Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 29 de Janeiro de 2007, aworldtowinns.co.uk

Turquia: Hrant Dink – quando “a fraternidade dos seres humanos” é razão para um assassinato

Hrant Dink
Hrant Dink (Foto: Armeniapedia.org)

As balas que abateram o escritor e activista Hrant Dink em Istambul a 19 de Janeiro desencadearam uma tempestade em todo o país. Alguns dias depois, a 23 de Janeiro, mais de 100 000 pessoas saíram para as ruas de Istambul e acompanharam o funeral de Dink até à Praça Taksim, no centro da cidade. Alguns milhares de pessoas mais participaram em manifestações e marchas em cidades de toda a Europa e onde quer que houvesse turcos, imigrantes ou não. Altos funcionários do Estado, incluindo o vice-primeiro-ministro, o Ministro do Interior, o governador de Istambul e mesmo o chefe das forças de segurança do país, assistiram ao funeral. Mas muita gente, na realidade a maioria das pessoas que esteve nas ruas, acredita fortemente que há sangue de Dink nas mãos dessa gente.

Dink viveu toda a vida dele do lado de fora da Turquia oficial. Nascido de etnia arménia na cidade turca de Malataya em 1954, cresceu num orfanato arménio em Istambul, onde conheceu a sua futura esposa Rakel quando ambos eram crianças. Durante a grande agitação revolucionária dos anos 70 que fez estremecer a Turquia até às suas fundações, ele juntou-se às fileiras dos comunistas revolucionários que tinham sido inspirados pela Revolução Cultural na China. A comunicação social turca relatou amplamente que ele era um activista do Partido Comunista da Turquia / Marxista-Leninista, o precursor do actual Partido Comunista Maoista da Turquia e Curdistão do Norte. Foi também nessa altura que ele adoptou uma firme posição tanto contra o racismo turco como contra o nacionalismo arménio tacanho, posição essa que manteve para o resto da vida dele. Ele foi um dos muitos milhares de pessoas presas quando os principais generais do país deram um golpe de estado em 1980 e instalaram um regime abertamente militar.

Assassinado em plena luz do dia
Assassinado em plena luz do dia (Foto: BBC News online)

Os governantes da Turquia nunca deixaram de sonhar com a recuperação da glória dos tempos do Império Otomano, um período em que, durante séculos, controlaram grande parte do mundo, da Costa Atlântica do Norte de África à maior parte do Médio Oriente e parte da Europa. Porém, ao mesmo tempo, subordinam-se hoje às potências ocidentais e sobretudo aos EUA. Dink escreveu sobre “o estado profundo – a rede de forças militares e de segurança que detêm o verdadeiro poder político na Turquia” desde 1923, quando um golpe militar liderado por Kemal Ataturk estabeleceu a Turquia moderna. Ele nunca deixou de falar nos crimes que foram cometidos em nome dos sonhos do império turco, em particular do massacre organizado de cerca de 1,5 milhões de arménios em 1915. Ao abrigo do notório artigo 301 do código penal turco, é crime “insultar a identidade turca”, incluindo mencionar esse sangrento episódio. Todos os anos há intelectuais turcos processados ao abrigo das medidas dessa lei, entre os quais, o ano passado, o novelista Orhan Pamuk, pouco antes de ter ganhado o Prémio Nobel.

As declarações de vários responsáveis governamentais sobre ser intolerável que haja pessoas mortas simplesmente pelo que pensam e apelando à reconciliação entre turcos e arménios apareceram em destaque na comunicação social mundial. Mas foi o sistema estatal turco, a que esses homens presidem, que levou repetidamente Dink a julgamento por continuar a falar abertamente sobre o genocídio arménio. Ele foi considerado culpado disso em 2005 e condenado a seis meses de prisão. A sentença foi suspensa, mas o supremo tribunal da Turquia reafirmou a condenação dele. Também reafirmou o artigo 301, deixando o estado livre para continuar a brandir esse pesado cacete, mesmo contra os intelectuais mais famosos. Quando o jornal bilíngue arménio-turco que ele editava, o Agos, publicou editoriais contra a condenação, ele e três outros jornalistas receberam mais seis meses de pena suspensa por “tentarem influenciar os tribunais”, apesar de a anterior condenação dele ainda estar à espera de recurso. Legalmente, os tribunais poderiam decidir ordenar que ele cumprisse as duas penas, se voltasse a “insultar a turquicidade”. Em 2006, foi novamente levado à presença de um juiz, para responder a acusações de que tinha criticado a letra do hino nacional turco, “Feliz é aquele que é Turco... Sorri para a minha raça heróica”. Essas novas acusações estavam pendentes quando ele foi assassinado à frente do escritório do seu jornal.

Velas por Hrant Dink
Velas acesas por Hrant Dink, na noite do assassinato dele (Foto: Hovaness Avedyan)

Ainda mais sinistramente, a publicitação do “julgamento” tornou Dink num proeminente alvo dos esquadrões da morte de extrema-direita que operam com total impunidade no país. É largamente conhecido que assassinos fascistas como os infames “Lobos Cinzentos” trabalham lado a lado com a polícia secreta do país e perseguem quem se torne numa figura popular de oposição ao regime. No ano passado, alguns assassinos fascistas com vínculos à polícia secreta foram apanhados em flagrante a tentar lançar um atentado bombista contra uma livraria nacionalista curda em Diyarbakir e muitos escritores e jornalistas têm sido mortos durante os últimos anos. O Estado também tem demonstrado abertamente o seu próprio carácter sanguinário em muitas ocasiões – no verão de 2005, o exército massacrou 17 líderes e membros do Partido Comunista Maoista que emboscou em pleno campo aberto perto de Dersim, no Curdistão turco.

