Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 19 de Setembro de 2011, aworldtowinns.co.uk
Índia: Sobre a campanha anti-corrupção de Anna Hazare
No início da Primavera, o activista veterano de 74 anos Anna Hazare iniciou uma greve de fome num parque de Nova Deli para exigir ao governo indiano que estabeleça um Lokpal, um gabinete independente com um provedor anti-corrupção, em todos os estados da Índia. Tomando Gandhi como modelo, as greves de fome, as marchas pacíficas e outras formas de acção não violenta de Hazare contra a corrupção governamental e a favor de outras reformas tiveram início nos anos 90.
Os responsáveis oficiais levaram Hazare e a sua equipa de proeminentes advogados e activistas a ajudar a definir a lei dos Lokpal. Devido à interrupção das negociações em Junho, Hazare iniciou uma nova greve de fome em finais de Agosto. Foi preso e depois libertado quando aceitou a ultrajante exigência governamental de que limitasse a greve a 15 dias. Ao 13º dia de greve, com centenas de milhares de pessoas a apoiar Hazare, o impasse acabou. O Parlamento indiano aprovou a criação de agências anti-corrupção de nível estadual em toda a Índia.
Nos últimos meses, muitos indianos, sobretudo entre as classes médias, fartos da omnipresença da corrupção nas suas vidas diárias, combinada com a falta de estradas, a deficiente educação, a inflação e um cada vez maior fosso entre ricos e pobres, e profundamente desiludidos com o governo, saíram a apoiar Hazare.
A atracção por um movimento contra a corrupção não é surpreendente. Por exemplo, no último ano foram assassinados três médicos no estado mais populoso da Índia, o Uttar Pradesh. Um após outro, cada um deles tinha sido responsável pela distribuição de dois mil milhões de dólares de fundos governamentais que deveriam ser usados para prestar cuidados de saúde às massas empobrecidas. O terceiro médico foi morto na prisão, onde tinha sido encarcerado por suspeita da morte dos dois primeiros médicos. Segundo foi noticiado, ele estava prestes a indicar os políticos seniores por trás do roubo desses dinheiros.
O Partido do governo, o Congresso, recentemente apanhado em vários escândalos de corrupção, ficou perturbado com o apoio popular a Hazare nas ruas e sem perspectivas sobre como reagir.
Hazare causa desconfiança entre os líderes comunitários muçulmanos e muitos deles vêem o núcleo do movimento dele como estando ligado a grupos fascistas hindus de direita que fomentam sentimentos anti-muçulmanos e são responsáveis por violência física contra os muçulmanos. Algumas pessoas vêem o núcleo do movimento anti-corrupção como sendo de direita e defensor da supremacia de casta. Tem sido denunciado por grupos dálitas (anteriormente chamados “intocáveis”). Algumas pessoas pensam que a iniciativa Lokpal resultará numa agência de super-polícias com extensos poderes que irão invadir a privacidade. Elas vêem os activistas à volta de Hazare como uma versão indiana do movimento fascista Tea Party nos EUA e salientam que eles estão bastante confortáveis com a intensificação da Operação Caçada Verde, uma campanha governamental de contra-insurreição. Outras alegam que alguns grupos importantes do sector privado que são os principais envolvidos e beneficiários da corrupção – as empresas privadas, as grandes ONGs e os meios de comunicação social que trabalham de mãos dadas com o governo e as grandes empresas – ficarão isentas do escrutínio dos Lokpal.
Reproduzimos aqui um artigo de Anand Swaroop Verma intitulado originalmente “Uma nova arma no arsenal do sistema” da edição de Agosto-Setembro de 2011 do Samkaleen Teesri Duniya, que dá uma outra perspectiva sobre o papel desempenhado por Anna Hazare na política indiana. Os acréscimos entre parênteses são da nossa responsabilidade e o artigo foi ligeiramente editado para os leitores não indianos.
