Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 11 de Outubro de 2004, aworldtowinns.co.uk

As eleições organizadas pelos ocupantes do Iraque

Quando os conquistadores espanhóis decidiram que o Novo Mundo seria seu a ferro e fogo, eles não disseram: “É por causa do ouro.” Não disseram que o seu objectivo era escravizar toda uma importante região do mundo e os seus povos e manter de fora todos os outros impérios. Os monarcas que enviaram os soldados e os padres que os abençoaram proclamaram que o seu verdadeiro objectivo era salvar almas. Hoje em dia, Bush e Blair juram que o seu objectivo essencial no Médio Oriente é levar os “valores democráticos” a essas terras pagãs.

Desde o início que os EUA tiveram muito pouco apoio entre qualquer das classes sociais do Iraque e o seu isolamento tem aumentado à medida que a ocupação continua. Uma sondagem encomendada pelo governo dos EUA em Maio passado mostrava que “90 por cento dos iraquianos árabes vêem os EUA como ocupantes (e apenas 2 por cento como libertadores)”, segundo um texto de Peter Galbraith na edição de 23 de Setembro da New York Review of Books (a situação no Curdistão não-árabe é um pouco diferente). Para lidar com essa situação, alguns meses após a invasão o administrador norte-americano Paul Bremer seleccionou 25 iraquianos que tinham ajudado os EUA e chamou-lhes Conselho de Governo. Apesar do nome, o Conselho era apenas de fachada, não governava nada. Do ponto de vista norte-americano, o problema com o Conselho era que a maioria dos iraquianos, que à partida já odiavam esses políticos exilados, passou a odiá-los ainda mais por entusiasticamente se deixaram usar como marionetas dos EUA.

Se os ocupantes tivessem quaisquer “valores democráticos”, teriam voltado para casa. Em vez disso, transformaram esse Conselho num “Governo Provisório”, mantendo a mesma composição. A maior mudança real no governo do Iraque chegou quando o círculo próximo de Bush enviou o Embaixador dos EUA John Negroponte para substituir Bremer. De entre o mesmo conjunto de 25 pessoas, Negroponte escolheu o primeiro-ministro, o presidente e os vice-presidentes.

Agora, esses fantoches estão a organizar eleições parlamentares para Janeiro. À constituição de uma Assembleia Nacional seguir-se-á uma constituição e um governo permanente no final de 2005. Assim, as eleições marcarão supostamente um passo chave na “transferência” de poder dos EUA para o povo iraquiano.

Um esquema da CIA para canalizar dinheiro para os seus candidatos favoritos foi supostamente abandonado quando um congressista dos EUA o divulgou à comunicação social. Mas o maior escândalo é que, de uma maneira ou de outra, todos os candidatos devem os seus lugares e carreiras até agora ao apoio dos EUA.

O primeiro-ministro de Negroponte, Iyad Allawi, passou as duas últimas décadas sem nenhum outro apoio senão as folhas de pagamentos, primeiro dos serviços secretos da Grã-Bretanha e depois dos EUA. De acordo com a maioria dos observadores, ele não tem praticamente nenhum apoio entre os iraquianos comuns. O seu partido, o Acordo Nacional Iraquiano, é basicamente o partido Baath de Saddam sem Saddam, uma agência de emprego para oficiais e outras antigas grandes figuras que procuram um lugar com a ocupação. De acordo com a citada sondagem, Allawi é um dos políticos menos populares do Iraque. De facto, nessa sondagem, 61 por cento das pessoas disserem “opor-se-lhe fortemente” – e isso antes de os EUA o terem transformado em líder do Iraque “democrático”.

Os dois partidos islâmicos xiitas no “governo” iraquiano têm algum apoio. Mas, segundo alguns relatos noticiosos, Al-Dawa e o Conselho Supremo da Revolução Islâmica no Iraque (SCIRI) devem os seus lugares no Conselho de Governo – a vice-presidência (para Al-Dawa) e o ministério das finanças (para o SCIRI) – à intervenção pessoal do Secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld. O círculo próximo de Bush sabia o que estava a fazer, uma vez que o SCIRI esteve durante muito tempo baseado em Teerão e as dívidas que ambas as organizações têm para com os mulás que governam o Irão não são nenhum segredo. Se a República Islâmica do Irão ainda apoia esses homens, como dizem alguns funcionários da administração, então está basicamente a financiar as manobras políticas dos EUA.

