Do jornal Diário de Notícias, Sexta Feira, 31 de Maio de 2002

Direitos Humanos: uma ameaça americana dos anos 70

Membro dos Black Panther conta como os EUA o mantiveram 29 anos preso numa solitária por um crime que não cometeu

Por António Rodrigues

Robert King
Robert King

Robert King Wilkerson passou 29 anos numa solitária da prisão de Angola, no Louisiana, condenado por um crime que não cometeu, porque era membro dos Black Panther, o grupo de defesa dos direitos dos negros americanos que J. Edgar Hoover, o então todo-poderoso chefe do FBI, tinha declarado “como a principal ameaça interna dos Estados Unidos”.

Depois dos primeiros ataques, em que matou vários militantes dos Black Panther, “o FBI continuou uma campanha para intimidar, prender e eliminar por todos os meios necessários qualquer membro” do grupo. A história é-nos contada pelo próprio King que veio a Portugal explicar como na democrática América se atropelam os direitos humanos.

Libertado em Fevereiro de 2001, King continua a ser o único dos denominados “3 de Angola” que abandonou a Penitenciária Estadual do Louisiana. Sorte que os seus companheiros, Albert Woodfox e Herman Wallace, ainda não tiveram. Ambos encerrados nas suas pequenas celas 23 horas por dia, de onde só saem algemados e agrilhoados.

A ideologia de autodefesa que esteve na fundação do Black Panther Party implicava uma mudança radical em relação aos movimentos cívicos de defesa dos negros americanos em que o pacifismo era a base absoluta. Os Black Panther assumiram o orgulho de ser negros sem pedir desculpa pelo facto. Com ensinamentos retirados de Marx, Lenine e Mao Tsétung, consideravam fundamental que os negros respondessem com violência à opressão e discriminação de que eram alvo.

Para a América branca do final dos anos 60, a braços com o problema do Vietname e das manifestações de protesto diárias nas ruas, com as universidades tomadas pela consciência política, os Black Panther surgiam como uma ameaça poderosa. Agressivos, radicais e ideologicamente preparados estavam longe de ser um grupo de meninos de coro e mostravam-se capazes de criar uma consciência política radical entre os negros americanos.

“Sem qualquer dúvida The Black Panther Party era um movimento revolucionário. Visava especificamente a população negra, mas geralmente abarcava toda a gente oprimida. Queria levar o povo a reconhecer a opressão a que estava sujeito e a identificar os responsáveis dessa opressão. Para depois a eliminar usando qualquer meio necessário”, diz Robert King.

Embora falassem em “autodefesa”, os Black Panther “incluíam, sem ser esse o objectivo, a protecção contra ataques racistas quer da polícia, quer do Ku Klux Klan, de outros racistas brancos ou de qualquer cidadão branco”. Organizavam programas de pequeno-almoço grátis ao mesmo tempo que classes de política, ensinavam cuidados de saúde e criavam centros clínicos de atendimento gratuito. “Pretendiam que as pessoas da comunidade não só se dessem conta do que acontecia, mas também torná-las independentes de um Governo paternalista”, diz King.

“Juntei-me aos Black Panther na prisão. Fui preso em 1970 por um crime que não cometi, mas que tinha ocorrido num raio de 50 milhas da minha residência. Era comum a polícia considerar suspeito todo aquele que nas redondezas de um crime tinha cadastro. Ofereceram-me uma sentença de 15 anos de prisão; se me tivessem oferecido uma de dois ou três teria aceite. O normal, nessa altura, era que a polícia te mantivesse preso por 15 meses ou dois anos sem qualquer acusação. Fui a julgamento e mesmo sem que a testemunha me identificasse como autor do crime e fosse induzida a fazê-lo no tribunal, condenaram-me a 35 anos de prisão”. A pena máxima por assalto à mão armada na altura era de 60 anos - hoje é de nove.

A injustiça transformou-o. Robert King, que “era um rebelde”, como o próprio repete muitas vezes, sentiu-se “escravo” e “furioso”. “O meu instinto de sobrevivência entrou em acção e fugi”. Apanharam-no, mais aos 25 presos que levara consigo, chamaram-lhe “fuga agravada” e acrescentaram-lhe oito anos à sua pena - 43 anos numa prisão de New Orleans onde estavam vários membros dos Black Panther.

“E foi assim que fui iniciado”, em Setembro de 1970. E, em Novembro de 1971, quando as autoridades perceberam que tanto ele como Woodfox e Wallace estavam a contribuir para mudar a mentalidade dos presos, foram transferidos para Angola, no Louisiana.

 


Inocente na solitária da prisão de Angola

King é o único dos “3 de Angola” libertado. Os outros continuam fechados 23 horas por dia na cela

Por A. R.

Cerca de dois terços dos prisioneiros que entram em Angola morrem lá dentro. Na Penitenciária Estadual do Louisiana, a maior dos EUA, a desumanidade é prática. “Entrar aí era regredir cem anos. Os guardas eram as ovelhas negras do sistema prisional, os dias de trabalho estendiam-se por 17, 18 horas. Naquela altura, Angola entrava nas estatísticas como a prisão mais sangrenta do país: detidos matavam detidos, guardas espancavam e matavam presos, tudo com a benção de quem dirigia a penitenciária.”

Os novos prisioneiros trouxeram a consciência política para Angola. Conseguiram convencer os presos, brancos e negros, de que matarem-se entre si era precisamente o pretendido por quem mandava. “A maior parte das mortes parou, o número de violações diminuiu, os espancamentos desapareceram”.

Mas os administradores viram nisto “uma ameaça” e em Abril de 1972 um jovem detido foi encontrado morto, dando como resultado “espancamentos massivos, castigos e aumento da intimidação”. A suspeita do crime recaiu sobre Albert Woodfox e Herman Wallace, membros dos Black Panther. Foram parar à solitária com uma acusação forjada, onde permanecem.

Robert King entrou na solitária no ano seguinte, pela participação no mesmo crime, quando tinha estado seis meses em New Orleans e acabara de voltar à penitenciária de Lousiana. “O mesmo que J. Edgar Hoover estava a fazer na rua contra os Black Panther era cumprido pelas autoridades dentro das prisões”.

Como seria difícil convencer alguém que King poderia ter participado num crime quando estava a 150 milhas do local, em 1973, seria acusado da morte de um preso, apunhalado numa rixa. Do grupo de 11 indiciados, só ficariam dois: o autor e King.

Ambos foram apresentados a julgamento algemados, agrilhoados e amordaçados. “Nem sequer nos deram a possibilidade de defesa. Na segunda vez que fui a tribunal por esse crime, o próprio autor confessou. Mesmo assim, condenaram-me a prisão perpétua. Em 1987, uma das testemunhas, veio afirmar que tinha sido coagida a acusar-me. Apesar do juiz crer na minha inocência, não havia inconstitucionalidade e, portanto, a sentença manteve-se. É assim nos EUA: pode-se ser moralmente inocente e legalmente culpado”.

Alimentar-se da odiada lei para poder fugir

Condenado a prisão perpétua na solitária aos 25 anos, Robert King teve de arranjar forças para sobreviver. “Houve duas conversões na minha vida: a religiosa, porque a determinada altura a necessitas; e a de consciência. Quando percebi como o sistema tratava os negros, senti-me um escravo e o único direito que tem o escravo é o de revoltar-se”. Para King “um espírito livre nunca pode ser preso”, mas diz que sofreu. “E mesmo odiando a Lei por ser hipócrita, embrenhei-me em entendê-la, como forma de alimentar a fuga, por fisicamente estar impedido de o fazer”.

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