Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 26 de Novembro de 2007, aworldtowinns.co.uk

A crise no Paquistão e o segundo golpe de estado do General Musharraf

O Paquistão, que nunca foi um país tranquilo, nem sequer em tempos normais, tem estado numa agitação ainda mais intensa desde que o General Pervez Musharraf, presidente do país e chefe do seu exército, declarou o estado de emergência.

A única razão para o estado de emergência declarado por Musharraf não ter sido chamado de ditadura militar de uma forma mais generalizada foi que ele tomou toda a autoridade nas suas próprias mãos como presidente civil e não como chefe das forças armadas, embora tenha sido através de um golpe militar que ele se tornou presidente em 1999.

O estado de emergência significou a suspensão da constituição, incluindo o direito dos detidos a serem informados das acusações contra si e a terem um advogado, a liberdade de movimentos e outros direitos individuais. Embora a maioria das pessoas no Paquistão nunca tenha desfrutado de qualquer direito real, nem sequer em palavras, isto deu a Musharraf o poder para actuar arbitrariamente contra qualquer pessoa. O mais importante foi que lhe permitiu demitir todos os juízes do Supremo Tribunal e deter o seu principal juiz, Iftikhar Chaudhry. De seguida, desencadeou uma ofensiva contra as forças da oposição política, activistas dos direitos humanos e advogados. As estações de televisão privadas foram impedidas de emitir durante algum tempo e quando recomeçaram as emissões enfrentaram severas restrições ao que lhes era permitido mostrar ou dizer. Quase 6000 pessoas foram detidas e presas; apesar do anúncio da libertação de 3000 pessoas a 21 de Novembro, vários milhares mais ainda estão na prisão e continuam as detenções de jornalistas e estudantes.

Musharraf justificou o estado de emergência em nome da luta contra o terrorismo islâmico mas, como salientaram muitos observadores, centrou a repressão de facto nas forças não-fundamentalistas que ousaram opor-se ao seu regime, entre as quais um sector das massas, ao mesmo tempo que também usava os seus poderes para pressionar e obter acordos com os seus dois principais rivais políticos, os ex-primeiros-ministros Benazir Bhutto e Nawaz Sharif, ambos tão identificados como o próprio Musharraf com a islamização do Paquistão.

Os objectivos deste golpe de estado

Poucas horas depois da sua declaração do estado de emergência, o General Musharraf foi à televisão estatal para o justificar. Disse: “O Paquistão está numa perigosa encruzilhada e a unidade do Paquistão está em perigo”. O terrorismo e o extremismo, continuou ele, atingiram “níveis extremos” e “o funcionamento do governo está actualmente paralisado”. O problema mais importante, concluiu ele, é o seguinte: “As instituições de execução da lei estão desmoralizadas, sobretudo em Islamabade, e perderam a esperança porque os seus agentes estão a ser castigados. Temos uma força desmoralizada com uma moral reduzida.”

A maioria das pessoas concordaria com a avaliação da situação pelo general, dadas as humilhações e os recuos que o seu regime tem enfrentado nos últimos meses. A desmoralização das suas forças armadas tornou-se recentemente demasiado óbvia quando, na região noroeste do país, 300 soldados se renderam voluntariamente aos fundamentalistas islâmicos contra quem tinham sido enviados para combater.

Musharraf culpou por esta situação o Supremo Tribunal e o seu líder Chaudhry. O governo estava paralisado e as forças armadas desmoralizadas, disse ele, porque “todos os altos representantes do governo iam constantemente aos tribunais – sobretudo ao Supremo Tribunal”. E, “estavam a ser condenados”. Musharraf também culpou o tribunal por erguer obstáculos à luta contra os fundamentalistas ao ordenar a sua libertação. Além disso, disse ele, “a comunicação social – certos canais e certos programas em certos canais – também contribuíam para esta derrocada, este pensamento negativo, esta projecção negativa. E eu também estou triste por isso.”