Os únicos grandes partidos do Iraque com apoio popular, pelo menos até agora, são os dois partidos curdos. Contudo, embora a esmagadora maioria dos curdos iraquianos queira um estado independente – 75 por cento dos curdos adultos, cerca de 1,75 milhões de pessoas, assinaram uma petição a exigir um referendo sobre essa questão – os líderes desses partidos trocaram essa exigência pelo apoio dos EUA, abdicando mesmo de uma parte da autonomia de que o Curdistão iraquiano desfrutara durante a última década. Apesar das promessas que lhes foram feitas, Negroponte afastou os líderes curdos dos postos cimeiros do seu novo governo.

O outro principal partido, até agora muito ligado aos ocupantes, é o Congresso Nacional Iraquiano de Ahmed Chalabi. Chalabi, membro de um das famílias mais abastadas do Iraque, foi levado de avião para o Iraque pelos norte-americanos, que na altura da invasão o consideravam o seu homem-chave. Mais tarde, acabaria por cair em desgraça por causa do que podem ter sido disputas dentro do próprio governo dos EUA. Quando os EUA decidiram abandonar Chalabi em favor das forças islâmicas associadas ao Aiatola Al-Sistani, humilharam-no e enviaram-no para o exílio, acusando-o de financiar as suas operações com dinheiro falso (fornecido pela CIA?). Ninguém no Iraque se incomodou a vir em sua defesa.

Agora Chalabi regressou. Abandonou o seu fato ocidental, vestiu um traje religioso tradicional e tem um lugar como conselheiro de Moqtada Sadr, o jovem clérigo xiita cujo Exército do Mahdi tomou e ocupou o santuário de Najaf para forçar as autoridades norte-americanas a abandonarem as tentativas de reprimir o seu movimento. Os representantes de Sadr anunciaram que entregarão ao governo de Allawi o controlo do bairro pobre de Bagdad conhecido como Cidade de Sadr, em troca de ser autorizado a formar um partido político legal e a participar nas eleições de Janeiro.

Sem tentar fazer previsões sobre o que acontecerá a seguir nesta complicada situação, ninguém pode duvidar de que se Sadr quisesse ter lições sobre como ser uma marioneta norte-americana, não poderia encontrar melhor professor que Chalabi. Quanto a Sistani, ele dá-se bem com os ocupantes, tal como o fez com Saddam. Desde o início que os EUA consideraram o apoio de Sistani como a sua melhor hipótese de reunir um governo com pelo menos alguma influência política. Esta semana, depois de os homens de Sadr terem anunciado o seu acordo com o governo, Al-Sistani emitiu uma declaração há muito esperada pelos ocupantes, apelando aos fiéis xiitas para votarem nas eleições.

Os seguidores de Sadr podem acreditar que se participarem nas eleições as podem transformar numa forma de luta contra a ocupação, mas o principal resultado será dar ao próximo governo fantoche a única réstia de legitimidade que ele pode esperar vir a ter.

Embora o grupo de Sadr tenha os únicos candidatos possíveis com alguma credencial patriótica, mesmo assim podem vir a ter as suas asas cortadas. Foi amplamente noticiado que os outros seis principais partidos estão a considerar apresentar uma lista conjunta de candidatos contra a qual nenhum outro partido terá qualquer hipótese, tal como o tinham feito quando ratificaram as escolhas de Negroponte para líderes governamentais.

Nem é preciso dizer que mesmo que as eleições sejam de alguma forma desfavoráveis aos EUA, os EUA podem e farão o que quiserem de qualquer maneira. Quando há eleições que produzem governos de que eles não gostam, eles limitam-se a derrubá-los – como o fizeram no Irão, na Indonésia, na Guatemala, em Granada, no Chile, no Panamá e em tantos outros países. Nesse caso, os apoiantes de Sadr poderão vir a concluir que a sua troca de RPGs e morteiros por boletins de voto foi um mau negócio.