Pouco antes de ter sido morto, Dink havia sido convocado para uma reunião com o vice-governador de Istambul. Quando chegou, o vice-governador anunciou-lhe que dois dos seus familiares estavam por acaso de visita e que ele gostaria que eles se juntassem à reunião com Dink. O que aconteceu a seguir fez arrepiar Dink. O vice-governador tinha pouco para dizer e, de facto, a reunião foi dominada por uma pouco disfarçada advertência do seu “familiar” mais velho: nós sabemos que você não é um mau tipo, Sr. Dink, mas, veja lá, há todos esses cabeças-quentes que, lá fora, estão fora de controlo e, se souber o que é bom para si, acabará com todas essas conversas públicas sobre o genocídio arménio e as suas outras declarações que atacam a “turquicidade”.

Funeral de Hrant Dink
No funeral estiveram mais de 100 000 pessoas, empunhando cartazes em turco, arménio e curdo, protestando contra os assassinos fascistas de Hrant Dink (Foto: Wikipédia)

Dink disse a amigos que não estava pessoalmente preocupado consigo próprio, mas que tinha de levar as ameaças a sério, por causa do perigo para quem lhe era próximo. Mas para onde ir? Ele tinha estado muitas vezes na Europa para falar, mas após quatro dias de inverno europeu ele não conseguia aguentar a “falta de luz solar” – e com isso ele não estava a falar apenas do tempo. Quanto à Arménia, disse que se fosse para lá continuaria a sentir-se amordaçado, só que de uma forma diferente. Dink não só criticava o chauvinismo turco como também lutava contra os termos nacionalistas com que muitas das principais críticas arménias à Turquia eram colocadas, que tendiam a enquadrar as questões em termos de “turcos” contra “arménios”. Todos nós, curdos, turcos, arménios, gregos, judeus e muitos outros, vertemos o nosso suor e sangue neste país – porque é que eu devo partir, porque é que eu não devo ficar e lutar, disse ele.

E assim o fez. Apesar das repetidas ameaças contra a sua vida, Dink manteve-se firme e tinha assistido recentemente na Turquia a uma conferência de intelectuais e outras proeminentes figuras que se opunham à “solução militar” do governo turco para o “problema” do Curdistão. Em Dezembro de 2006, assistiu a um simpósio sobre “Os deveres dos intelectuais hoje”, organizado pelo Movimento da Juventude Democrática da Turquia, liderado pelos maoistas.

Hrant Dink
Hrant Dink
(Imagem: Jornal Agos)

Foi o desdém de Dink perante o inexorável ritmo do chauvinismo grã-turco do Estado e a coragem que exibiu ao defender a unidade de todas as nacionalidades, mesmo face à morte, que tanto emocionou milhões de pessoas. No seu funeral, milhares de pessoas transportavam cartazes que proclamavam orgulhosamente: “Somos todos Hrant Dink” e “Somos todos arménios” – num país onde durante séculos um dos insultos mais comuns era “arménio bastardo”. O facto de os principais representantes do Estado, que durante décadas nada fizeram a não ser avivar as chamas do racismo anti-arménio e anticurdo, estarem agora a tentar apresentar-se pateticamente como anti-racistas, mostra o quanto foram postos na defensiva pela efusão em massa de simpatia por Dink.

Mesmo que o assassinato de Dink não tenha sido directamente organizado por elementos do Estado, como acha muita gente na Turquia e mesmo alguma da principal comunicação social estrangeira, no mínimo os governantes militares do país incitaram o crime. Eles criaram a atmosfera em que o crime se tornou inevitável e deram aos seus perpetradores razões para crerem que o seu acto seria bem-vindo a algum nível. Um jovem desempregado de 17 anos do nordeste da Turquia foi acusado dos disparos, e cinco outros jovens de conspiração. Todos confessaram rapidamente – o que não é nenhuma surpresa num país onde a tortura faz parte do sistema legal e onde os juízes rapidamente condenam pessoas com base nas suas “confissões”. Curiosamente, as autoridades locais alegaram que não podiam ter impedido o assassinato porque não tinham estado a vigiar o chefe da alegada quadrilha, Yasin Hayal. Porém, Hayal era um conhecido nacionalista fascista que havia sido condenado por ter feito explodir um McDonald’s em 2004 e a MIT (a polícia política) e os seus informadores parecem ter estado a vigiar todas as outras pessoas de toda a Turquia. Quando levado a tribunal, Hayal gritou: “Orhan Pamuk, seja inteligente! Seja inteligente” – um aviso ao novelista de que os esquadrões da morte não pretendem parar em Dink.

Num dos últimos artigos dele, Dink escreveu: “Eu olho à minha volta e vejo todos os pombos a viverem lado a lado com toda a gente neste país e hoje sinto-me como eles – sinto-me tão ansioso quanto eles, mas também igualmente livre.” Isto é uma amostra do tipo de forças que controlam a Turquia e o mundo de hoje, e de que a única resposta que têm para um homem que viveu toda a sua vida com esses sentimentos é o assassinato.

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