O general não escondeu a sua amargura pelos acontecimentos da primavera passada que foram desastrosos para si. Ele já antes, em Março, tinha demitido Chaudhry, acusando de corrupção o chefe do Supremo Tribunal. Essa medida desencadeou o protesto de advogados e activistas de direitos humanos que se transformou num movimento e ganhou força. Em Maio, no auge do movimento, quando estava previsto que o juiz aparecesse numa reunião em Carachi, Musharraf atiçou os arruaceiros do MQM (Movimento Mutahida Qaumi, um dos raros grupos que o apoiam) para boicotarem o acontecimento e atacarem a multidão, matando 49 pessoas. Chaudhry ficou impossibilitado de sequer sair do aeroporto de Carachi e a reunião foi cancelada.

Em Maio, as lojas e os mercados de todas as principais cidades fecharam em protesto contra o ataque em Carachi. Mais manifestações contra Musharraf continuaram por todo o Paquistão. Finalmente, o Supremo Tribunal tomou a decisão de considerar ilegal a demissão de Chaudhry e reinstalou-o como seu juiz principal. Embora o movimento anti-Musharraf em geral, e em particular a luta determinada dos advogados nas ruas, não tenham sido o único factor neste volta-face, deu certamente ânimo a alguns dos juízes e sobretudo a Chaudhry para se erguerem mais firmemente contra os actos arbitrários de Musharraf. Por exemplo, o Supremo Tribunal decidiu contra a deportação de Sharif por Musharraf algumas horas após o seu regresso do exílio na Arábia Saudita. A última gota surgiu quando o Supremo Tribunal pôs em causa um acordo entre Musharraf e Bhutto, abertamente negociado pelos EUA, recusando-se a abandonar as acusações de corrupção que Bhutto enfrentava quando regressou do exílio no Dubai.

Contudo, no seu discurso sobre o estado de emergência, a principal acusação de Musharraf contra o tribunal foi a de que ele se tinha tornado num obstáculo à luta contra o fundamentalismo islâmico. “Terroristas que tinham sido declarados ‘negros’ pelos serviços secretos, o que quer dizer ‘terroristas confirmados’, foram libertados pelo Tribunal”, disse ele. Não é possível examinar aqui completamente as relações contraditórias de Musharraf com as várias forças fundamentalistas islâmicas paquistanesas e a forma como ele se aliou e combateu os seus vários grupos em diferentes momentos. A questão a salientar é que ele está a defender abertamente que qualquer pessoa que os seus serviços secretos etiquetem de “negro” seja automaticamente um “terrorista confirmado” e não haja necessidade nenhuma de qualquer outro procedimento legal.

Desde o 11 de Setembro de 2001, e sobretudo no último par de anos, o Paquistão tem sido o cenário de muitos “desaparecimentos”. Os rastos de muita gente desaparecida foram traçados até à Inter-Serviços de Informações (ISI) e outras agências secretas. Muitas vezes, as pessoas são apanhadas na estrada, em paragens de autocarro, nos empregos e noutros locais. As suas famílias nunca são informadas; elas passam meses simplesmente sem notícias dos seus entes queridos. Alguns dos “desaparecidos” têm ligações aos fundamentalistas islâmicos. Mas muitos não; na realidade, não estão envolvidos em qualquer actividade religiosa. Muitos são activistas políticos da oposição. Muitos mais desses casos estão relacionados com a insurreição que visa a autonomia local da província oriental do Baluchistão. Alguns são advogados ou activistas dos direitos humanos ou apenas opositores políticos. Em Janeiro de 2007, sob pressão das famílias, o Supremo Tribunal tomou a extremamente inócua decisão de ordenar às agências que tentassem mais arduamente “encontrar” 41 pessoas listadas como desaparecidas. Subsequentemente, metade delas foram discretamente libertadas. Essas foram algumas das pessoas a que Musharraf se referia quando se queixou da libertação pelo tribunal de “terroristas confirmados”.

