Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 10 de Agosto de 2015, aworldtowinns.co.uk

Tunísia, ano cinco: Apanhada num torno que se aperta

Por Samuel Albert

Manifestação em Tunes a 14 de Janeiro onde foram gritadas palavras de ordem contra o Presidente Ben Ali
Manifestação em Tunes a 14 de Janeiro de 2011 onde foram gritadas palavras de ordem contra o Presidente Ben Ali (Foto: Christophe Ena/AP)

Milhares de jovens tunisinos afogam-se ao tentarem chegar à Europa, na esperança de que o Ocidente lhes possa oferecer uma vida que o seu próprio país não pode. Milhares deles vão para a vizinha Líbia ou para outros países para fazerem a jihad contra o que eles percebem ser o modo ocidental de vida, sedentos de vingança contra o Ocidente e os seus valores.

O que estas duas diferentes situações têm em comum é que, para muitos jovens tunisinos, aceitar as vidas que receberam não é uma opção. O massacre de 22 pessoas em Março de 2015 no Museu Bardo, uma das principais atracções turísticas culturais de Tunes, e depois o assassinato em Junho de 38 europeus numa estância balnear em Sousse, demonstraram que a Tunísia não pode escapar a ficar apanhada entre as forças em disputa que lutam pela fidelidade das pessoas de toda a região. Por um lado, milhões de vidas e futuros estão a ser revirados ou destruídos pelas condições criadas pelo mercado mundial e pela finança globalizada, ao mesmo tempo que os capitalistas monopolistas que dominam os países imperialistas prosperam. Por outro lado, o regime político islamita é apresentado como a única alternativa ao que o Ocidente chama “democracia”, ou seja, as instituições políticas, sociais e ideológicas cuja função é estabilizar esta situação intolerável.

O estudante islamita licenciado de 23 anos que matou os turistas em Sousse estava a combater uma situação em que os jovens de famílias pobres do interior se sentem afastados do mundo moderno tal como ele é desfrutado por algumas pessoas no litoral e pelas pessoas no Ocidente em geral. Os pais deles trabalham, quando conseguem e onde podem, na extenuante construção civil e as mães deles nos campos detidos por investidores sob a mão de ferro de impiedosos contratantes de mão-de-obra que agem como se elas fossem propriedade deles. Os trabalhadores nas fábricas e nos call centers estão à mercê das encomendas estrangeiras. O sistema de ensino, sobretudo nas áreas tecnológicas, enche os estudantes com uma estreita “entrada” de capacidades que eles podem esperar que se converta à “saída” numa vocação que lhes promete uma vida diferente da dos pais deles – até que, no final, emergindo com um diploma na mão, eles caem no abismo do desemprego ou de entediantes empregos sem perspectivas. As minas de fosfatos que geram muita da riqueza do país criam graves problemas ambientais e poucos empregos para as pessoas que vivem à volta delas. A “indústria” turística promovida como a esperança do país é movida pela especulação imobiliária e pela prostituição e o enorme número de pessoas apanhadas pela prostituição revela quais os valores e o futuro que o Ocidente tem para oferecer à Tunísia.

Nesta situação – e num mundo sem estados socialistas e com poucos movimentos revolucionários genuínos, em que uma perspectiva revolucionária baseada na realidade ainda não se tornou num bem das vastas massas populares –, a poderosa atracção do Islão político e jihadista, que neste momento se apresenta como o principal desafiador da actual situação imposta pelo imperialismo ocidental, é trágica mas não surpreendente.

Os motivos políticos por trás do ataque de Sousse não são nenhum mistério: foi uma demonstração de força do islamismo, não só militarmente mas também na disputada esfera da ideologia e da coerência da sua política. Foi uma crítica armada à subjugação do país e das suas instituições injustas, ilegítimas e moralmente corruptas, uma demonstração de que o islamismo é a única alternativa política. Deu um golpe muito sério à indústria turística de que o país e o regime dependem. E forçou o exército e as forças de segurança a espalharem-se pelas grandes cidades e pelas zonas litorais em vez de se concentrarem na região montanhosa perto da fronteira com a Argélia e a Líbia onde eles tinham vindo a montar uma ofensiva contra as zonas operacionais dos fundamentalistas.

