Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 29 de Outubro de 2007, aworldtowinns.co.uk

A Turquia, os curdos e os EUA: O fogo nas montanhas

Oficialmente, a ameaça turca de uma grande invasão do Curdistão iraquiano ficou suspensa à espera das conversas agendadas entre o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdoğan e George Bush a 5 de Novembro. Porém, o aparente atraso não significa que essa invasão não possa ocorrer na mesma, antes ou depois da reunião em Washington. Mesmo que não aconteça agora, antes de a neve bloquear as estradas durante o inverno, a ameaça é real e duradoura. Isto revela a extrema volatilidade da região.

A paz não chegou, e não é provável que chegue, porque não é isso que a Turquia deseja. A 28 de Outubro, Ancara enviou 8000 soldados e helicópteros de ataque para a frente de batalha na província oriental turca de Tunceli, a centenas de quilómetros da fronteira iraquiana e onde estão à espera mais 100 mil soldados turcos, com tanques e outro armamento pesado. A Turquia também organizou barragens de artilharia e provavelmente incursões toca-e-foge no Curdistão iraquiano durante a última semana, como tem feito dezenas de vezes recentemente.

A razão para a palavra “provavelmente” é que as autoridades norte-americanas, que controlam o espaço aéreo e vigiam do céu toda a zona, se têm recusado persistente e controladamente a dizer se o exército turco cruzou ou não a fronteira, embora certamente saibam a resposta a essa pergunta. Segundo os relatos noticiosos, há muito tempo que elas escolheram ignorar a presença de uma brigada turca estacionada permanentemente no lado iraquiano da fronteira.

Ao mesmo tempo, os EUA também rejeitaram os pedidos da Turquia para entrar em acção contra os campos do PKK no norte do Iraque, alegando que não sabiam onde se localizavam esses campos, embora a sede do PKK esteja assinalada com um retrato gigante em pedras pintadas do seu líder Adbullah Öcalan, visível mesmo do espaço exterior. O principal comandante norte-americano no norte do Iraque, o Major-General Benjamim Mixon, disse que não planeava fazer “absolutamente nada” contra as forças do PKK no Iraque. (Associated Press, 27 de Outubro)

A recusa até agora dos EUA de agirem contra qualquer dos lados fala para si própria: eles apoiam os dois lados, em diferentes graus e em vários momentos, embora muito longe de equitativamente – eles não dão certamente a mesma importância a alguns milhares de guerrilheiros deambulantes do PKK que ao estado turco e ao seu exército de milhões de homens. Sabrina Tavernise, do The New York Times, que entrevistou muitos responsáveis curdos iraquianos, bem como antigos e actuais responsáveis norte-americanos, escreveu a 27 de Outubro: “A situação coloca um quebra-cabeças aos Estados Unidos... [os quais] se vêem forçados a escolher entre dois aliados de confiança – a Turquia, um membro da NATO cujo território é uma zona de trânsito para a maior parte da carga aérea para o Iraque, e os curdos, os seus aliados mais próximos no Iraque.” Em apoio desta conclusão, ela cita um homem de Sulaimaniya que não identifica: os EUA “são como um homem com duas esposas. Elas disputam-se, mas ele não quer perder nenhuma delas.” Esta metáfora está certa até certo ponto, mas omite um ponto fundamental: esse homem está decidido a manter ambas as esposas sob o seu dedo polegar e a tirar proveito da situação, até onde for possível.

A classe dominante turca aproveitou as mortes dos recrutas que enviou para a batalha de forma a gerar um furacão de patriotismo turco e racismo anticurdo. A comunicação social publicou entrevistas emotivas a familiares dos soldados mortos. As manchetes dos jornais pedem sangue. Bandeiras turcas são agitadas nos jogos de futebol e agora é virtualmente obrigatório que em todos os jogos os jogadores respeitem um minuto de silêncio pelos soldados mortos. Os funerais dos soldados foram transformados em ocasiões políticas para os nacionalistas da direita hardcore, que receberam importante destaque na comunicação social de forma a encorajarem as turbas de linchamento em massa que saquearam escritórios de partidos políticos curdos e outros símbolos curdos e espancaram todos os que resistiram. Na televisão mostram-se grupos de raparigas agrupadas frente a bases militares, oferecendo-se para irem combater os “terroristas”. As poucas vozes solitárias que ousaram contrariar publicamente esta histeria reaccionária são assinaladas como “traidoras”.

