Reproduzido do jornal Revolution/Revolución, voz do Partido Comunista Revolucionário, EUA (em inglês no n.º 9, de 24 de Julho de 2005, revcom.us/a/009/martyr-turkey-remembering-rosa.htm, e em castelhano no n.º 11, de 14 de Agosto de 2005, revcom.us/a/011/martir-revolucionaria-turquia-s.htm).

Mártir revolucionária da Turquia:

Recordações da camarada Rosa

Por Li Onesto

Deixem-me falar-vos da Rosa.

Berna Unsal (Camarada Rosa)
Berna Unsal (Camarada Rosa)

Quando ouvi as terríveis notícias sobre o massacre governamental de 17 líderes do Partido Comunista Maoista da Turquia e do Curdistão do Norte (MKP), pensei imediatamente nos muitos camaradas da Turquia com quem me encontrei durante o Outono de 2002, quando percorri a Europa para falar sobre a Guerra Popular no Nepal. Muitos tinham sido obrigados a encontrar asilo político e alguns deles tinham saído há pouco de greves de fome na prisão. O TKP(ML), o partido precursor do MKP, ajudou a organizar essa minha viagem e em muitas cidades a maior parte da audiência era constituída por revolucionários da Turquia.

Li as notícias sobre como, a 16 de Junho, mais de 1000 soldados do exército turco cercaram e depois massacraram o grupo de camaradas do MKP que ia a caminho do segundo congresso do seu partido. Vi na Internet os vídeos do gigantesco funeral de massas em Istambul – milhares de pessoas enchiam as ruas, os caixões erguiam-se sobre um mar de bandeiras vermelhas. A família, os amigos e os camaradas rodeavam os caixões, com as fotografias dos mártires em faixas, em quadros, em cartazes. Punhos no ar apareciam entre grinaldas de flores. A dor insuportável e a intensa raiva da multidão emergiam do ecrã e atingiam-me nas vísceras e as lágrimas emergiam à medida que eu pensava em como isso era uma imensa perda para a luta revolucionária na Turquia e para todo o movimento comunista internacional.

Passadas as imagens do funeral, chegaram as fotografias dos mártires. Fiquei gelada durante alguns segundos e senti um aperto no coração quando vi uma fotografia de Berna Unsal – que eu conheci como “Rosa”. Ela foi a principal organizadora da minha visita à Europa e durante três semanas tínhamos trabalhado em conjunto e conseguido conhecermo-nos uma à outra. Não só reconheci imediatamente o seu rosto, mas também o seu espírito totalmente desafiador e corajoso que sobressaía do seu retrato.

O tempo que passei a trabalhar e a falar com a Berna e outros revolucionários da Turquia fizeram-me ter uma mais profunda compreensão e dar um maior valor à heróica luta que levam a cabo contra o regime fascista da Turquia e aprofundaram o meu sentimento do internacionalismo proletário.

*****

Conheci a Rosa na Alemanha, onde ela, em conjunto com o Movimento de Resistência Popular Mundial, tinha estado a organizar a minha visita. Ela impressionou-me imediatamente como uma revolucionária muito séria e dedicada que parecia ter uma energia inesgotável. Gostava muito de gracejar e nunca se sentia demasiado cansada para uma discussão política, com a ajuda de chávenas de café forte e muitos cigarros. Rapidamente descobri que partilhávamos uma profunda paixão por chocolate, o que viria a revelar-se ser crucial na nossa apertada agenda. Mas, acima de tudo, havia uma determinação e uma seriedade que sobressaíam, mesmo quando a Rosa também estava calma ou brincalhona. Ela era uma comunista dedicada, uma jornalista revolucionária, uma intelectual totalmente fluente em inglês. Conseguia falar durante horas sobre as grandes questões que o movimento comunista internacional enfrenta. E estava profundamente empenhada na aguda luta sobre a linha política e ideológica dentro do movimento revolucionário na Turquia.

Estávamos a meio da nossa volta pela Europa quando soube que a Rosa era uma das heroínas das greves de fome de 2000-2001 nas prisões da Turquia. Foi a seguir a uma sessão em Antuérpia, na Bélgica, quando estávamos ambas completamente empanturradas com uma enorme ceia tardia cozinhada pelos camaradas nepaleses que tinham organizado a sessão. Estávamos as duas exaustas mas nenhuma de nós parecia querer ir dormir. De repente, a Rosa começou a contar-me como quase tinha morrido na prisão.

Quando conheci a Rosa, era visível que ela tinha problemas de saúde. Ela era um poço de energia e era ela que me animava a mim e aos outros quando andávamos dias seguidos a dormir pouco. Mas também reparei que ela tinha terríveis dores de cabeça e que se cansava facilmente. Eu já tinha conhecido vários revolucionários da Turquia que tinham estado perto da morte nas greves de fome na prisão. Lembro-me de um casal de jovens – os dois tinham estado em coma e perdido temporariamente a memória devido à desnutrição extrema. A princípio, nem se lembravam sequer que eram casados um com o outro. Depois, lentamente as suas memórias reapareceram e tiveram um novo bebé. Mas ainda sofriam de problemas de saúde sérios e de longa duração. Agora percebia por que, por vezes, a Rosa ficava repentinamente doente e exausta.

