pelo objectivo de tomar o poder político ou o estado que até agora era o símbolo necessário de uma revolução vitoriosa.” (Ver Escritos da Prisão: O PKK e a Questão Curda no Século XXI, de Öcalan. Traduzido e editado por Klaus Happel, Londres, Transmedia Publishing Ltd, 2011.)

Esta compreensão errada da relação entre o estado e a revolução é a base teórica da decisão do PKK de que a resolução da questão nacional, e também a concretização da democracia e do socialismo, é possível dentro do quadro do actual sistema político, económico e social da Turquia.

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