Os generais da Turquia responderam às duas décadas de luta armada liderada pelo PKK com uma odiosa “guerra suja” que eliminou literalmente do mapa mais de 2000 aldeias curdas. Dezenas de milhares de curdos foram encarcerados. Esse conflito armado abrandou durante algum tempo, após a captura em 1999 do presidente do PKK, Öcalan, quando os EUA fizeram com que ele fosse entregue à Turquia. Nessa altura, ele rastejou publicamente perante o exército turco e apelou a uma solução pacífica para a questão curda dentro do quadro dos actuais estado e regime turcos. Também disse que as aspirações curdas se poderiam e deveriam ajustar aos interesses dos EUA, incluindo ao seu projecto de um Grande Médio Oriente reformatado. Isso levou à decepção e à desmoralização dentro das fileiras do partido e fora delas. Desde então, e sobretudo com a invasão norte-americana do Iraque, o PKK tem procurado cumprir esses objectivos encontrando formas de cooperar com os EUA e o regime turco, ao mesmo tempo que reclama que os seus esforços não estão a ser suficientemente recompensados. Apresentou candidatos às eleições locais no Curdistão turco, tornando-se tão entranhado na política institucional que, embora as guerrilhas do PKK estivessem sob ataque do exército turco, o partido político legal apoiado pelo PKK usava as palavras “os nossos mártires” para se referir às vítimas militares turcas. Mas isso não quer dizer que tenha abandonado o uso de armas para atingir os seus objectivos.

O nacionalismo curdo coloca um problema existencial ao regime turco. O domínio dos curdos está embutido nas próprias fundações do estado turco moderno. O êxito de Kemal Ataturk ao forjar o moderno estado turco a partir das cinzas do império otomano em 1923 baseou-se na derrota dos esforços dos imperialistas europeus para separarem partes da Arménia e do Curdistão de forma a debilitarem o seu inimigo de longa data. Depois disso, e durante décadas, foi negada a própria existência do povo curdo, com os 12 ou 13 milhões de curdos do país a serem desdenhosamente ridicularizados como “turcos atrasados da montanha”. A sua cultura foi tão reprimida que até 1991 era mesmo ilegal usar o idioma curdo em público. O seu ensino e a sua utilização na televisão ainda são severamente restringidos e os curdos enfrentam uma opressão nacional e uma discriminação social, política e económica, tanto no Curdistão como noutros lugares. A população curda já não se limita a pequenas aldeias e cidades longe dos centros populacionais da Turquia – milhões de curdos inundam agora os bairros de lata à volta de Istambul, com outras centenas de milhares em cidades e vilas por todo o país.

As classes dominantes turcas estão particularmente preocupadas com a ameaça das importantes conquistas do nacionalismo curdo junto às suas próprias fronteiras. Para as classes dominantes turcas, a questão curda é um abcesso inflamado que não pára de rebentar. Quando os EUA invadiram o Iraque, elas receberam garantias de que os EUA não permitiriam o estabelecimento de um estado curdo permanente na região. Mas, à medida que o Iraque entrou numa espiral fora de controlo, o Governo Regional Curdo do norte do Iraque tornou-se no mais fiel aliado dos EUA, dando-lhe um papel no Iraque pós-Saddam muito maior do que os estrategas norte-americanos talvez tenham esperado. A região adquiriu muitas características exactamente do tipo de presença curda permanente que a classe dominante turca temia e que os EUA tinham prometido que não aconteceria. Os passaportes dos viajantes que atravessam da Turquia para o Iraque nessa região são mesmo carimbados “Região Curda do Iraque”. A Região Curda tem acesso a abundantes recursos petrolíferos e já tem um exército de 60 000 membros – muito maior que o PKK. Ancara teme que isso possa funcionar como um potencial magneto que atraia a simpatia dos próprios curdos da Turquia.

O exército turco, com um sentido de precaução realista, incluindo um medo de uma insurreição interna, não participou na invasão norte-americana do Iraque, embora subsequentemente tenha proporcionado um importante auxílio aéreo e terrestre à ocupação norte-americana. Ironicamente, as recentes eleições permitiram às classes dominantes unir as suas próprias fileiras e enganar um suficientemente vasto sector das massas para que, se a Turquia invadisse agora o Iraque, desta vez o poderia fazer em nome da democracia e com a bênção do parlamento e de muita da sociedade civil. Os auto-intitulados reformadores do partido AK de Erdoğan, que pediram o apoio curdo para os seus candidatos, têm estado envolvidos nas agressões de turbas contra alvos curdos, expondo o conteúdo da “síntese entre Turquia e Islão” que eles proclamam. Os governantes da Turquia sentem que podem agora compensar essa oportunidade perdida de fazerem valer a sua força à sua volta e imporem o poder da Turquia, não só sobre os curdos dos dois países, como sobre muito mais que eles.

