Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 13 de Agosto de 2007, aworldtowinns.co.uk

Grã-Bretanha: O encobrimento da execução de Jean Charles de Menezes – licença para matar

É agora oficial na Grã-Bretanha: podemos estar a tratar da nossa vida e a “não fazer nada de errado”, e sermos atirados ao chão por um grupo de homens e executados em público com balas na cabeça à queima-roupa, sem aviso, com os assassinos conhecidos de todos, e ninguém ser condenado, ninguém ser acusado e ninguém a passar sequer um único dia na prisão. Tudo isto é perfeitamente aceitável para as autoridades britânicas, quer dizer, se formos jovens de pele escura e se os assassinos forem polícias.

A 3 de Agosto, a Comissão Independente de Reclamações da Polícia (IPCC), a autoridade de supervisão da polícia na Grã-Bretanha, entregou os resultados oficiais da sua investigação de dois anos ao assassinato de Jean Charles de Menezes, o brasileiro de 27 anos que foi abatido por uma equipa policial de elite de vigilância armada a 22 de Julho de 2005. Havia uma grande expectativa sobre os resultados da IPCC, depois de o Serviço de Acusação da Coroa [equivalente ao Ministério Público – NT] se ter recusado a registar qualquer acusação contra qualquer dos agentes policiais envolvidos. A IPCC investigou o que aconteceu nesse dia e, apesar de ter publicado um relatório que condena a acção da polícia, não recomendou nenhuma acção substancial.

Ian Blair (que não é familiar do ex-Primeiro-Ministro), Comissário da Polícia Metropolitana de Londres, tratou pessoalmente de alguns dos principais comunicados à comunicação social após o assassinato. Nas 24 horas que se seguiram à morte de Menezes, Blair e outros porta-vozes da polícia divulgaram de imediato uma série de alegações:

  • A vítima estava ligada às pessoas que tinham tentado fazer os atentados no metro e nos autocarros de Londres no dia anterior;
  • A vítima usava roupa volumosa que podia esconder uma bomba suicida;
  • A polícia avisou a vítima e ele fugiu a correr;
  • A vítima saltou as barreiras à entrada da estação do metro de Londres e correu para as linhas do metro.

Em suma, dizia a versão oficial, os polícias tinham todas as razões para temer pela segurança do público e, quando finalmente alcançaram Menezes dentro de uma carruagem do metro, não tiveram outra escolha senão executá-lo para evitarem uma catástrofe.

As conclusões da IPCC reconhecem, para que fique registado, o que a maior parte das pessoas na Grã-Bretanha já sabia muito bem. Todas as principais alegações policiais eram uma absoluta mentira.

Os factos agora indisputados são os seguintes: Jean Charles de Menezes era um jovem electricista brasileiro que tinha vindo de São Paulo para trabalhar em Londres em 2002. Ele não tinha nada a ver com nenhum dos envolvidos nos falhados atentados de 21 de Julho no metro, estava apenas a caminho do trabalho. A roupa que usava nesse quente dia de verão era ligeira, e não volumosa, e não podia esconder nenhuma bomba suicida. Menezes não saltou as barreiras à entrada da estação, pelo contrário passou por elas usando o seu bilhete da forma normal. A polícia nunca avisou o jovem brasileiro; de facto, eles nunca comunicaram com ele de nenhuma forma até se terem atirado sobre ele, o terem atirado ao chão e depois o terem bombardeado com sete balas na parte de trás da cabeça. Ele nunca teve a mais leve ideia do que estava a acontecer. Em suma, ele não tinha, segundo as palavras da IPCC, “feito nada de errado”. O seu único infortúnio era ser um jovem de pele escura que por acaso vivia no mesmo edifício que um suspeito do 21 de Julho – e morar num país onde a polícia pode executar pessoas como ele com absoluta impunidade.