O desdobrar de crises no Paquistão

No decorrer dos últimos anos, o Paquistão tem saltado de uma crise para outra, e esta é uma das mais sérias. Quais são as dinâmicas e as características desta instabilidade?

Um factor é geopolítico: o Paquistão está situado numa região muito intensa do mundo e este é um momento muito intenso das questões mundiais. O Paquistão é a porta para três regiões críticas do mundo. A norte fica a Ásia Central, a leste a Índia e a Ásia do Sul e, mais importante, a oeste o Médio Oriente. Outro factor é o papel que o país tem desempenhado nos seus 60 anos de existência, incluindo as suas contenciosas relações com a Índia (que a Grã-Bretanha e os EUA queriam que ele contrabalançasse) e a sua história como estado cliente dos EUA durante a Guerra Fria, incluindo o forjar de uma inter-relação especial com o Afeganistão. Estes factores só por si tornariam o país muito volátil e vulnerável aos acontecimentos nos estados vizinhos.

Há agora um novo elemento nisto: a crescente crise no Médio Oriente e sobretudo as ondas de choque de uma ameaça de guerra contra o Irão. Já vimos como os desenvolvimentos na Turquia, no Curdistão e no Iraque estão a ser condicionados pela necessidade dos EUA de reestruturarem o Médio Oriente. Isto é certamente pelo menos tão verdadeiro para o Paquistão, um importante aliado “não-NATO” dos EUA, como os governantes norte-americanos lhe chamam, a que foi atribuído um papel indispensável na prossecução dos seus planos na região.

Isto levou os EUA a apoiarem forças sociais e políticas específicas dentro do país e a representarem um papel decisivo na sua política. Isto está longe de ser a única razão para os problemas do país – o domínio imperialista actua através das próprias classes dominantes reaccionárias do país – mas é uma das principais razões para o Paquistão ter saltado de crise em crise desde a sua criação há 60 anos, e para que essas crises, sob formas diferentes, se tenham tornado crescentemente intensas nos últimos anos.

O governo tem enfrentado há mais de dois anos uma insurreição étnica no Baluchistão, uma província ocidental com enormes reservas de petróleo e gás. A guerra do exército contra o povo dessa região ainda continua. A vasta maioria dos raptos registados pela Comissão de Direitos Humanos do Paquistão é do Baluchistão.

A Província da Fronteira Noroeste tem sido um importante palco da actividade dos fundamentalistas islâmicos. O vizinho Waziristão, supostamente um santuário dos combatentes talibãs do vizinho Afeganistão e de alguns activistas da Al-Qaeda, está fora do controlo governamental. Recentemente, os fundamentalistas islâmicos estenderam o seu movimento armado ao Swat, ainda mais longe da fronteira, onde anteriormente tinham pouca actividade e nenhuma base. O governo do Paquistão tem estado oficialmente envolvido na luta de repressão dos fundamentalistas islâmicos na zona da Fronteira Noroeste. Houve, porém, um cessar-fogo de 10 meses entre o governo e as tribos armadas do Waziristão.

Apesar dos esforços de Musharraf, esse cessar-fogo chegou ao fim em Julho, não muito depois dos comandos do Exército terem invadido o complexo da mesquita Lal Masjid (Mesquita Vermelha) em Islamabade, matando centenas de pessoas. A mesquita tinha sido ocupada por um grupo de fundamentalistas islâmicos. O general Musharraf estava determinado a usar essa crise para restabelecer a autoridade que tinha perdido no conflito com o Supremo Tribunal durante os meses anteriores. Mas, em vez de restabelecer a autoridade do general e de resolver os seus problemas, essa sangrenta operação apenas mergulhou o seu regime numa crise ainda mais profunda e deu lugar a uma série de atentados bombistas suicidas sem precedentes e a outros actos de vingança das forças fundamentalistas islâmicas. Essas actividades tinham surgido esporadicamente no Paquistão desde 2001, sobretudo relacionadas com a disputa religiosa entre forças xiitas e sunitas, mas o seu nível era tolerável para o governo de Musharraf. Desde o massacre da Mesquita Vermelha, os atentados bombistas suicidas aumentaram dramaticamente. A situação ficou ainda pior quando, não muito depois, os combatentes tribais do Waziristão Norte rasgaram unilateralmente o seu acordo de cessar-fogo com o governo e começaram a atacar directamente as forças armadas para aí enviadas. Até agora, o exército fracassou completamente no seu objectivo de trazer essa região sob controlo.

