Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 24 de Fevereiro de 2014, aworldtowinns.co.uk
Ucrânia: Os lobos andam à solta
“A Ucrânia está agora numa condição de pré-ruptura e a deslizar para o abismo”, avisou Alexander Turchynov imediatamente após se ter tornado no porta-voz do parlamento ucraniano e no presidente interino do país. A Ucrânia precisa de 35 mil milhões de dólares [25 mil milhões de euros – NT] durante os próximos dois anos e de um empréstimo de emergência nas próximas duas semanas só para pagar aos seus credores no Leste e no Ocidente. Estes credores estão empenhados num esforço mútuo de guerra que nenhum dos lados tem condições para perder, e talvez não tenham condições para ganhar. Mas está em jogo muito mais que dinheiro.
O partido governamental na Ucrânia e a maioria dos chamados “oligarcas” abandonaram repentinamente o Presidente Victor Yanukovych e trouxeram Turchynov, um aliado de Yulia Tymoshenko, a menina querida da União Europeia [UE], e sobretudo da Alemanha. Tendo-se tornado escandalosamente rica da noite para o dia quando as empresas estatais do país foram dissolvidas, ela foi um dos primeiros “oligarcas” da Ucrânia e é uma adequada encarnação dessa classe, que pode ser mais fraca e menos perita a esconder a sua natureza gananciosa que as suas congéneres ocidentais, mas não é menos capitalista monopolista. Tal como o agora deposto Yanukovych e os parceiros dele, nenhum dos seus membros é leal aos “valores democráticos” nem sequer a nenhuma potência estrangeira específica, mas apenas às necessidades da sua parcela de capital para se expandirem sem limites na letal competição com outras classes capitalistas.
Esta não foi a primeira vez que os EUA e a Europa tentaram arrancar a Ucrânia à Rússia. A chamada “Revolução Laranja” de 2004-05 exacerbou uma crise económica e política que conduziu a Ucrânia para onde está hoje, e essa crise subjacente está longe de estar resolvida.
Em 2004, o Ocidente orquestrou manifestações de rua que retiraram a presidência a Yanukovych e levaram Tymoshenko e Victor Yushchenko para o governo. Apesar do seu apoio ocidental, a acção política de marca de Tymoshenko foi um acordo com o monopólio russo Gazprom que foi politicamente vantajoso para ela mas tão desvantajoso para Ucrânia que em 2010 Yanukovych voltou à presidência e ela foi detida por corrupção. Embora considerado pró-russo, Yanukovych iniciou negociações com a UE para o estabelecimento de um acordo de comércio livre com ela. Depois, em Novembro passado mudou subitamente de ideias, recusou-se a assinar apesar de tudo e, em vez disso, aceitou um acordo russo de 15 mil milhões de dólares [11 mil milhões de euros – NT] de empréstimos e uma redução em um terço nos preços do gás.
Isto revela muito sobre a lealdade ou mesmo a previsibilidade de qualquer dos líderes da Ucrânia. Porém, a mudança de ideias dele não foi irracional: aparentemente, o Fundo Monetário Internacional [FMI] quis impor condições que poderiam ter resultado numa ainda maior instabilidade política e não no alívio de que o seu regime atolado em dívidas precisava para sobreviver. Ele tentou jogar com a Rússia e a UE, e no final nenhuma delas o salvou.
Os jovens e as outras pessoas que saíram às ruas a gritar indignadamente “Queremos entrar para a União Europeia” estavam muito iludidos. Porque é que a UE ou o FMI iriam tratar a Ucrânia de uma forma diferente que a Grécia, por exemplo? A Alemanha e as outras potências europeias (nomeadamente a França) esfolaram a Grécia por duas vezes, uma vez emprestando-lhe grandes quantias de dinheiro para um “desenvolvimento” que significou importar capital e bens de consumo a taxas que ajudaram a manter a economia alemã a crescer, e depois, e várias vezes depois, quando a crise financeira implicou que a Grécia não podia pagar, forçou o país a fazer “ajustes” que levaram milhões de gregos à miséria para que o capital estrangeiro pudesse recuperar o essencial, com juros.
