Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 29 de Maio de 2012, aworldtowinns.co.uk

Síria: Um horizonte sombrio

Manifestantes sírios queimam uma imagem do presidente Bashar al-Assad
Manifestantes sírios queimam uma imagem do presidente Bashar al-Assad

As fotografias de dezenas de pequenas crianças mortas — com os seus corpos deitados alinhados lado a lado, cada rosto virado para cima a rasgar o coração de todos os que alguma vez amaram uma criança e trazendo à lembrança outras crianças do mundo inteiro — diz apenas uma parte da horrenda situação que o povo sírio enfrenta.

Talvez o regime de Bashar al-Assad e/ou os seus aliados tenham levado a cabo o massacre de Houla, não como acto de loucura ou simples vingança mas numa tentativa calculada de desviar a revolta contra o regime para uma guerra civil inter-religiosa. Ao mesmo tempo, a resolução do Conselho de Segurança da ONU que condena este crime é um acto obsceno de hipocrisia ou pior. Os EUA e a Rússia estão a tentar usar esta tragédia como momento para ampliarem a sua disputa e negociatas sobre quem irá dominar a Síria. Os interesses do povo sírio e as justas reivindicações do movimento contra o regime, e as vidas das pessoas, incluindo as crianças, não contam para nada nestas manobras reaccionárias.

A resolução do Conselho de Segurança reflectia não uma preocupação com vidas humanas mas a disputa entre os EUA e seus aliados por um lado e a Rússia por outro sobre como será dividido no futuro próximo o domínio estrangeiro da Síria. Grotescamente, a resolução menciona os tanques do governo sírio e o fogo de artilharia, mas não as execuções aparentemente à queima-roupa de muitas das vítimas. Isto deu espaço ao governo sírio para alegar que os assassinatos tinham sido levados a cabo por “terroristas”, presumivelmente querendo dizer fundamentalistas islâmicos, uma explicação para a qual não foi apresentada nenhuma evidência. Os diplomatas ocidentais afirmam que o texto da resolução foi concebido de forma a obter a aceitação russa do que acabou por ser um voto unânime do Conselho de Segurança. Mas esta unanimidade teve intenções criminosas de ambos os lados.

A ONU finge estar a trabalhar para uma resolução pacífica da crise através de um cessar-fogo, uma espécie de imobilização da situação. Esta é a alternativa menos provável, uma alternativa que nenhuma das potências imperialistas envolvidas realmente crê ser possível e que os EUA e seus aliados estão a trabalhar para tornar impossível. Os EUA estão decididos a que a Síria, frequentemente descrita como um “regime cliente” da Rússia, se torne num regime cliente dos EUA a qualquer preço.

Manifestantes contra o presidente sírio Bashar al-Assad em Hula a 14 de Outubro de 2011
Manifestantes contra o presidente Bashar al-Assad em Hula a 14 de Outubro de 2011 (Foto: Reuters)

Os EUA e a Rússia parecem estar de acordo na tentativa de preservar o essencial da estrutura do regime de Assad, sobretudo as forças armadas e de segurança, sem Assad. Como poderá isso acontecer é o que está actualmente a ser negociado entre os EUA e a Rússia. Os EUA têm um poderoso argumento: ou a Rússia aceita manter alguma influência numa Síria dominada pelos EUA, ou arrisca-se a não ter mesmo nenhuma influência.