A resposta do presidente Beji Caid Essebsi foi declarar o estado de emergência para possibilitar novas medidas repressivas contra as greves, os protestos e outros movimentos que não têm nada em comum com o jihadismo, e mesmo a proibição de ajuntamentos públicos e eventos culturais. “Desde 2011 que o país tem estado como que numas férias escolares e agora isso tem de acabar”, declarou um pândita pró-governamental. Essebsi salientou que os seus rivais políticos e amigos insatisfeitos também tinham de “entrar na linha” ao lado do governo dele e do seu programa aprovado pelo Ocidente. Ele disse que, devido à estabilidade, os proeminentes e bem conectados homens de negócios, amplamente odiados por roubarem o público, iriam ser protegidos de qualquer acção legal.

Em suma, o país cujo “sucesso” foi contrastado com o desalento da Primavera Árabe no Egipto, ficou como o Egipto, em muitos aspectos, se não em todos.

Os manifestantes enfrentam a polícia em Tunes, a 14 de Janeiro
Os manifestantes enfrentam a polícia em Tunes, a 14 de Janeiro (Foto: Christophe Ena/AP)

Tal como o Egipto, os EUA têm atraído a Tunísia para mais próximo de si, fornecendo um significativo financiamento e garantias de empréstimos (embora, ao contrário do Egipto, a actuação dos EUA na Tunísia seja sempre pelo menos tingida pela rivalidade com a França, o suserano histórico da Tunísia). Em Maio de 2015, na sequência do ataque ao Museu Bardo, Essebsi visitou Washington, onde Obama nomeou a Tunísia um “importante aliado não-NATO”, um estatuto de que resulta mais ajuda militar e “cooperação estratégica”. Em Julho, a comunicação social tunisina noticiou que a base militar e posto regional de escuta dos EUA actualmente localizada na Sicília seria movido para a Tunísia.

Para os EUA, em especial, a Tunísia é importante sobretudo como “problema de segurança”. Tentando “corrigir” os “disfuncionais” serviços de segurança da Tunísia, os EUA, a Grã-Bretanha e a França estão a assumir eles próprios alguns assuntos – por exemplo, a britânica Scotland Yard está a fazer a investigação do massacre de Sousse.

Esta cada vez maior interferência directa, motivada pelos interesses regionais e nacionais percebidos por esses imperialistas e não pelo bem da Tunísia, não irá salvar a Tunísia do desastre mais do que fez no Afeganistão, Iraque, Síria e outros lugares. Em vez disso, aumenta o perigo de a Tunísia ser atraída para o turbilhão das guerras civis e regionais entre os que estão alinhados com os EUA e grupos como o Daesh que são o principal desafio aos seus interesses neste momento.

O que é que a “democracia”, tão elogiada pelo Ocidente e pelos seus apologistas, trouxe à Tunísia? E porque é que a ascensão do islamismo parece ser assim tão imparável? A resposta está no modo como as duas correntes se reforçam uma à outra, mesmo quando elas se combatem ferozmente pelo futuro do país.

O odiado presidente Ben Ali já se foi, derrubado pelo acto de abertura da Primavera Árabe, mas a insurreição deixou o aparelho de estado fundamentalmente inalterado. As forças policiais organizadas para proteger brutalmente o velho regime permanecem intactas. Elas espancam agressivamente os jovens nas ruas dos bairros e cidades pobres tanto como antes e continuam a torturar os prisioneiros, políticos ou outros. Os movimentos sociais no interior são violentamente reprimidos. Os militares, que supervisionaram a chamada “transição democrática”, continuam a deixar conhecida a sua vontade através de ameaças aos partidos políticos e à população em geral. Detêm ministérios chave e governorados (autoridades provinciais). O primeiro-ministro Habib Essid é apenas a figura mais proeminente entre os homens do anterior regime que, em vez de terem perdido a sua autoridade, foram promovidos. As pessoas não tiveram nenhum alívio da burocracia que rege boa parte da vida quotidiana e do destino de cidadãos como Mohamed Bouazizi, o jovem vendedor de fruta de Sidi Bouzid que ateou fogo a ele próprio e ao país a 17 de Dezembro de 2010.