Veja-se a Roménia, a Bulgária, a Hungria, os estados bálticos e outros países do antigo bloco soviético que entraram para a UE – onde é que isso os levou? Talvez os jovens ucranianos estivessem à espera que uma ligação à UE levasse o país deles a viver segundo padrões como o nível ligeiramente mais elevado da vizinha Polónia, que em tempos controlou a Ucrânia ocidental. Mas uma das principais exportações desse país são as jovens mulheres e homens polacos. Ficar mais parecido com a Polónia não é uma aspiração revolucionária.
Um país de 46 milhões de pessoas, a Ucrânia tornou-se independente em 1991, após o colapso da União Soviética. Décimo maior produtor mundial de aço, tem sectores agrícolas e industriais muito desenvolvidos, mas a sua dependência da exportação de aço e produtos do aço tornaram o país altamente vulnerável ao tumulto financeiro global, bem como à pressão russa. A sua localização geoestratégica fornece uma vital rota de trânsito da energia da Rússia para a Europa Ocidental. Cerca de 60 por cento das exportações da Ucrânia vão para a Rússia, a Bielorrússia e o Cazaquistão. O gás natural, usado para alimentar a indústria, bem como para consumo doméstico, é a sua maior importação e a principal causa do seu défice comercial. A dívida externa ucraniana aumentou de 23,8 mil milhões de dólares [17,3 mil milhões de euros, ao câmbio actual – NT] em Dezembro de 2003 para 137,7 mil milhões de dólares [100 mil milhões de euros – NT] em Setembro de 2013.
A “Revolução Laranja” financiada pelos EUA e pela UE em 2005-2010 não conseguiu produzir mudanças económicas estruturais e reorganizar a paisagem política da Ucrânia. Isso teria requerido compromissos financeiros políticos e estratégicos astronómicos que eles não puderam cumprir, emaranhados como estavam em guerras de ocupação no Iraque e no Afeganistão e sobretudo à medida que se afundavam na crise financeira.
Os efeitos da crise financeira global na Rússia durante esse período não foram tão severos. Devido ao aumento dos preços das suas exportações de petróleo e gás, a Rússia acumulou enormes reservas de divisas. Em alguns aspectos, começou a inverter a situação debilitada em que se encontrava após o colapso da URSS no início dos anos 1990.
Ao mesmo tempo, o aparecimento de uma renovada rivalidade imperialista e a ascensão da China capitalista, juntamente com a crise financeira global, forçou as grandes potências a assumirem maiores riscos para reforçarem as suas esferas de influência em todas as dimensões: estratégica, política e económica. A Ucrânia, a maior região não-russa da estilhaçada União Soviética, tornou-se num foco das contradições globais.
A Alemanha em particular, que já é o principal parceiro comercial da Ucrânia, tem estado ansiosa por entrar mais profundamente nesse país relativamente grande e nos seus abundantes recursos naturais, na sua indústria altamente desenvolvida e na sua agricultura orientada para a exportação. É um importante mercado para o capital e os bens exportados, com uma força laboral bastante jovem, qualificada e educada, habituada a baixos salários. O domínio alemão sobre a Ucrânia poderia mudar o equilíbrio de forças no interior da União Europeia ou ainda a nível mais global.
Contudo, embora a Europa e sobretudo a Alemanha se tenham abalançado para devorarem a Ucrânia, os EUA também têm estado intensamente envolvidos, frequentemente sem sincronização com a Alemanha, se não mesmo em oposição aberta. Embora Obama e os governos da Europa estejam a aplaudir a queda de Yanukovych como sendo “a vontade” do povo ucraniano, nenhum dos desejos e interesses ucranianos foram sequer tema do famoso telefonema, divulgado por uma fuga de informação, entre a Subsecretária de Estado norte-americana Victoria Nuland e o embaixador norte-americano na Ucrânia. Eles discutiram exactamente quem é que iriam e não iriam apoiar como futuro líder da Ucrânia, e chegaram a acordo que a transição deveria ser negociada pela ONU de forma a retirar a UE do processo de decisão – “Que se lixe a UE”, conclui Nuland.