O que emerge da investigação da IPCC é a imagem de um sistema que para começar não se move pela preocupação com a “segurança pública” ou pelo desejo de estabelecer a verdade, mas pelo desejo de proteger as suas forças de repressão. Durante quase 24 horas, as conferências de imprensa da polícia continuaram a afirmar que Menezes poderia estar “ligado ao terrorismo”. A defesa que a polícia deu foi que tiveram dificuldade em identificá-lo porque as sete balas de ponta oca tinham desintegrado a sua cabeça. Contudo, aparte o facto de já saber muito bem que Menezes não tinha feito nada de suspeito e que não vestia nenhuma roupa “volumosa”, a polícia também tinha a sua carteira com um cartão de identidade com fotografia e o seu telemóvel. Apesar de tudo isto, a IPCC manteve o encobrimento com a sua conclusão de que não havia nenhuma evidência que provasse que a polícia tinha mentido e ao não ter recomendado nenhuma acusação contra nenhum dos polícias envolvidos. O Serviço de Acusação da Coroa já se recusou a processar a equipa operacional que levou a cabo o assassinato. Os agentes de vigilância que mais tarde alteraram o registo policial oficial para encobrirem os seus actos nem sequer foram repreendidos. Cressida Dick, o comandante-chefe encarregue globalmente da operação armada, foi promovido pelo Serviço da Polícia Metropolitana, mesmo antes de terem saído os resultados das investigações.

O que é que tudo isto nos diz sobre o valor da vida de um jovem imigrante na Grã-Bretanha de hoje, quando as forças responsáveis pela “segurança pública” podem abater a sangue frio alguém que é completamente inocente de qualquer mal, mentirem sistematicamente sobre isso para se tentarem proteger e depois não só se safarem impunemente mas prosseguirem mesmo a sua ascensão na hierarquia policial? Se é isto que acontece num caso com uma visibilidade extraordinariamente elevada como o de Jean Charles de Menezes, que esteve sob a luz intensa dos holofotes internacionais desde o instante em que ocorreu, então o que acontece nos inúmeros casos em que a policia confronta os jovens nas escuras vielas da cidade, longe de qualquer atenção da comunicação social?

Com este caso, as autoridades britânicas tiveram a intenção de deixar clara uma importante mensagem aos habitantes do país. Vezes sem conta alegaram que a polícia tinha actuado no calor do momento, numa agitada perseguição aos envolvidos na tentativa de atentado de 21 de Julho e que, nesse contexto, segundo eles, era “compreensível” que fossem cometidos “erros”. O supostamente de esquerda presidente da câmara de Londres, o “Vermelho” Ken Livingstone, defendeu a acção dos polícias envolvidos e disse: “Tentem fazê-lo quando estiverem à espera da próxima bomba”. Por outras palavras, Menezes foi um “dano colateral inevitável” da “guerra ao terror”. Nesta perspectiva, a única coisa que protege o público britânico da assustadora ameaça do terrorismo islâmico é o estado britânico. Independentemente de muitas pessoas poderem recusar a enorme acumulação de poderes repressivos e os crescentes horrores que isso pode trazer, como o assassinato de Menezes, elas não têm nenhuma verdadeira escolha senão alinhar nisso.

Isto ignora duas coisas: primeiro, que são os próprios governantes britânicos, ao lado dos seus parceiros seniores, os imperialistas norte-americanos cujas guerras no Afeganistão e no Iraque e cujas ameaças agressivas vão agora contra o Irão, os principais responsáveis pela espiral de violência reaccionária que cada vez mais toma conta do mundo de hoje. Segundo, o tipo de solução que os governantes britânicos estão a empurrar para as gargantas das pessoas só levará a uma crescente opressão e miséria para as pessoas aqui e no estrangeiro.