A economia do país está como estava antes, estruturada ao longo de décadas para depender dos mercados e do capital estrangeiro. Não houve nenhuma tentativa séria de mudar a orientação económica de Ben Ali por parte de qualquer dos principais partidos. A continuação da privatização de empresas estatais trouxe uma riqueza ainda mais obscena aos parceiros ricos do capital francês, norte-americano, saudita e catari, ao mesmo tempo que foram quebradas as promessas de projectos de desenvolvimento económico em zonas interiores como Kasserine e Sidi Bouzid, o lugar onde começou a revolta. O desemprego está pior que nunca.

O sistema eleitoral tem atraído para si a maior parte da oposição ao anterior regime e transformou-a em seus servidores. O recrutamento de ex-radicais para a “classe política” – o conjunto de pessoas a quem é permitido fazer política – trouxe cinismo e descrença em relação aos ideais de “esquerda” que eles antes professaram. Menos de metade dos potenciais eleitores se incomodaram a usar um boletim de voto nas últimas eleições.

Ao contrário dos jihadistas, os políticos da oposição (incluindo os ditos de “esquerda”) claramente não procuram nem acreditam numa mudança radical. Ultimamente, eles têm vindo a encorajar os tunisinos a ter a esperança de que as novas jazidas de petróleo (que supostamente já foram descobertas mas cuja existência está a ser encoberta por interesses obscuros) podem salvar o país, tal como as exportações de fosfatos foram anteriormente saudadas como o futuro do país. Será que ter uma abundância de petróleo salvou a Argélia ou, pelo contrário, a levou ainda mais profundamente para as engrenagens do mercado global e das suas implacáveis exigências, ao mesmo tempo que subsidiou o regime de um punhado de homens que são os representantes locais desse mercado cruel?

Numa manifestação em Tunes a 8 de Janeiro de 2011, exigiu-se a libertação das pessoas presas em anteriores protestos
Numa manifestação em Tunes a 8 de Janeiro de 2011, exigiu-se a libertação das pessoas presas em anteriores protestos.
(Foto: Hassene Dridi/AP)

O desenvolvimento económico da Tunísia nos anos 1990 trouxe a sociedade para onde está hoje. O seu Acordo de Associação com a União Europeia ajudou a tornar o país num subcontratado de componentes automóveis e eléctricas, vestuário e call centers, ao mesmo tempo que ficou impossibilitado de se alimentar sem as importações que, por sua vez, requerem uma cada vez maior subordinação económica e um gigantesco desperdício do potencial dos habitantes do país.

Em resposta ao massacre de Sousse, o governo teve pouco para mobilizar a não ser as tropas. Um governo que proíbe os homens com menos de 35 anos de viajarem livremente – com medo que eles se juntem aos milhares de tunisinos que estão a fazer a jihad no estrangeiro, e que depois regressem – está a declarar que nem sequer consegue sonhar em levar a cabo uma luta pelos jovens do país, já para não falar em oferecer uma alternativa credível. Não pode fazer nada para mudar uma situação que gera vaga atrás de vaga de islamitas, não só por causa da jihad que se expande nos países vizinhos, mas também porque, nas actuais circunstâncias, a própria sociedade é uma matriz para o islamismo.

Há diferentes correntes no islamismo, mas a linha divisória entre o jihadismo e o islamismo eleitoral é extremamente porosa na teoria e na prática. Os dirigentes do partido tunisino Ennahda, que emergiu da corrente da Irmandade Muçulmana egípcia e que gosta de se comparar ao AKP de Erdoğan na Turquia, usaram métodos jihadistas antes da queda de Ben Ali para abriram caminho para a partilha de poder num governo eleito. Durante esse último período, o Ennahda forneceu a cobertura prática e ideológica para os jihadistas ajuramentados.

A diferença entre o islamismo armado e o islamismo eleitoral não é uma questão de lealdade à “democracia”. Qualquer classe que dirija um sistema explorador e opressor, tanto nos países mais desenvolvidos do mundo como em qualquer outro lugar, irá optar por qualquer forma de regime político que seja necessário para preservar o seu domínio. O islamismo é definido pelos seus objectivos, a imposição do Islão como regulador legal da vida política e social (o que é muito diferente de defender o direito das pessoas a praticarem voluntariamente a sua religião), e não pelos meios para alcançar esses objectivos que possam parecer mais efectivos em qualquer momento dado.