Há por isso boas razões para se suspeitar que embora o governo turco queira atravessar a fronteira com o Iraque para desferir verdadeiros golpes às guerrilhas do PKK, também está de olho na possibilidade de fazer vergar o Governo Regional Curdo e criar uma situação em que tenha um importante papel nos futuros acontecimentos na zona. Isto assume uma importância ainda maior tendo em conta as crescentes ameaças dos EUA contra o Irão. O estabelecimento de uma importante presença armada contínua no norte do Iraque poria as tropas turcas ao longo de uma ainda maior extensão da fronteira iraniana e colocá-las-ia numa posição de potencial importância no caso de os EUA desencadearem um grande ataque ao Irão.

É provável que seja esse o conteúdo das conversações Bush-Erdoğan da próxima semana – de facto, é difícil imaginar que isso ainda não tenha sido amplamente discutido e não tenham sido feitos acordos. Este pode ter sido um outro importante factor para que um espírito de harmonia se tenha instalado súbita e inesperadamente na contenciosa vida política oficial da Turquia.

Todas estas contradições têm uma vida própria, mas elas também estão integradas e condicionadas por contradições mais vastas, a nível regional e mundial, sobretudo a emergente possibilidade de um ataque dos EUA ao Irão. Em todo o Médio Oriente – Líbano, Iraque, Irão, Paquistão e Afeganistão, só para mencionar alguns lugares – os rebites estão a rebentar em estruturas de ferro que antes pareciam muito sólidas. Alianças, regimes e fronteiras que se mantiveram durante décadas estão a cambalear sob a pressão das impetuosas movimentações da única superpotência do mundo para estabelecer um império mundial sustentável, o que apenas pode acontecer através do desencadear do caos a grande escala, esperando depois poder apanhar os estilhaços. As classes dominantes turcas têm que agir decisivamente, e em breve, ou também elas podem ver a sua posição começar a desmoronar-se.

Uma forma de os EUA tentarem equilibrar os seus próprios interesses contraditórios nesta situação poderia ser deixar a Turquia golpear rudemente o PKK no Iraque, sem o eliminar, o que de qualquer forma pode não ser militarmente possível.

Seja o que for que venha a acontecer, através de uma dramática ofensiva encabeçada por tanques ou de outra forma, e envolvendo certamente uma combinação de cenouras económicas e políticas para as várias forças curdas, bem como verdadeiros chicotes, um aumento da presença turca no Iraque poderia ser muito útil para os esforços norte-americanos de, ao mesmo tempo, manter esse país sob seu controlo exclusivo e avançar com as suas tropas para a próxima guerra. E colocaria os interesses turcos, e talvez as tropas turcas, mais directamente contra a República Islâmica do Irão, que até agora conseguiu usar as suas relações económicas e outras com a Turquia como válvula para libertar alguma da pressão do bloqueio liderado pelos EUA.

Se os EUA estiverem convencidos de que a intervenção da Turquia servirá os seus objectivos, então, apesar de todo o apoio que receberam dos dois partidos do governo curdo iraquiano, poderão fechar os olhos a uma jogada turca para se afirmar no norte do Iraque. Dados os antecedentes históricos, não há razão nenhuma para acreditar que os EUA não trairão todo os curdos – como antes o fizeram –, ou que os dois partidos curdos que são os mais próximos aliados dos EUA no Iraque não trairão os outros curdos (e um ao outro), como também já antes o fizeram. Os estrategas dos EUA podem acreditar que podem apunhalar os curdos à traição e ainda assim mantê-los sob controlo, uma vez que isso já resultou no passado. Neste sentido, deve-se salientar que embora os EUA tenham declarado o PKK como organização “terrorista”, eles têm apoiado de facto o ramo do PKK no Curdistão Iraniano, o PJACK (Partido da Vida Livre no Curdistão), cujo líder, Rahman Haj-Ahmad, visitou Washington o verão passado. Tentar usar os curdos contra o regime iraniano faz parte dos planos dos EUA.

Os interesses das classes dominantes dos EUA e da Turquia não são idênticos – e isso é uma das razões por que esta situação é tão impossível de prever. Mas eles certamente sobrepõem-se. Cada um dos lados está a apelar ao outro para assumir riscos sem precedentes e muito elevados face ao que, para ambos, é uma situação de fazer-ou-morrer. Um massacre, e quanto mais sangue dos povos melhor para eles, seria apenas o estímulo de que ambos necessitam para se prepararem para um muito maior massacre em breve.

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