Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 12 de setembro de 2016, aworldtowinns.co.uk
Se alguma vez algum país precisou de acabar com uma guerra, esse país é a Síria, que está tão devastada que a sua população caiu de 22 para 17 milhões em apenas alguns anos, com mais de um quarto de milhão de mortos, e os restantes forçados a sair do país. Mas, independentemente de o cessar-fogo na Síria iniciado a 12 de setembro se vir a manter ou não, é improvável que traga a paz. Na realidade, esse não é o seu objetivo.
Os factos mais básicos deveriam deixar isso claro. O cessar-fogo foi preparado pelos EUA e pela Rússia, com o apoio da Grã-Bretanha, da França, da Turquia (que recentemente enviou para aí uma força de tanques para recortar o seu próprio pedaço da Síria) e aparentemente do Irão. Estas são precisamente as potências cuja intervenção alimentou a guerra civil síria até ao nível assassino a que hoje chegou.
O conflito em torno da Síria, especialmente em termos dos EUA e da Rússia, mas também da Turquia, do Irão, da Arábia Saudita e do Qatar – e da França e Grã-Bretanha, nunca totalmente em sincronia com os seus rivais/parceiros norte-americanos – nunca teve a ver simplesmente com a própria Síria mas faz parte de rivalidades regionais muito mais vastas. Nenhuma dessas potências abandonou os objetivos estratégicos reacionários e a rivalidade que têm motivado a conduta criminal deles até agora. Embora elas possam parecer ter chegado a um acordo, por agora, talvez, cada uma delas está a tentar atingir esses objetivos através deste acordo e para além dele – através da diplomacia e da guerra, uma depois da outra ou em simultâneo, à medida que os desenvolvimentos se imponham.
Quer o acordo venha a funcionar ou não, as medidas que ele explicitamente descreve irão de facto facilitar uma ainda maior intervenção militar estrangeira. O plano apela a um cessar-fogo de uma semana, seguido por uma fase em que os EUA e a Rússia irão instalar um comando militar conjunto para coordenar e incrementar a guerra aérea contra grupos islamitas específicos que se diz serem os alvos deste acordo, o Daesh (também chamado Estado Islâmico ou ISIS) e o Jabhat Fatah al-Shams, antes conhecido como al-Nusra. Veja-se as fotografias das crianças mortas e feridas que temos tido de ver durante as últimas semanas. A última coisa de que o povo sírio necessita é de mais bombardeamentos. Embora tanto os EUA como a Rússia aleguem que os seus ataques aéreos matam poucos ou nenhuns civis, cada um deles tem denunciado o outro como mentiroso.
É extremamente revelador que o exército sírio irá ser em grande medida posto de lado por este acordo, dado que derrubar ou defender Assad foi o pretexto para o papel dos EUA e da Rússia na carnificina. Ainda que o regime de Assad seja um inimigo perverso do povo sírio, a intervenção norte-americana e russa nunca foi basicamente contra ou a favor de Assad, antes faz parte de uma disputa multifacetada e desumana sobre quem vai dominar a Síria e, tão importante quanto isso, quem vai negar a dominação aos seus rivais.
Uma declaração de 5 de julho da Amnistia Internacional [AI] explica o decurso desta guerra civil, falando especificamente de Aleppo (a maior cidade da Síria) e Idleb (no noroeste), mas tomando essas duas cidades como “um estudo de caso informativo”: “Após os protestos pró-reformas que começaram na Síria no início de 2011 terem aumentado em escala e frequência, as forças governamentais sírias responderam atacando os manifestantes, tal como já tinham feito noutros lugares, com munições vivas. Como resultado, em 2012 foram formados grupos de oposição armada em ambas as regiões, com o objetivo de expulsarem as forças governamentais. Alguns desses grupos, constituídos predominantemente por cidadãos sírios, obtiveram entre 2012 e 2015 um crescente controlo de vastas zonas da cidade de Allepo, da cidade de Idleb e de zonas vizinhas, e têm permanecido no poder aí até hoje com o apoio de governos como o do Qatar, da Arábia Saudita, da Turquia e dos EUA. Ao fazê-lo, estabeleceram instituições administrativas e quase-judiciais. Os residentes das regiões de Aleppo e Idleb inicialmente celebraram o fim efetivo do domínio do governo sírio, esperando que os grupos de oposição armada iriam implementar um estado de direito. Porém, as esperanças de muitos foram diminuindo à medida que os grupos de oposição armada foram recorrendo à força das armas para imporem a sua própria versão de ordem.”