Tal como se veio a saber, o plano de saída para Yanukovych foi estabelecido em conjunto pelos ministros dos negócios estrangeiros da Alemanha, de França e da Polónia, que a Rússia se recusou a assinar, alegando que só ajudaria a abrir caminho à oposição a Yanukovych para se libertar dele. Em todo o caso, por agora ele desapareceu.
O poder de fogo norte-americano continua a ser o último argumento de Washington. Ele estava implícito no aviso da Conselheira Nacional de Segurança dos EUA Susan Rice para a Rússia não mandar tropas. A oposição à interferência estrangeira soa a falsa vinda do país que ocupou o Iraque e o Afeganistão, que liderou o derrube armado do regime de Qaddafi e que recentemente tem ameaçado com acções militares contra a Síria e o Irão. Já para não mencionar as suas actividades no seu próprio “quintal” – a anexação de uma grande parte do México e um século a engordar com a riqueza criada por mexicanos. A preocupação que Washington mostrou para com a situação dos manifestantes atacados na principal praça de Kiev (Maidan) nunca existiu quando o governo de Obama coordenou a limpeza violenta dos parques ocupados pelo muito mais pacífico movimento Occupy nos EUA.
A aventura norte-americana de 2008 de encorajar a Geórgia a combater a Rússia terminou em humilhação para Washington, mas o que está em jogo tanto para os EUA como para a Rússia é agora muito mais elevado.
Para os EUA e sobretudo para a Rússia, a questão principal é a importância estratégica da Ucrânia para a re-emergência da Rússia como grande potência. Uma aliança mais próxima da Ucrânia com a Rússia poderia ajudar a Rússia a pôr as suas antigas repúblicas na ordem, sobretudo as mais relutantes como o Azerbaijão e, até certo ponto, a Geórgia. Reciprocamente, uma maior separação da Ucrânia tornaria à Rússia esse sonho muito mais difícil e complicado, e encorajaria mais revoltas dentro da esfera de influência da Rússia. O plano de Putin de uma União Económica Euro-Asiática não pode ter sucesso sem o maior e mais rico dos seis estados não-russos da ex-União Soviética.
A política da Rússia tem sido aparentemente de encorajar as contradições entre a UE e os EUA e inclinar-se condicionalmente para a UE para isolar os EUA. Durante a crise política dos últimos meses, enquanto algumas forças na Ucrânia exigiam a demissão do presidente, as forças pró-UE e a Alemanha propuseram o diálogo e reformas sem uma mudança de presidente. Mesmo agora que Yanukovych está fora de cena, parece que Angela Merkel e Vladimir Putin têm negociado pelo telefone, talvez, segundo alguns observadores, para discutirem a ideia de pôr Tymoshenko, ironicamente um dos aspirantes menos anti-russos, como uma espécie de compromisso para chefe de estado.
A classe dominante ucraniana parece ter-se unido contra Yanukovych. Mesmo o próprio partido dele o renegou. “Toda a responsabilidade por isto está com Yanukovych”, disse o Partido das Regiões num comunicado. “O partido estava virtualmente refém de uma família corrupta”. Deve salientar-se que o aparelho de estado não foi mudado. De facto, embora o parlamento tenha apelado a que outros ex-ministros fossem presos e julgados, o Ministério da Defesa não mudou de mãos e as enormes forças armadas do país parecem ter aprovado o consenso anti-Yanukovych. Ao mesmo tempo, não é nada claro que tipo de aliança política estável o poderá substituir.
Apesar de tão pressionada como tem sido, a própria Ucrânia é um país capitalista monopolista relativamente desenvolvido cuja classe dominante tem as suas próprias necessidades e ambições. Embora os membros dessa classe possam colidir entre si em relação às alianças externas, eles têm uma certa unidade de interesses. Muito provavelmente vêem a actual situação como uma oportunidade para “libertar” o capital ucraniano da sua posição subalterna, ou pelo menos para melhorar essa posição. Esta é uma importante razão para que a situação seja tão volátil.