A Rosa disse-me que quando foi presa era estudante universitária. O governo fascista desencadeara uma brutal guerra contra a guerrilha maoista no interior do país e uma intensa repressão nas cidades. As suas leis “antiterroristas” permitiam ao estado manter as pessoas encarceradas durante muitos anos, simplesmente por terem panfletos revolucionários ou por terem sido acusadas de pertencer a uma das muitas organizações proibidas.

A 20 de Outubro de 2000, várias centenas de presos políticos em diversas prisões começaram uma greve de fome para protestar contra as condições desumanas e as tentativas do governo para os isolar em celas individuais. Familiares e outros apoiantes no exterior das prisões em diversas cidades também se juntaram à greve de fome. E, a 19 de Novembro de 2000, essa greve de fome foi convertida numa Greve até à Morte.

A Rosa, que na altura tinha 31 anos, estava na prisão feminina de Canakkale e foi uma das pessoas que passou da greve de fome para a Greve até à Morte. A Rosa explicou-me que eles sabiam que sem comida e sem água não conseguiriam sobreviver muito tempo. Por isso, propositada e muito cientificamente, eles prolongaram o jejum ingerindo água e algumas vitaminas. Dessa forma, conseguiram manter-se vivos durante meses. Mas, ao fim de mais de 200 dias, as pessoas começaram a entrar em coma e a morrer. Isso desencadeou uma fúria e protestos internacionais e despertou a atenção de grupos como a Amnistia Internacional.

A Rosa disse-me que pouco antes de perder a consciência e entrar em coma, as autoridades tinham autorizado a sua mãe a vê-la. O governo estava a tentar desesperadamente encontrar uma saída para a situação, sem ceder às exigências dos presos. Eles não se preocupavam com o facto de as pessoas estarem a morrer. Mas não queriam um incidente internacional – numa altura em que o governo turco estava a desenvolver esforços para entrar na União Europeia. Por isso, tentaram fazer com que os familiares dos presos em Greve até à Morte os autorizassem a alimentá-los à força.

A Rosa disse à mãe: “Se autorizares as autoridades a alimentarem-me à força quando eu estiver em coma, nunca mais te falarei.” E a sua mãe prometeu desafiar o inimigo. A Rosa entrou em coma e esteve à beira da morte. Depois de entrar em coma, as autoridades alimentaram-na à força e reavivaram-na. O governo turco foi obrigado a libertar a Rosa e os outros grevistas de fome que tinham estado à beira da morte; e autorizaram-nos a exilarem-se. A Rosa obteve asilo político na Alemanha.

A Rosa descreveu-me a noite em que os presos políticos foram barbaramente atacados em 20 prisões. Grupos especiais usaram escavadoras para esburacar as paredes das prisões, para poderem entrar de repente e disparar sem aviso. A Rosa descreveu a cena caótica em que a polícia e as forças do exército começaram a atacá-las. Havia fumo e tiros, mulheres a correr por todo o lado à medida que eram bombardeadas com granadas de fumo, granadas sonoras, gás de nervos e gás de pimenta. As mulheres gritavam palavras de ordem e insultos enquanto se defendiam heroicamente e recusavam render-se. A Rosa ficou ainda mais emocionada e indignada quando me contou como a polícia tinha despejado gasolina sobre algumas prisioneiras e as tinha incendiado. Depois mentiram à imprensa, alegando que as mulheres o tinham feito a si próprias: “Isso era mentira, uma grande mentira” – disse-me a Rosa, várias vezes.

Lembro-me de a ouvir falar sobre um jovem revolucionário da Turquia que tinha perdido metade dos seus dois pés. Ele fizera parte de um grupo de guerrilha que ficara isolado no inverno – alguns dos seus camaradas morreram e ele sofreu uma ulceração extrema. Tal como a Rosa e muitos outros revolucionários da Turquia que conheci, ele sofria de problemas de saúde terríveis e permanentes. Mas esses graves problemas não pareciam fazer atenuar a sua determinação revolucionária e o seu sentido de humor. Um dia a Rosa e outros camaradas da Turquia estavam a rir-se e a gracejar em turco e eu interrompi-os, pedindo-lhes para me contarem a piada. Rosa disse-me que todos eles tinham sérios problemas, doenças ou náuseas, devido à luta ou à passagem pela prisão. Disse-me: “Brincamos sobre como um de nós ‘não tem pés’; outro ‘não tem mãos’; outro ‘não vê’, etc. e que, por isso, quando temos de cumprir uma tarefa, temos realmente de trabalhar todos em conjunto!”

*****

Aprendi muito com a Rosa e ficarei para sempre inspirada pela sua vida e morte heróicas. Quando penso nela, lembro-me de como foi a minha visita, viajando através dos Alpes, inalando a paisagem empolgante, percorrendo estradas remotas, pondo as nossas cabeças fora da janela do carro, gritando e apontando enquanto erguíamos os nossos pescoços para olhar tão para cima – para onde os cumes cobertos de neve sobressaíam e desafiavam as nuvens e os ventos mais fortes.

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