Muitas forças armadas reaccionárias, incluindo nos EUA, encorajam os jovens a assassinar pessoas inocentes para aplacarem os seus sentimentos de terem sido injustiçados. O islamismo consegue mobilizar a lealdade cega de algumas pessoas desesperadas de entre os mais baixos estratos das massas e o ressentimento da pequena burguesia. Consegue oferecer um caminho para a progressão social de muitas pessoas que a actual situação não lhes disponibiliza. Mas, em termos de interesses de classe, representa os velhos e novos exploradores nas nações dominadas pelo imperialismo.

O objectivo do Daesh, da Al-Qaeda e, de uma forma algo diferente, da Irmandade Muçulmana e do AKP não é desafiar o capitalismo mas conquistar um novo lugar para eles próprios que não tem sido possível com a ordem geopolítica do Médio Oriente que os EUA construíram para servir a sua supremacia. Embora os alinhamentos de forças de classe difiram de país para país no mundo islâmico, certamente que não é por acaso que a liderança, o treino ideológico, o financiamento, a logística e as armas usadas pelas duas principais correntes actuais do islamismo provêm das classes dominantes predominantemente capitalistas da Arábia Saudita e dos países do Golfo, frequentemente em alinhamento com a Turquia, por um lado, e a República Islâmica do Irão, por outro. Estes são excelentes exemplos de regimes cujas classes dominantes com raízes em modos pré-capitalistas de produção se tornaram inseparáveis da acumulação privada de capital entre as relações de produção globalizadas do sistema imperialista e da sua inelutável lógica económica. Os interesses contraditórios, e não apenas as diferenças religiosas entre xiitas e sunitas, explicam porque é que os islamitas se podem alinhar em lados opostos ou serem alternadamente usados e se oporem aos projectos dos imperialistas.

Ao mesmo tempo, o islamismo tem a sua própria dinâmica enquanto ideologia e movimento político, um impulso onde o que é percebido como o seu avanço contra a humilhação imposta do estrangeiro favorece um ainda maior avanço. A base do islamismo em termos materiais e a sua congruência e utilidade para os interesses das classes reaccionárias não deveria levar a um menosprezo da grande importância do factor ideológico na sua ascensão. Uma importante razão para o seu poder de atracão é a ausência de uma alternativa ideológica e política que seja claramente colocada à actual situação e que tenha a força potencial de se basear numa verdadeira compreensão da realidade e dos verdadeiros interesses da vasta maioria das pessoas.

Jovens tunisinos enfrentam as forças de segurança em Regueb a 9 de Janeiro de 2011
Jovens tunisinos enfrentam as forças de segurança em Regueb
a 9 de Janeiro de 2011 (Foto: Abu Omar/AP)

Dada a natureza reaccionária dos objectivos islamitas, daí resulta que eles se tornem em estudantes fieis do imperialismo quando se trata de usar o terrorismo contra as massas para fins políticos. A violência deles não é cega mas algo ainda pior – um barbarismo deliberado que visa criar o terror entre as pessoas para fins políticos, da mesma forma que os imperialistas o têm feito, do bombardeamento atómico de Hiroxima às agressões israelitas apoiadas pelos EUA aos povos de Gaza e do Líbano e à violenta agressão liderada pelos EUA que destruiu o Iraque.

Devido à sua natureza reaccionária, o islamismo tem frequentemente relações ambíguas com o imperialismo e os seus regimes locais. Na Argélia, por exemplo, a guerra civil dos anos 1990 entre os islamitas e o exército governamental teve uma dimensão de uma guerra mútua contra o povo e de chacina de intelectuais e outras pessoas que ambos os lados odiavam. Também temos visto isto na Tunísia. De facto, o actual governo tunisino baseia-se numa aliança incómoda e instável entre forças que representam o imperialismo e os seus lacaios locais tradicionais, por um lado, e o islamismo, por outro.

Depois de ter ignorado inicialmente o significado do massacre de Sousse, o Presidente Essebsi declarou: “Se estes incidentes acontecerem de novo, o estado desmoronar-se-á”. Uma razão para o alarme dele é que o partido dele no governo, o Nidaa Tunes, que responde tanto à França como aos EUA, foi eleito com base na sua promessa de destruir o processo de islamização iniciado pelo seu predecessor no governo, o Ennahda. Ao mesmo tempo, não pode (nem quer) governar sem o apoio parlamentar do Ennahda.