Uma nova arma no arsenal do sistema
Por Anand Swaroop Verma
Todas as pessoas que acreditaram e também propagaram a ideia que o sistema actual, que se baseia na exploração capitalista e na pilhagem imperialista, está podre até ao seu âmago e que não há nenhuma outra forma de melhoria para a humanidade a não ser derrubá-lo e desmantelá-lo, podem descobrir, para seu desalento, que Anna Hazare tem mostrado, com algum elemento de sucesso, que o próprio sistema actual pode salvar as pessoas comuns do empobrecimento caso sejam feitas algumas reformas. Anna tem conseguido pôr um travão a todas as pessoas que estavam a ficar cada vez mais desiludidas com a natureza antipopular do sistema. Anna forneceu o necessário oxigénio às classes dominantes e a ironia da situação é que todas essas pessoas vítimas da exploração do sistema estão a ser elas próprias portadoras dessa visão situacionista. É uma tragédia do nosso tempo que elas se estejam a envolver de todo o coração na salvação do próprio sistema que faz da vida delas um inferno.
As classes dominantes do país, que estavam a ficar apreensivas com a crescente vaga do movimento popular em diferentes partes do país, estão agora a sentir-se aliviadas com a intervenção de Anna. É bastante natural que as massas populares em geral fiquem confundidas quando testemunham crescentes disputas no interior de diferentes sectores das classes dominantes sobre quem deve manter as rédeas do poder. Mas no que diz respeito a apoiarem a honra do salvador do sistema, há uma unanimidade perfeita. A bonomia entre o partido governamental e a principal oposição quanto a este ponto ficou totalmente demonstrada na sessão especial do Parlamento realizada a 27 de Agosto, quando Pranab Mukherjee do Partido do Congresso e Sushma Swaraj do BJP [um partido chauvinista hindu, principal rival do Congresso], se ecoaram um ao outro e as suas reverberações foram facilmente sentidas no parque Ramlila [um parque público em Nova Deli]. Retirando as necessárias lições de um discurso no Parlamento no dia anterior, Anna não só evocou o Dr. Ambedkar [um respeitado académico revolucionário e advogado dálita que lutou arduamente contra o sistema de castas] quando terminou o jejum no dia seguinte, como também escolheu as crianças dálitas e das comunidades muçulmanas para lhes oferecer sumo.
O movimento de treze dias liderado por Anna Hazare será relembrado como um evento histórico e sem precedentes nos anais da história da Índia, não apenas porque lakhs [um lakh são 100 000] de pessoas participaram nele e sete canais o divulgaram dia e noite, mas antes pelo longo impacto temporal que vai ter na nossa sociedade. É preciso lembrar que a força de qualquer movimento ou o seu impacto na sociedade não pode ser medido apenas pela participação nele de lakhs de pessoas. Se esse fosse o único critério, então a Índia já testemunhou nos últimos 30-35 anos alguns movimentos que viram milhões de pessoas a participar neles. O sucesso ou o fracasso de qualquer movimento em fazer avançar ou recuar a sociedade depende do simples facto de quem o está a liderar e da “visão” dele. Até hoje, já testemunhámos movimentos anti-corrupção que foram usados para chegar aos pedestais do poder, explorando inteiramente a ira e as queixas das pessoas. O facto de as pessoas não verem esse perigo é um traço característico da personalidade de Anna. Elas sabem que esse homem tipo-santo de Ralegaon Sidhi não anseia pelo poder.
O movimento de Anna é qualitativamente diferente de anteriores movimentos ao agir como força de polarização entre todas as formações que lutam por uma transformação social mais vasta. As forças da esquerda revolucionária do país não estão nem em posição de mobilizar as pessoas de uma forma semelhante, nem lhes é possível manter o impulso durante muito tempo como Anna fez. Uma explicação simples é que o próprio sistema decide a sua abordagem em relação a qualquer movimento com base no seu carácter fundamental. A comunicação social também decide a sua abordagem com considerações semelhantes. Será que teria sido possível aos jornalistas e operadores de imagem de qualquer canal cobrirem a agitação de Anna sem o consentimento dos seus donos? Será que os patrões das grandes empresas teriam ajudado qualquer movimento semelhante que visasse atacar as suas raízes, da forma como eles torceram por Anna? Um relatório do Ministério indiano do Interior diz que as ONGs [Organizações Não Governamentais] deste país receberam 40,000 crores [um crore são 10 milhões] nos últimos três anos – essas mesmas ONGs cujos operacionais têm formado o núcleo da equipa de Anna num momento ou noutro. Todas essas pessoas estão a beneficiar deste mesmo sistema que está a apodrecer e à espera do seu fim. As pessoas oprimidas dos diferentes pontos do país lutam por lhe dar um enterro decente. Hoje, somos testemunhas de um salvador do sistema que pode ter 74 anos mas que, para os guardiões deste sistema precisa de viver mais tempo nesta era sem líderes.