Veja-se o que já está a acontecer neste mesmo momento: a Polícia Metropolitana anunciou esta semana que a polícia iria interceptar e revistar as pessoas que protestam contra as alterações climáticas que se irão manifestar contra a expansão do aeroporto de Heathrow. Ao abrigo de quê? Da Lei de Prevenção do Terrorismo (POTA)! Na lógica do governo, os terroristas atacaram aeroportos, os manifestantes vão protestar contra o aeroporto, logo podem usar as leis antiterroristas. Em 2005, na cimeira do G8 em Gleneagles, a polícia interceptou, revistou, fotografou e identificou centenas, provavelmente mesmo milhares de manifestantes pacíficos, muitos dos quais tinham vindo para a rua por descontentamento com o contínuo saque de África. Uma vez mais, ao abrigo da POTA! E de novo a lógica do governo: os terroristas visam dirigentes governamentais, os manifestantes protestam contra os dirigentes governamentais, logo podem usar as leis antiterroristas. A POTA tem sido usada vezes sem conta em circunstâncias onde não se colocou a mais leve ameaça de violência. Há alguma dúvida de que, com esta lógica, o governo britânico crê conseguir eliminar mesmo as mais ligeiras formas de resistência aos seus actos, à medida que o sistema capitalista que encabeça prossegue o seu trabalho de envenenamento do meio ambiente, de venda de armas aos governos mais repressivos e de saque do mundo?

Sob a bandeira da “prevenção do terrorismo”, a Grã-Bretanha, um país que se autoproclama a mais velha democracia do mundo, está provavelmente a caminho de se tornar no principal estado policial do mundo. É o país do mundo com mais circuitos internos de câmaras de televisão per capita. As placas de matrícula de todos os veículos que entram no centro de Londres são imediatamente enviadas para um banco central de dados da polícia. Todos os movimentos da maioria das pessoas que entram e saem em Londres são registados de cada vez que usam o sistema de transportes públicos da cidade. O país é líder mundial no número de amostras de ADN per capita recolhidas pela polícia, a qual agora começou a recolher amostras de ADN de condutores apanhados em excesso de velocidade nas auto-estradas, ou a passar sem parar em sinais de stop, e de bêbados nas ruas da cidade, à força se necessário. O Ministério do Interior admitiu mesmo que detém amostras de ADN de 90 000 menores que nunca foram condenados por qualquer crime, isto para não falar que o número de amostras de jovens de origem caribenha, sul-asiática e africana é muito maior que a sua proporção na população. A lista poderia continuar sem parar.

Ao contrário dos EUA, onde foi o Partido Republicano, tradicionalmente de direita, que dirigiu a campanha de guerra e repressão, aqui na Grã-Bretanha foi o Partido Trabalhista, tradicionalmente de esquerda, que dela esteve encarregue. É o partido onde a maior parte dos progressistas tem historicamente colocado as suas esperanças num programa de direitos humanos, justiça e segurança social. O facto de o governo do Partido Trabalhista que está no poder há mais tempo na história ter entrado na cama do regime Bush para liderar sangrentas guerras no estrangeiro e a intensificação da repressão interna ainda fornece mais evidência de que o que está a dirigir os acontecimentos é um sistema, o sistema capitalista, e que só os protestos e a resistência vindos de baixo e, em última instância, a revolução, e não a ajuda de salvadores vindos de cima, podem pôr fim a isto. Qualquer ilusão de que Gordon Brown seria diferente do seu antecessor Tony Blair recebeu um balde de água fria quando ele anunciou de imediato que poria a introdução dos cartões de identidade no centro da sua estratégia antiterrorista e quando pouco depois falou na duplicação para 56 dias do período em que os suspeitos de terrorismo podem ser detidos sem qualquer acusação.

A família de Menezes, que já há dois anos tem vindo a pedir justiça para o seu jovem parente através das entorpecedoras voltas e reviravoltas da burocracia britânica, declarou que não abandonará a luta. Patrícia Armani da Silva, prima de Jean Charles de Menezes, disse à comunicação social: “Ninguém foi considerado responsável por nada, ninguém vai ser processado e a polícia foi deixada escapar com um assassinato... Eles estão a tratar uma vida que foi tirada pelas suas mãos como se fosse a de um animal.” Um comunicado da família dizia que, apesar de estabelecer factos condenatórios sobre os acontecimentos daquele dia, a IPCC “não está adequada aos objectivos”, porque “não recomendou nenhuma acção significativa.” De facto, a IPCC não está adequada ao objectivo que alega servir, exercer uma supervisão da polícia – mas está demasiado adequada ao verdadeiro objectivo que essas comissões servem na sociedade actual: como pára-choques para absorverem os protestos contra as forças repressivas do sistema capitalista, um sistema onde a vida de um imigrante é de facto tratada como se fosse a de um animal.

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