Mas o problema é mais profundo que o oportunismo eleitoral. Desde a independência formal da Tunísia que os governantes do país sempre usaram a religião e a identidade religiosa (o primeiro artigo da constituição define a Tunísia como país muçulmano) para disfarçar a sua lealdade ao imperialismo. Eles nunca renunciaram à legitimidade da religião e da tradição nem à sufocação religiosa daqueles que governam. Isto tem sido combinado com a repressão, incluindo contra o islamismo quando este causou problemas – quando o Ennahda se rebelou contra o governo em vez de ser um dos seus pilares.

Agora, sobretudo porque o actual governo tunisino sofre com a ilegitimidade herdada do regime de Ben Ali, cuja ignominiosa queda às mãos do povo não foi esquecida, nem mesmo por aqueles que actualmente estão politicamente inactivos, e porque tem ainda mais razões que Ben Ali para temer as massas populares, está muito pouco disposto a confrontar o islamismo, especialmente em termos ideológicos, bem como de outras formas.

Por exemplo, veja-se o assassinato de Chokri Belaid, um líder central da esquerda eleitoral tunisina e um importante símbolo para muitos intelectuais laicos e outros. O facto de ele ter defendido os islamitas no tempo do regime de Ben Ali não impediu os islamitas de o matarem. Nem o governo de Ennahda na altura nem o actual governo supostamente laico tentaram muito arduamente esclarecer este crime. Em Julho de 2015, quando 30 homens acusados de relação com o assassinato foram chamados a julgamento, a maioria deles recusou-se a comparecer em tribunal. O governo não ousou tentar eliminar este desafio ao seu sistema legal e autoridade moral em nome do Islão.

Após o massacre de Sousse, o presidente Essebsi pediu o encerramento de 80 mesquitas que disse serem geridas por salafistas, mas o fundamentalismo religioso está a florescer em todas as extensas instituições religiosas supervisionadas pelo estado, no sistema público de ensino e na cultura dominante em geral, pressionando e intimidando os muitos milhões de pessoas que não estão dispostas a viver numa sociedade governada pela lei religiosa. Por exemplo, a polícia começou a prender pessoas por posse pública de cerveja, o que não é ilegal e até agora não era incomum, com a explicação de que esse comportamento por parte de muçulmanos (e todos o tunisinos são presumidos como sendo muçulmanos) constitui “deboche público”. Os estrangeiros com nomes que soem a não-muçulmanos ficam livres das restrições religiosas que a polícia assumiu para si mesma impor.

Como é que podem uma classe dominante e uma estrutura de poder que reproduzem constantemente o islamismo, e que dependem ideológica e politicamente dele, confrontar o islamismo armado sem porem em risco a sua própria existência? Isto parece explicar o aviso de Essebsi sobre o facto de o estado poder não conseguir resistir a outro ataque islamita, não porque seria derrotado militarmente mas devido às suas próprias e explosivas contradições políticas e ideológicas.

Embora o papel do Ennahda no actual governo seja pequeno, nenhuma força política principal considera que o seu projecto islamita esteja fora de limites nem se opõem à crescente islamização da sociedade tunisina como questão de princípio em vez de gosto ou preferência de estilo de vida. Isto é particularmente surpreendente no caso de muitas pessoas da Frente Popular de “esquerda”, os autoproclamados representantes dos “patriotas” e “democratas” do país que nas últimas eleições apoiaram Essebsi em nome de se oporem ao Ennahda.

Protestos numa rua de Regueb a 9 de Janeiro de 2011
Protestos numa rua de Regueb a 9 de Janeiro de 2011
(Foto: Abu Omar/AP)

Mais recentemente, em resposta à pressão islamita, o porta-voz da Frente, o antigo “comunista” Hamma Hammami (na realidade um opositor ao comunismo revolucionário representado por Mao Tsétung na China) declarou que não tinha nenhum “problema ideológico” com os islamitas porque também ele era muçulmano. Independentemente das convicções pessoais dele (e as pessoas de “esquerda” que perpetuam e veneram o pensamento tradicional são um velho e sério problema na maioria dos países), a sociedade que qualquer tipo de islamitas deseje é totalmente inaceitável, mesmo que considerado apenas do ponto de vista do que significa para as mulheres, metade da população do mundo, já para não falar de outros aspectos da emancipação da humanidade da ignorância e da superstição, e de todas as formas de relações sociais opressoras. O facto de algumas organizações políticas, quer as trotskistas quer as falsamente autoproclamadas maoistas, poderem usar a desculpa da oposição ao imperialismo para encontrarem alguma coisa que apoie o islamismo diz muito sobre que tipo de sociedade eles estão dispostos a aceitar ou a ajudar a governar.

