Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 2 de Agosto de 2010, aworldtowinns.co.uk
A WikiLeaks e o que ela revela
Uns criminosos estão a invadir uma casa. Estão a matar as pessoas que lhes resistem e todos os que se metam no seu caminho, incluindo crianças. Esta situação mantém-se durante muito tempo. Um jovem que supostamente faz parte do bando decide que isso é errado e tenta pedir ao mundo que o impeça. Isto não o tornaria num herói? Não, se perguntarmos aos outros arruaceiros e aos seus defensores.
Esse herói é o soldado Bradley Manning, o técnico do exército norte-americano de 22 anos que em Maio passado começou por ser preso no Iraque acusado da fuga de um vídeo militar que mostra soldados norte-americanos a cometer um assassinato no Iraque. Agora, ele é suspeito de ser a fonte dos relatórios militares internos sobre a guerra no Afeganistão divulgados em Julho pela organização WikiLeaks.
Manning foi transferido para a prisão solitária numa base naval norte-americana na Virgínia. A WikiLeaks divulgou que lhe tinham negado o contacto com o advogado civil que ela tinha contactado. Segundo um comunicado à imprensa do exército norte-americano, ele enfrenta uma “prolongada prisão antes do julgamento devido à complexidade das acusações e da investigação em curso”. Entretanto, o FBI está a tentar descobrir todas as outras pessoas que possam estar envolvidas.
O principal arruaceiro de Obama, o chefe das forças armadas Almirante Mike Mullen, disse que os responsáveis por estas fugas – ou seja, Manning, o fundador da WikiLeaks Julian Assange e outros não mencionados – tinham “sangue nas [suas] mãos”.
Esta perspectiva totalmente invertida dos factos e a questão do que é verdadeiro ou falso estão ao nível da possível acusação de “espionagem” que, segundo a CNN, o governo dos EUA está a considerar neste caso. Normalmente, o termo “espionagem” refere-se a actividades clandestinas com o objectivo de fornecer informações a uma potência estrangeira. Neste caso, as informações foram tornadas públicas e os seus destinatários foram os povos dos EUA e do mundo.
O vídeo cuja fuga esteve na origem da prisão de Manning foi gravado em 2007 através dos visores das armas de um helicóptero de ataque Apache. Ele mostra as metralhadoras do helicóptero a abaterem um fotógrafo da agência noticiosa Reuters, o seu ajudante e outras pessoas que passavam acidentalmente na rua num subúrbio de Bagdad. Vários minutos depois, pára uma carrinha e dela saem homens para salvarem um homem gravemente ferido que está a tentar rastejar para o passeio. Vêem-se crianças atrás da janela. O helicóptero sobrevoa a carrinha e abre repetidamente fogo a cada passagem, até a tripulação estar satisfeita por toda a gente parecer estar morta.
A banda sonora regista a ânsia da tripulação em matar iraquianos e o riso e parabéns mútuos deles por verem pelo menos 18 corpos (“Boa pontaria!”). Quando as tropas terrestres reportam através do rádio que encontraram duas crianças gravemente feridas na carrinha destruída, um dos membros da tripulação goza: “É culpa deles por trazerem crianças para uma zona de guerra”. Os médicos norte-americanos estão prestes a levar as crianças para serem tratadas quando um oficial ordena que elas sejam abandonadas.
O que tornou este vídeo ainda mais problemático para o governo dos EUA foi que ele estava há muito na posse do exército norte-americano, que tinha decidido que os seus homens tinham feito o que era suposto fazerem. Dois ex-membros da unidade envolvida nesse crime escreveram uma carta aberta de desculpas ao povo iraquiano, descrevendo o assassinato de civis como política diária. Nabil Noor-Eldeen, cujo irmão Namir foi morto nesse ataque, elogiou Manning: “Justiça foi o que este soldado norte-americano fez ao revelar este crime contra a humanidade” (SNUMAG de 26 de Maio de 2010).
Mas claro que não foi assim que o governo por trás desses assassinatos viu isso. Não satisfeito com a informação fornecida por um ex-hacker informático que denunciou Manning, tentou intimidar outras pessoas a entregarem os informadores, a infiltrar a WikiLeaks e a localizar o seu líder Assange (Washington Post, 1 de Agosto de 2010).