É quase inacreditável, mas não impossível, compreender que gritos contra a “máfia moscovita judaica” e o “domínio comunista judaico russo” possam ser ouvidos nas ruas da Ucrânia nos dias de hoje. Estas eram as palavras de ordem dos nacionalistas ucranianos que viram a invasão nazi-alemã durante a II Guerra Mundial como uma oportunidade para derrubarem o socialismo, pelo qual quatro milhões de ucranianos lutaram e morreram em sua defesa. Em vez de serem oprimidos pela União Soviética, foi como República Soviética que a Ucrânia passou a existir pela primeira vez enquanto entidade política na história e que o seu povo pôde florescer como nunca antes.
No princípio do movimento Maidan, os estudantes desempenharam um papel principal e parecia haver aí uma vasta mistura política de pessoas. Porém, segundo os relatos noticiosos, foi cada vez mais dominado pelo partido Svoboda, o partido historicamente pró-nazi que se diz ter liderado a tomada do município de Kiev que desencadeou a fuga de Yanukovych, e pelos bandos paramilitares ainda mais abertamente fascistas que se agruparam no Sector Direita. Estas correntes fascistas parecem ser uma expressão dos interesses nacionais do capital ucraniano na sua oposição, bem como no seu conluio, com as potências capitalistas estrangeiras. O papel central desses elementos na queda de Yanukovych sinaliza uma perigosa dinâmica política e ideológica que não pode ser facilmente alterada.
A ideologia reaccionária extrema não é, porém, a marca especial de um lado ou do outro da luta pelo poder. O debate entre os comentadores pró-EUA e pró-russos sobre de que lado estão os verdadeiros fascistas é incorrecto e serve-se a si mesmo. O racismo chauvinista ucraniano dirigido contra os judeus e os russos étnicos pelos bandos anti-russos tem paralelo no obscurantismo patriarcal das forças pró-russas (entre as quais o próprio Yanukovych) que insistem em que a Ucrânia não se deve juntar à UE porque o resultado seriam os casamentos de homossexuais e o fim dos “valores” cristãos.
Se há uma batalha ideológica a decorrer, ela não tem a ver com “valores ocidentais contra valores russos” nem com “democracia” contra “ditadura” – Yanukovych foi repetidamente eleito – mas com o nacionalismo ucraniano. Uma vez mais, quer a saúde debilitada de Tymoshenko e as circunstâncias políticas lhe permitam ou não regressar ao centro do palco politico, ela é um caso de estudo em relação a esse fenómeno. Tendo sido criada a falar russo, ela tem dito que teve de aprender a pensar em ucraniano e passou a opor-se a que o russo seja a segunda língua oficial devido à necessidade de unir o país – que claro que há muito tempo que está unido, com muitos falantes de quatro idiomas diferentes, mas cujos capitalistas necessitam de um clima político diferente para atingirem os seus fins como classe capitalista nacional. Uma das primeiras medidas do novo governo interino foi acabar com o estatuto do russo como segunda língua oficial em toda a Ucrânia.
Aquilo a que agora estamos a assistir são, por um lado, as trágicas reverberações da restauração do capitalismo na URSS após a morte de Estaline e, por outro, uma luta cínica entre as grandes potências imperialistas não só sobre quem consegue alimentar-se da Ucrânia e do seu povo mas, em última análise, uma luta pelo império.
A Ucrânia está no maior tumulto que a Europa viu desde o desmembramento da ex-Jugoslávia. Embora haja importantes diferenças entre as duas situações, elas têm algumas semelhanças nas ambições gananciosas e descontroladas das principais potências imperialistas, sobretudo a Alemanha, os EUA e a Rússia: as divisões e alianças, internas e externas, em rápida mudança da classe capitalista dominante no país; e o encorajamento de movimentos reaccionários de massas motivados por esses interesses. Mas o mundo mudou, sobretudo na última década, e o Ocidente não pode estar à espera de uma vitória fácil.
Apesar dos actuais acontecimentos, dado este contexto, é improvável que uma situação tão complexa possa ser resolvida a breve trecho. Os lobos já saborearam o sangue.