O mais recente confronto de Musharraf

Estas crises políticas distintas mas entrelaçadas e as subjacentes linhas das fendas sociais levaram o regime à beira do colapso. Isso coloca problemas sem precedentes e mesmo perigos aos EUA e aos seus interesses e objectivos regionais. Se o regime Bush ainda não actuou mais decisivamente, porém, pode ter sido porque não há uma solução clara. Até agora, eles parecem ter-se concentrado em tentar remediar a situação o melhor possível, dadas as circunstâncias.

O seu principal remédio, pelo menos até agora, tem sido Benazir Bhutto, que foi primeira-ministra duas vezes, no final dos anos 80 e nos anos 90. Embora ela esteja a ser actualmente promovida como personalidade laica, pelo menos para as audiências ocidentais, quando ela dirigia o governo nada fez para deter a crescente islamização do país (o que incluiu as infames leis islâmicas antimulheres de Hudood) e a aliança militares-fundamentalistas; de facto, ela presidiu à ascensão ao poder dos talibãs no Afeganistão – às ordens dos EUA. Até recentemente, enquanto o regime de Musharraf parecia estável, os EUA ignoraram os seus esforços para obter as graças norte-americanas. Então, subitamente, Condoleezza Rice recolheu Bhutto sob a sua asa e anunciou que os EUA queriam um acordo em que Musharraf tirasse o seu uniforme militar e fosse transformado por magia num presidente civil (embora retendo a sua posição de comandante chefe, tal como os presidentes civis de muitos países). Bhutto seria a sua primeira-ministra e, ao pôr fim ao “domínio de um só homem”, transformaria assim por magia um regime amplamente odiado e isolado em algo mais estável. A Grã-Bretanha também apoiou este plano.

Alguns apoiantes de Bhutto alegam que ela teve que aceitar esse acordo porque não podia governar sem o apoio do exército. Uma maneira mais verdadeira de o dizer é que ela ajudaria a dar uma face civil a um regime essencialmente militar. O futuro desse acordo ainda é obscuro, mas é razoável pensar que Musharraf começou a duvidar de que Bhutto realmente o pudesse salvar e portanto de que esse acordo de partilha do poder tinha muito para lhe oferecer. Os governantes norte-americanos também podem ter desesperado sobre se esse acordo iria “salvar” a situação em termos dos seus interesses e mesmo se o regime seria fortalecido ou não, ou se ficaria debilitado com isso. Não pode haver dúvida nenhuma de que um regime forte – sob o bastão dos EUA, claro – é a menina dos olhos dos EUA.

Este acordo de partilha de poder esteve sujeito a tremendas pressões vindas de diferentes pontos da realidade paquistanesa. Essas pressões levaram ao segundo golpe de estado de Musharraf. Se ele foi ou não desencadeado com a aprovação dos imperialistas, e sobretudo que imperialistas, não é claro. Há razões para pensar que a Grã-Bretanha pode ter sido mais entusiástica que os EUA em relação a trazerem Bhutto de volta e muito menos receptiva que os EUA em relação ao golpe de estado de Musharraf. (Os “interesses” britânicos e a sua influencia no Paquistão estão em segundo lugar, muito próximos dos EUA.) Mas o que é certo é que foi outra tentativa e talvez uma última tentativa desesperada de Musharraf e do exército para restabelecerem e consolidarem a autoridade que eles viram esvaziar-se durante os últimos anos e de o colocarem numa posição mais forte antes de qualquer outro compromisso ou de partilha do poder – que pode vir a resultar bem assim que a supremacia de Musharraf estiver assegurada.