De uma forma não inesperada, a resposta da Frente ao massacre de Sousse foi uma capitulação de outro tipo. Face ao perigo iminente, exige o reforço do exército – cujo trabalho é defender a actual situação para o imperialismo. É muito típico ver pessoas de “esquerda” que nunca consideraram a forma de fazer uma verdadeira revolução a saltarem de um lado para o outro, do seguidismo em relação ao islamismo a se atirarem para os braços dos imperialistas.

As forças arquitectónicas que começaram a sair à superfície em Dezembro de 2010 ainda estão em acção. Essa revolta envolveu um vasto sector do povo, foi impulsionada pelos jovens do interior e retransmitida pelos estudantes das cidades litorais e por fim da capital. Pessoas de todas as classes sociais participaram nesse movimento, incluindo elementos da burguesia excluídos do círculo interno favorecido por Ben Ali ou aqueles que sentiam que abandoná-lo era a melhor alternativa disponível a uma sublevação prolongada e em cascata. Essa unidade do “povo” rapidamente atingiu os limites dos interesses de classes fundamentalmente antagónicas em presença. Os islamitas, enquanto tal, desempenharam um papel muito pequeno na revolta. Mas os observadores internos e externos que felicitaram o povo tunisino pela “moderação” do seu resultado, que eles atribuíram a um suposto carácter tunisino, avaliaram mal a profundidade da crise e o que era necessário para a resolver.

O que se tornou ainda mais claro depois do ataque de Sousse não foi a importação de conflitos externos para a sociedade tunisina mas uma expressão particular, localizada e explosiva das contradições em acção à escala mundial. Não haveria o islamismo moderno sem as alterações económicas e sociais provocadas nos países predominantemente islâmicos pelos desenvolvimentos do imperialismo. Além disso, as acções criminosas dos EUA e dos seus aliados nos últimos anos (na Palestina, no Iraque, etc.) são inseparáveis deste desenvolvimento. Sem tudo isto, o islamismo continuaria a ser uma corrente minoritária com pouco futuro.

Em vez disso, tornou-se numa “expressão perversa”, como disse Bob Avakian, da contradição fundamental em acção no mundo de hoje: entre a socialização da produção que está levar o globo inteiro para processos produtivos e a transformar as relações económicas, e a apropriação privada – e portanto exploradora e movida pela competição – da mais-valia assim produzida. É isto que tem levado à acumulação de capital nas mãos dos regentes capitalistas monopolistas dos países imperialistas e à horrenda e insuportável intensificação das desigualdades no mundo e a um desenvolvimento distorcido.

É uma “expressão perversa” porque, em vez de ser uma solução, é um obstáculo à resolução desta contradição através do caminho para um mundo onde a abolição da propriedade privada dos meios necessários à vida, e de todas as relações sociais e ideias baseadas nisso, permita que todas as pessoas trabalhem para o bem comum, ao mesmo tempo que florescem integralmente como indivíduos. O imperialismo e o islamismo podem ser chamados de “os dois obsoletos” porque nenhum deles representa o que o mundo poderia ser se as enormes forças produtivas desenvolvidas pela humanidade, e de uma forma mais fundamental as pessoas, pudessem ser libertadas e capacitadas a transformar o mundo e a si próprias.

A Tunísia não consegue ser um abrigo das tempestades do mundo. Continua a ser um país cujas contradições não podem ser resolvidas por outra coisa que não uma revolução total – o surgimento de uma bandeira, um programa, um partido e um vasto movimento revolucionário cuja meta seja derrotar as forças do velho estado e estabelecer um novo tipo de poder político que possa libertar as pessoas no fundo da sociedade, juntamente com os estratos médios e intelectuais e outros estratos, para começar a transformar a sociedade de uma forma mais radical e libertadora do que o islamismo ou o imperialismo poderiam sequer pretender oferecer.

De outra forma, o conflito entre os “dois obsoletos” irá continuar a expandir-se e a espalhar a morte e a destruição, com as massas populares a serem vítimas iludidas em vez de protagonistas conscientes.

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