Será necessário salientar repetidamente que a fonte original da corrupção são as políticas neoliberais do governo? Essas políticas fizeram com que algumas pessoas se tornassem bilionários e em simultâneo marginalizaram em grande número as massas trabalhadoras. Essas políticas abriram possibilidades ilimitadas ao sector empresarial, as quais levaram a um deslocamento sem precedentes das pessoas das poucas terras que possuíam, das fontes de água que usavam e das florestas que habitavam e levaram à sua eliminação nos casos em que resistiram. Essas políticas ajudaram a comunicação social a ganhar força e a tornar-se num poderoso interveniente nas fileiras do poder. Todas essas pessoas que estão a beneficiar dessas políticas nunca desejarão a sua suspensão.
De facto, o crescente descontentamento e agitação contra essas políticas, testemunhado em diferentes pontos do país, tornou-se numa fonte de preocupação entre as classes dominantes. Nesta situação, se aparece um indivíduo que tem uma vida imaculada, que se manteve longe da política de poder e que está a liderar um movimento que não visa atacar as raízes do problema, então, é natural que o sistema o considere nada menos que um salvador. A prisão de Anna, a libertação dele, as divergências em relação ao local do jejum e questões semelhantes relacionadas com isso, surgiram por causa de conflitos entre as classes dominantes. E não estão a ter um impacto nas questões de fundo.
Está a ser dito que o movimento de Anna ajudou as pessoas a lembrarem-se do movimento Satyagrah liderado por Gandhi durante a luta pela independência, que apenas o viram em fotografias ou filmes. Nunca devemos esquecer que existiu outra corrente durante os tempos de Gandhi que se opôs à filosofia dele, liderada por Bhagat Singh [um dos mais influentes combatentes pela independência, enforcado pelos britânicos, um marxista que se tornou num símbolo para a juventude revolucionária da Índia]. Quanto às ideias, Bhagat Singh estava muito avançado em relação a Gandhi. Bhagat Singh profetizou em 1928-30 que se obtivéssemos a independência sob a liderança de Gandhi, então os britânicos brancos seriam substituídos por britanistas com a nossa própria pele, dado que não iria haver nenhuma transformação do sistema. Cerca de 80 anos após a profecia de Bhagat Singh, Anna Hazare também teve de repetir o mesmo no parque Ramlila, e Hazare, tal como Gandhi, recebeu do sistema o direito a “espaço” na comunicação social. É nossa experiência que sempre que as forças empenhadas numa transformação social fundamental levantam as suas cabeças, há tentativas de as silenciar. Se alguém tenta salvar o sistema que está no seu leito de morte, então o sistema está pronto a proporcionar-lhe todo o conforto.
O discurso de Anna Hazare em Agosto no parque Ramlila depois de ter interrompido o seu jejum tornou claro o futuro programa dele. Tal como um político experiente, ele falou em evocar todas as questões que criem uma impressão externa de uma luta por uma mudança do sistema, mas todas essas lutas culminarão no fortalecimento do sistema, tornando-o mais sustentável, mais repressivo e mais forte. O movimento de Anna não terminou a 28 de Agosto, antes começou nesse dia. Com a deslocação dele do parque Ramlila para o hospital de Gurgaon, em que o Estado forneceu segurança para a ambulância dele e os repórteres estiveram ocupados a fornecer uma cobertura televisiva ao vivo, pudemos sentir a forma das coisas que estão para vir. Esta é uma nova arma no arsenal do sistema que será um grande desafio para todas as pessoas que estão envolvidas na luta pela transformação revolucionária do sistema.