Desde o início que o golpe de estado foi um grande risco. Poderia fortalecer a posição de Musharraf e permitir-lhe avançar com o acordo com Bhutto ou acabar com todo o acordo de partilha do poder e, mais que isso, tornar mesmo pior a situação para o regime. Mesmo que o golpe não tenha sido pré-aprovado por Bush e pela sua administração, Musharraf provavelmente calculou que nesta altura os EUA não se lhe oporiam e que não tinham nenhuma alternativa melhor. Não desencadear um golpe e deixar as coisas como estavam poderia ter tornado a situação pior para ele e para eles.

Esta orientação foi expressa por Tariq Azim, ministro de estado para a informação: “Eles preferem ter um Paquistão estável – embora com algumas normas restritivas – a ter mais democracia prestes a cair nas mãos de extremistas... Dadas as escolhas, eu sei o que os nossos amigos escolheriam.” (Esta e as citações seguintes são do artigo do International Herald Tribune de 4 de Novembro, “É provável que os EUA continuem a fornecer ajuda ao Paquistão”, por David Sanger e David Rohde.)

Os EUA e o golpe de estado

A administração Bush insistiu que não tinha tido nenhum papel no golpe de estado e mesmo que o tinham desencorajado e avisado contra essa medida. A crítica mais forte a Musharraf veio do Secretário norte-americano da Defesa, Robert Gates, que durante uma conferência de imprensa chamou “perturbador” ao golpe. Mas ele não condenou a declaração do estado de emergência e salientou que “o Paquistão é um país de grande importância estratégica para os Estados Unidos e um parceiro chave na guerra ao terror... Temos o cuidado de não fazer nada que possa minar os actuais esforços contra o terrorismo.”

A Secretária de Estado norte-americana Rice também se recusou a condenar ou a criticar o estado de emergência. A sua maior ameaça foi que os EUA reveriam a sua ajuda ao Paquistão, mas tornou claro que a ajuda militar destinada à chamada guerra ao terrorismo não ia ser afectada. Ela disse que a primeira preocupação de Bush era “proteger a América e proteger os cidadãos americanos, continuando a lutar contra os terroristas”.

O Subsecretário de Estado norte-americano John Negroponte visitou o Paquistão e manteve conversações com Musharraf, Bhutto e Asfaq Kiani, o sucessor designado por Musharraf como chefe do exército quando o general se demitir. (Identificado pela comunicação social ocidental como pró-americano e “moderado”, Kiani é o chefe dos serviços secretos militares e foi chamado de “arquitecto” do plano do Paquistão, com o apoio dos EUA, para fazer regressar os talibãs ao poder no Afeganistão.) Antes de ir para o Paquistão, Negroponte disse a um Comité do Congresso norte-americano: “A linha de fundo é que não há dúvida nenhuma que nós, os norte-americanos, temos interesses no Paquistão.” (IHT, 7 de Novembro)

O homem não podia ter posto isto mais abruptamente. Os seus actos também não foram menos abruptos: segundo relatórios que o próprio Negroponte depois confirmou, ele passou a maior parte do tempo a falar com Kiani. Os EUA podem não estar a apostar todos os seus interesses na sobrevivência política de Musharraf, mas estão determinados a que, independentemente de tudo o que aconteça, terão o exército paquistanês, o qual pode ter garantido que continuará a receber a parte de leão dos quase mil milhões de dólares que os EUA enviam anualmente para o Paquistão.