Manning, que vem de uma família militar, conseguiu ter acesso a bases de dados do Pentágono disponíveis a unidades militares em zonas de guerra. Supostamente, terá dito ao hacker que tinha encontrado documentos que “continham coisas incríveis, coisas horríveis (...) que estão no domínio público e não em nenhum servidor secreto guardado numa sala escura em Washington DC”.
Essas “coisas horríveis” continuaram a surgir mesmo após a prisão dele. A WikiLeaks entregou um conjunto de cerca de 75 mil relatórios internos escritos por oficiais norte-americanos no Afeganistão a três organizações de informação, o jornal The Guardian na Grã-Bretanha, a revista Der Spiegel na Alemanha e o jornal The New York Times nos EUA. Cada uma delas publicou em finais de Julho as suas próprias notícias com base nessa informação. Todos esses relatórios estão disponíveis em wikileaks.org. A WikiLeaks diz que tem mais de 15 mil documentos relacionados com estes que ainda não divulgou.
O que esses relatórios divulgados mostram – e o que não mostram
Embora alguns desses relatórios estejam classificados como “secretos”, na realidade esse é o nível de classificação mais baixo. Outros relatórios nem sequer estão classificados. Indubitavelmente, os seus conteúdos irão tornar-se muito mais claros depois de serem cuidadosamente examinados e analisados por pessoas de todo o mundo. Por enquanto, temos que confiar nos órgãos de informação que destacaram muitos jornalistas e especialistas para os digerirem durante semanas.
Os relatórios reconhecem 144 casos em que foram mortos civis, muitas vezes sem qualquer outra razão a não ser um desprezo negligente pelos afegãos e sempre com base na premissa de que evitar qualquer possível perigo para as vidas dos soldados norte-americanos justifica famílias inteiras mortas. O exército nunca admitiu publicamente a maioria deles. Também descrevem o papel estratégico de um esquadrão da morte das Forças Especiais norte-americanas (a Task Force 373) e o seu cálculo de que as mortes de civis não contam quando tentam assassinar os seus “alvos”. Mas nem os próprios autores dos relatórios nem a comunicação social que primeiro os recebeu tentaram juntar tudo. O líder da WikiLeaks, Assange, disse-o muito simplesmente à BBC de uma forma que os outros não fizeram: “20 mil vidas que se perderam no Afeganistão [são] documentadas e expostas pelo nosso material”.
O mesmo facto que torna assim tão condenáveis os crimes que os relatórios descrevem – o de terem sido escritos por oficiais norte-americanos no terreno – também quer dizer que muita da verdade é posta de lado. Vários analistas têm comparado os relatórios sobre incidentes específicos com os artigos noticiosos escritos nessa altura pelos jornalistas que os investigaram. Eric Michael Johnson, um cientista e jornalista que escreveu um artigo no Huffingtonpost.com (27 de Julho de 2010), salientou vários casos em que as notícias não passavam de um encobrimento do número de civis mortos e da forma como eles morreram.
Um dos casos mais conhecidos ocorreu em Setembro de 2009, quando a NATO bombardeou um ajuntamento de pessoas que cercava dois camiões-cisterna de combustível atolados no leito de um rio na província norte de Kunduz. O relatório militar diz que o ataque aéreo foi decidido depois de se “terem assegurado que não estava nenhum civil nas redondezas” e que todos os que morreram eram “insurgentes inimigos”. Os jornalistas civis que chegaram ao local – que o exército tinha declarado demasiado “inacessível” para ser investigado – concluíram que quem quer que tenha sequestrado esses camiões já não estava lá e que todas as 30 a 70 pessoas que morreram eram civis.
Johnson também fez uma comparação minuciosa da forma como o Guardian e o The New York Times interpretaram a matéria bruta desses relatórios. Conclui que embora o NYT se saliente na pouca atenção dada à questão das mortes de civis, que ele sugere estar relacionada com a centralidade desta guerra para os EUA em comparação com a Grã-Bretanha, os dois jornais minimizaram essa questão por duas vezes, uma delas subvalorizando as vidas afegãs e a segunda limitando-se ao conteúdo selectivo e em serviço próprio dos relatórios e não examinando todos os factos disponíveis.
Como o seu ponto de partida implícito é saber se esta guerra é ou não “possível de ganhar”, olhando implicitamente para isso do ponto de vista dos interesses dos seus países imperialistas, a grande comunicação social tem salientado duas coisas na sua análise.
