Festival 20 de Junho em Setúbal:
Bairro da Bela Vista evoca memória de Tony
Por B. Lisboa

No passado dia 20 de Junho passaram dois anos desde o assassinato do jovem Tony às mãos da polícia. Essa morte foi muito sentida no bairro onde aconteceu e onde Tony vivia, a Bela Vista, em Setúbal. O bairro inteiro então mostrou corajosamente, nessa altura, a sua revolta contra a actuação assassina da polícia, cercando a esquadra local e invadindo as ruas do bairro. A repressão policial fez-se então sentir, tendo o bairro sido cercado e invadido pela polícia de choque e os atiradores especiais tomado conta dos telhados, ameaçando os habitantes da Bela Vista. Os habitantes do bairro, em particular os jovens, vieram para a rua, numa grande manifestação de protesto massivo contra a actuação policial. Uma importante demonstração de solidariedade do bairro ocorreu também alguns dias depois, por ocasião do funeral do jovem cabo-verdiano.
Dois anos decorridos, a situação no bairro tem-se agravado, com a intensificação da intimidação policial, sobretudo àqueles que poderiam servir de testemunhas da actuação repressiva da polícia. O recente julgamento (ver o comunicado do CMA-J) apenas trouxe como resultado a absolvição do polícia que assassinou Tony e a completa lavagem da imagem da polícia, ao mesmo tempo que a memória de Tony era achincalhada pelos juízes, descrevendo-o como um violento marginal que mereceu a sua própria morte.
Num bairro com imensos problemas sociais, a auto-estima dos habitantes é reduzida e para tudo isso contribui a envolvente institucional. As soluções preconizadas pelas autoridades são apenas o assistencialismo, esquecendo todo o género de infra-estruturas. Isso faz com que os seus habitantes ficam dependentes da ajuda externa e dos subsídios, não desenvolvendo as suas próprias capacidades e a sua auto-organização, não tomando a resolução dos seus problemas nas suas próprias mãos.

Mesmo as próprias associações locais (que gostam de se intitular “organizações não-governamentais” – ONGs – para esconder a sua dependência dos fundos governamentais) não promovem iniciativas que mobilizem a poderosa força colectiva da comunidade. Apenas quando existirem iniciativas baseadas na auto-suficiência, os habitantes terão consciência da sua força e poderão começar a dar passos para uma verdadeira emancipação face ao Estado e a este sistema de exploração do homem pelo homem em que todos vivemos.
Foi neste ambiente que alguns grupos decidiram marcar a passagem de mais um aniversário da morte de Tony, o que já se vai tornando uma tradição que importa não perder. O centro de Cultura Africana (CCA, sediado no bairro e ao qual Tony pertencia), o Colectivo Mumia Abu-Jamal (CMA-J), a Casa Ocupada de Setúbal (COSA), a Galeria Zé dos Bois (ZDB) e o SOS Racismo foram algumas das organizações que deram corpo à iniciativa, a exemplo do 1º festival, que ocorreu o ano passado.

Nos dias anteriores a 20 de Junho, várias iniciativas tiveram lugar no bairro. Mas, o ponto alto viria a ser o domingo dia 20. Durante o dia muitas dezenas de pessoas, incluindo alguns artistas que se ofereceram para participar nesta iniciativa, restauraram e melhoraram a pintura que tinha sido feita durante o festival do ano passado, e fizeram novas pinturas. Um ambiente de grande festa e solidariedade foi vivido por todos, jovens do bairro e visitantes de Setúbal e de Lisboa, apesar da pouca divulgação que fora feita.
À noite, proporcionou-se uma festa musical, que teve Jorginho (do grupo TWA) como MC (mestre de cerimónias). Actuando e apelando à participação de outros presentes, a música foi sobretudo rap, hip-hop e africana, e contou com a participação activa de todos os presentes, alguns dos quais subiram ao palco para cantar. Algumas curtas intervenções deram o tom político à festa, salientando-se a presença e a mensagem que deixou a mãe de Tony, D. Gregória.
Apesar do ambiente de grande festa, o festival foi ensombrado por mais uma notícia da morte de outro jovem africano, no bairro 6 de Maio, na Amadora (arredores de Lisboa), depois de espancado pela polícia. A impunidade policial continua à solta, e mostra que o nosso papel de denúncia e luta deve ser reforçado.
23 de Junho de 2004