Mas, ao mesmo tempo que evitam criticar as acções de repressão de Musharraf (até a última semana ou quase, quando o golpe parecia estar a ter resultados negativos), nos seus comentários sobre o Paquistão, os responsáveis dos EUA e da Grã-Bretanha salientaram que se devem realizar eleições. Isso satisfaria as preocupações dos EUA com a democracia e não teriam de se preocupar com mais nada. Não interessa que a constituição seja suspensa e o exército e Musharraf façam tudo o que queiram. Não interessa que eles prendam, hostilizem e tiranizem milhões de pessoas e dezenas de milhares de opositores e manifestantes. Bush não condenou o estado de emergência de Musharraf nos seus comentários públicos sobre a situação no Paquistão, nem expressou o mais leve descontentamento com o reino de terror. Disse que a sua mensagem para Musharraf era: “Nós acreditamos fortemente em eleições, em que você deve realizar eleições em breve e em que você precisa de despir o seu uniforme... Você não pode ser ao mesmo tempo presidente e chefe do exército.” (IHT, 7 de Novembro) Rice, reiterando esta posição, disse: “Nós temos uma visão muito clara de que as eleições precisam de se realizar no momento certo, o que quer dizer no início do ano.”

De facto, foi isso que Musharraf disse que aconteceria. No seu discurso de justificação do estado de emergência, Musharraf concluiu com este argumento: “Na minha perspectiva, estes três pilares do estado – judicial, executivo e legislativo – devem ser harmonizados. Essa é a única forma de fazer o governo voltar ao caminho certo. Antes que nos desintegremos completamente.” Todos os seus actos, “assegurou” Musharraf ao povo do Paquistão, não têm senão um objectivo: remover os “obstáculos do caminho para a democracia” (Todas as citações de Musharraf feitas a partir da tradução para inglês de Barnett Ruben colocada no blog Informed Comment Global Affairswww.icga.blogspot.com)

A insistência nas eleições acontece para que os EUA possam alegar que promover a democracia é a essência do seu plano para o Médio Oriente e para encobrir todas as atrocidades que têm ocorrido no Paquistão, sobretudo nos últimos anos, com a ajuda dos EUA. Mas a ironia é que mesmo que aceitássemos as alegações dos governantes norte-americanos de que realizar eleições significa que as pessoas podem exercer a sua vontade – uma noção particularmente ridícula num país onde as potências estrangeiras sempre tiveram a última palavra – os resultados dessas eleições que eles estão tão ansiosos em realizar não devem ser determinados pelas urnas eleitorais. As eleições foram planeadas para legitimar as decisões que já tinham sido tomadas com antecedência pelos imperialistas norte-americanos e britânicos. A explicação de Musharraf de que o seu golpe de estado visava libertar-se dos “obstáculos” a uma eleição bem-sucedida – os conflitos dentro do estado e das classes dominantes e uma inconveniente oposição de sectores do povo – são verdadeiros se entendidos a esta luz.

Até agora, nenhum observador bem informado duvidou de que isto significa manter Musharraf como presidente, Bhutto como primeira-ministra e Kiani como chefe do exército. Não é ainda claro se este arranjo terá que ser modificado ou mesmo abandonado, mas isso não altera nada em relação à forma como os imperialistas tentam resolver a questão.

Não é surpresa nenhuma que as massas populares do Paquistão odeiam tanto os imperialistas norte-americanos. Isso é um outro factor neste caldeirão, um factor que até agora, infelizmente, tem sido canalizado sobretudo pelos partidos dominados por várias facções das classes dominantes ou dos fundamentalistas islâmicos. Independentemente do que os EUA e o General Musharraf possam desejar, os acontecimentos que se desenvolverão após a imposição do estado de emergência têm o potencial para pôr em perigo todo o seu plano, e talvez mais que isso. Todas as tentativas das potências dominantes e dos seus apoiantes norte-americanos para arrancarem o país da crise resultaram numa crise mais profunda. E a situação mundial, que torna um regime estável e dominado pelos EUA no Paquistão tão importante para os EUA – incluindo a ameaça de um ataque militar norte-americano ao Irão – torna muito provável a existência de mais ondas de choque.

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