Na verdade, tal como explica a AI, esses grupos implementaram um “estado de direito”: a Sharia, a lei islâmica rígida. A Al Nusra, afiliada à jihadista Al-Qaeda, abriu continuamente a bulldozer o seu caminho para o domínio sobre outros grupos islamitas e pró-EUA (e pró-França), com o apoio dos EUA, da Turquia e dos estados do Golfo (ainda que cada um destes países também tenha tentado organizar forças armadas sob o seu comando mais direto). Posteriormente eles viram-se confrontados com o crescimento explosivo do Daesh, em que o fundamentalismo islâmico se combinava com a experiência militar das forças do antigo regime de Saddam Hussein, treinadas para combater em guerras convencionais com armas modernas. Os homens que fundaram o Daesh conheceram-se em campos prisionais norte-americanos. Quaisquer que sejam os outros fatores envolvidos, sem os esforços norte-americanos para levar o Iraque para baixo do seu controlo, através do derrube de Saddam (usando mentiras sobre as “armas de destruição em massa”) e depois ao apoiarem os reacionários xiitas (ligados ao Irão – o que mostra o quão firmemente estão aqui entrelaçadas a rivalidade e a cumplicidade), os quais responderam à guerra religiosa contra os xiitas com mais guerra religiosa contra os sunitas e a limpeza étnica de Bagdad e outras cidades.
A ascensão do Daesh tem sido um problema para os EUA, embora tenha havido conflitos no interior dos círculos políticos da classe dominante norte-americana sobre focarem-se ou não em combater Assad ou o Daesh. Mas ninguém em Washington parece estar a dizer: “Bem, nós despedaçámos o Iraque e isso foi um desastre, mesmo do nosso ponto de vista, e agora estamos a despedaçar a Síria, e isso não está a funcionar para nós – tudo isto está a turbo-carregar o fundamentalismo islâmico, pelo que talvez devêssemos simplesmente ir para casa.” Eles não podem “ir para casa”, porque a rivalidade entre as potências imperialistas e outros reacionários é muito intensa e os riscos estratégicos são muito elevados. Quanto mais a intervenção deles lhes cria problemas (o indescritível sofrimento das massas populares não entra nos cálculos deles), mais eles incrementam a intervenção deles. Tal como escreveu Patrick Cockburn no jornal britânico The Independent (12 de setembro de 2016): “Uma característica da guerra na Síria e no Iraque é que os exércitos anti-ISIS e anti-Nusra – as YPG [forças curdas sírias], o exército sírio, o exército iraquiano e os peshmergas curdos iraquianos – todos eles dependem de forças aéreas estrangeiras. Isto torna difícil que eles vão contra o que qualquer dos seus aliados estrangeiros queira que eles façam politicamente.”
Poderíamos especular sobre como exatamente este atual cessar-fogo encaixa nos interesses e nos planos destes monstros. Para a Rússia, se esta manobra funcionar, poderia ser um grande passo em frente, porque significaria que os EUA e outros países teriam de reconhecer Moscovo como ator essencial no Médio Oriente, um ator que o Ocidente não pode manter de fora, o que tem sido a política deles até agora. Foi provavelmente por isso que os EUA estiveram tão relutantes em aceitar este acordo, e uma das razões por que pode falhar (certamente haverá disputas dentro dos círculos de Washington sobre se ele é uma ideia boa ou má). Mas os EUA poderão ver este acordo como oferecendo-lhes uma possibilidade de alívio para o que se tornou numa contradição intratável: quanto mais faz cada uma das coisas sujas que lhe é possível para derrubar Assad (e manter à distância na região a Rússia, bem como o Irão), mais isso alimenta o Daesh, que se tornou num problema maior que Assad.
Os últimos cinco anos de atrocidades na Síria têm sido motivados tanto pelo confronto geral entre os imperialistas ocidentais e os sistemas políticos e a ideologia deles e o fundamentalismo islâmico, como pelos interesses específicos e frequentemente rivais das potências imperialistas e dos estados estrangeiros reacionários na Síria. Esta dinâmica e as alianças em constante mudança que disto emergem são um importante fator na ausência de lados claros nesta guerra civil. O que parece mais provável é a guerra ir continuar até que um deles seja capaz de impor a sua vontade pela força, derrotando alguns rivais no campo de batalha e obrigando outros rivais a aceitarem o seu domínio. Pior que tudo, não emergiu nenhuma força que pudesse combater e unir-se a um crescente número de pessoas em torno de um caminho diferente dos do Islamismo ou da subjugação aberta ao imperialismo.