De facto, quem quer que ganhe estas eleições, deverá ter em mente Ngo Dinh Diem, um fiel dos EUA eleito primeiro-ministro fantoche do Vietname durante quase uma década. Os EUA mandaram assassiná-lo em 1963 quando ele ultrapassou o seu prazo de utilidade. O exército de ocupação define o enquadramento dentro do qual estas eleições irão ter lugar, de um modo mais do que geral. As balas norte-americanas determinam todas as suas condições até ao pormenor.

Se a uma nação é negado o direito democrático a decidir sobre os seus próprios assuntos, então, com eleições ou sem eleições, a palavra “democracia” não tem qualquer significado. Mas além disso, as eleições que os ocupantes estão a planear realizar no Iraque não são tão diferentes, de alguma forma, das que estão prestes a acontecer nos EUA. A questão central do momento – acabar com a ocupação do Iraque – não está no boletim de voto e os que a perpetuam estão determinados a contrariar a vontade do povo.

Enfrentando o problema de subjugar uma grande população com um pequeno número de soldados, quando os conquistadores espanhóis mataram o antigo rei (o Inca) nomearam um novo rei de entre a aristocracia inca e dedicaram-se a adaptar o velho sistema opressivo às necessidades dos novos senhores. Quase meio milénio depois, os EUA estão a tentar fazer algo semelhante no Iraque. (Ao mesmo tempo que se dedicavam a conquistar as Américas, os espanhóis também implementavam a Inquisição na “pátria” – mas isso está fora do âmbito deste artigo.)

A contradição que os EUA enfrentam é que neste momento não controlam o suficiente do país para organizarem uma amostra credível de eleições. Tentando pôr a sua melhor face, Rumsfeld alegou: “Digamos que se tenta realizar as eleições e que elas podem ter lugar em três quartos ou quatro quintos do país. Mas nalguns lugares não podem realizar-se porque a violência é muito grande. Bom, assim seja. Nada é perfeito na vida.”

Mesmo que as previsões de Rumsfeld sejam verdade – e muitos observadores acreditam que elas são extremamente optimistas – isso continuaria a significar que os EUA não conseguiram realizar eleições nas quatro ou cinco (e mais provavelmente seis) províncias que compõem as áreas mais populosas do país: as zonas urbanas, a oeste, norte e sul da capital, importantes cidades do sul e talvez muito da própria Bagdad. As autoridades militares norte-americanas anunciaram repetidamente que pretendiam arrasar e “retomar” algumas das maiores dessas cidades antes do final do ano, numa clara admissão de que o novo governo não terá nada em que se apoiar a não ser as forças armadas dos EUA e nenhuma influência para além de onde os soldados norte-americanos consigam ir.

De acordo com esse plano, os ataques aéreos norte-americanos mataram uma dúzia de pessoas e feriram outras 17 numa festa de casamento em Falluja a semana passada, segundo funcionários do hospital. Mataram o noivo, feriram a noiva e eliminaram uma outra família inteira. O poder aéreo dos EUA está a “moldar o campo de batalha”, como dizia um oficial norte-americano. “Esses ataques são um prelúdio para uma acção militar muito maior.” O registo de eleitores está previsto para Novembro, em conjunto com a tomada de Falluja e de outras cidades. É assim que os EUA fazem campanhas eleitorais no Iraque.

Claro que apenas ser capaz de realizar eleições não significa que as pessoas queiram votar. “Não terão um único gabinete para realizar as eleições em Falluja”, declarou um líder tribal dessa cidade numa reunião com o governo de Allawi. “Não participaremos nas eleições. Não apoiaremos o imperialismo.” “Sobre que eleições estão vocês a falar?”, perguntou Raad Rahim Ahmed, cuja esposa e dois filhos foram mortos por soldados dos EUA quando “limpavam” a cidade de Samara a semana passada. “Perdi toda a minha família. Por que devo eu confiar neste governo? Por que devo eu votar?”

Para os EUA, o mais importante é demonstrar o seu poder, realizando as eleições. Podem lidar de outra maneira, secreta ou pública, com o embaraço de ninguém ir votar. Por exemplo, os planos actuais incluem secções de voto em centros de distribuição de comida. A maior parte dos iraquianos necessita dessa comida e uma em cada quatro famílias iraquianas mantêm-se viva com pouco mais que isso. Através tanto da violência aberta como da ameaça de fome, os EUA estão a propor o que esperam vir a ser um slogan eleitoral convincente, ainda que não declarado: “Votar ou morrer”.

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