Uma delas é o desprezo que os oficiais norte-americanos exprimem em relação ao governo de Karzai e às suas instituições. Porém, uma vez mais omitem algo essencial nos seus resumos e análises, não obstante um memorando colocado num blogue no sítio do NYT: “O ponto de vista geral dos afegãos é que o actual governo é pior que o dos talibãs”, como relatou um oficial. Isto vai ao centro da questão. Os EUA foram buscar Karzai ao exílio e puseram-no no governo e eles são quase tudo o que aí o mantém.
Foi isso que uma jovem afegã que odeia os talibãs disse a um jornalista do Washington Post num protesto espontâneo em Cabul a 1 de Agosto, despoletado quando um carro conduzido por mercenários norte-americanos matou quatro pessoas, mas que visava a ocupação em geral: os EUA são “os guardiães e senhores da Máfia dominante no Afeganistão”. Um outro homem disse: “Muitas vezes, as tropas da NATO e os seus carros têm matado a nossa gente inocente. Eles nunca querem saber se somos cães ou afegãos.”
Não seria de esperar que um oficial norte-americano dissesse aos seus superiores que os EUA causam muito mais danos que os talibãs. Mas mesmo aceitando as suas palavras, se a vida sob ocupação norte-americana é hoje “pior que com os talibãs”, o que é que isso nos diz sobre esta guerra?
A outra questão que a comunicação social decidiu sublinhar nesses relatórios é o grau em que o governo instalado pelos EUA e os seus agentes estão ligados aos “insurgentes”, e sobretudo os vínculos entre esses “insurgentes” e o Paquistão.
Aqui o que é deixado de fora é que também Washington está a tentar arranjar um acordo com os talibãs e outros grupos que agora lutam contra a ocupação. A relação dos EUA com o exército e a classe dominante do Paquistão é muito complexa, e não é simples nem sequer com Karzai. Mas, ao fim de contas, os EUA apoiaram a islamização do exército paquistanês e usaram os Inter-Serviços de Informações [ISI] do Paquistão para levarem os talibãs ao poder nos anos 90. Segundo relatos jornalísticos sérios, os EUA estão agora a trabalhar tanto com Karzai como com os ISI para tentarem dividir os seus opositores e levarem pelo menos alguns dos fundamentalistas que combatem a ocupação a um governo de coligação – enquanto o Afeganistão estiver sob domínio norte-americano. Por que outra razão é que o Conselho de Segurança da ONU, mesmo depois destas fugas de informação, anulou as restrições às viagem internacionais e o congelamento de bens de 10 pessoas listadas como membros dos talibãs e de 14 “ligadas” à Al-Qaeda?
A perseguição do governo Obama ao soldado Manning e as suas ameaças contra a WikiLeaks servem objectivos muito claros e conscientes. O secretário norte-americano da defesa, Robert Gates, alegou em Washington: “As consequências no campo de batalha são potencialmente graves e perigosas para as nossas tropas e os nossos aliados e parceiros afegãos e também pode prejudicar as nossas relações e reputação nessa importante parte do mundo” (Guardian, 30 de Julho de 2010). A certo nível, ele estava a dizer algo óbvio: que embora esses relatórios tenham sido escritos pelas suas próprias forças armadas, tornar pública a verdade pode encorajar sentimentos contra a guerra. (Embora isso não tenha dissuadido o Congresso dos EUA de renovar o financiamento da guerra de Obama.)
Mas, a um outro nível, não muito subtil, ele estava a exprimir uma preocupação mais profunda: Os EUA, tal como qualquer outra potência ocupante e todos os opressores imperialistas, não podem dominar sem colaboradores locais do topo ao fundo da sociedade. Se essas pessoas – e ele não estava a falar apenas dos informadores locais mas das autoridades aos mais altos níveis – decidirem que não podem entregar as suas carreiras aos EUA, então os ocupantes ficam em apuros. O que mais ameaça a ocupação não é a possível identificação de informadores – a WikiLeaks diz que retirou muitos nomes e outros detalhes e que muitos dos que ficaram são do conhecimento público ou obsoletos – mas sim que se a NATO parecer estar a perder a guerra, os ratos podem abandonar o navio que se afunda. É isso a que Gates se refere quando se preocupa com a “reputação” da América.
Ainda que os relatórios não descrevam o quadro global – e como é que o poderiam fazer? – a forma como o governo dos EUA tem reagido e lidado com esta questão revela muito mais sobre as suas políticas, objectivos e natureza que as próprias fugas de informação.
(Ver também: A WikiLeaks e o Afeganistão: Uma correcção e uma actualização)