Esta situação foi posta a nu num artigo no The New York Times (26 de Maio de 2012) que era, à sua própria maneira, tão chocante e cínico quanto o massacre de Houla, em termos do futuro do povo sírio. Na recente cimeira do G-8 em Camp David, Maryland, o primeiro-ministro russo Dmitri Medvedev disse ao Presidente norte-americano Barack Obama que a Rússia não estava disposta a ver o Conselho de Segurança da ONU a autorizar uma mudança de regime na Síria segundo o modelo da Líbia, onde uma intervenção militar liderada pelos EUA sob o disfarce de proteger os civis permitiu aos EUA derrubarem um regime que eles consideravam problemático. Aparentemente, a Rússia começou a considerar Assad como um “encargo”, no sentido de que já não acredita que ele possa permanecer no poder, mas Moscovo não está disposta a ser totalmente expulsa de um país onde os seus interesses predominam militarmente (a Rússia tem uma pequena base naval, o seu único posto avançado no Mediterrâneo), economicamente (a Rússia tem extensos investimentos no gás e no petróleo sírio e a Síria é um importante cliente das armas russas) e politicamente, embora os EUA também tenham vindo a ter relações e influência.

Segundo o artigo, Obama contrapôs propondo o “modelo iemenita”: Assad sairia, mas o regime manter-se-ia essencialmente inalterado, excepto que passaria a ficar dependente de Washington. O Times chegou mesmo a dizer que os diplomatas norte-americanos preferem referir-se a este plano como a “Variante Yemenskii”, como se fosse a jogada final de um jogo de xadrez, mantendo o nome russo para minimizar o facto de que isso implicará um avanço estratégico para os EUA.

Os factos do que aconteceu no Iémen chegam para mostrar quão reaccionária será essa “solução”. Face a um movimento popular contra o regime de Ali Abdullah Saleh, os EUA, trabalhando com e através da Arábia Saudita, negociaram um acordo em que Saleh foi mandado para tratamento médico e substituído pelo seu vice-presidente, Abu Rabbu Mansour. Posteriormente, realizaram-se eleições. Mansour, o único candidato, foi magicamente transformado num presidente “democraticamente eleito” que os EUA podiam abraçar de uma forma mais pública do que antes podiam com Saleh. O envolvimento militar norte-americano no Iémen foi incrementado.

Protestos na Síria
Protestos na Síria

Isto mostrou o completo desprezo dos imperialistas pela vontade e interesses do povo iemenita, e algo semelhante não será melhor na Síria.

Um cenário possível seria um golpe militar contra Assad e o círculo próximo dele, cujo objectivo seria manter a estrutura de poder síria tão inalterada quanto possível. Segundo Hassan Khaled Chatila, um revolucionário sírio que vive na Europa, uma substituição que se pode imaginar poderia ser um dos dois vice-presidentes da Síria, Farouk Al-Sharaa, um homem forte do partido Baath que tem a vantagem de ser sunita, civil e um ex-ministro dos negócios estrangeiros que trabalhou com diplomatas ocidentais. Além disso, não lhe é conhecido nenhum papel directo na repressão do regime desde o início da revolta popular em Março de 2011. Rumores recentes sobre a morte por envenenamento de quatro figuras de topo do regime num jantar num edifício propriedade do Ministério da Defesa, e que os representantes de Assad não conseguiram dissipar, poderiam, segundo Chatila, representar neste contexto uma luta pelo poder no interior do regime.

Mas os EUA não estão a deixar que sejam os sírios a decidir a situação. Está a ser exibida e preparada uma força para ser usada. Desde meados de Maio que a Jordânia, país vizinho da Síria, tem sido o teatro do maior conjunto de exercícios militares que o Médio Oriente vê desde há uma década. A Operação Eager Eagle 2012 [Águia Ansiosa 2012] envolve mais de 12 000 tropas estrangeiras de 18 países sob o comando de um general das Forças Especiais dos EUA (US Defense News, 15 de Maio). A relação próxima dos EUA com a monarquia hashemita [jordana] que obteve o apoio norte-americano quando tentou eliminar o movimento palestiniano, então sediado na Jordânia, é outro indício de como Washington decide quais os regimes que considera “democráticos” com base nos seus interesses imperialistas.

Embora esses “jogos” de guerra tenham ficado largamente desapercebidos pela comunicação social ocidental, os EUA asseguraram-se que as suas ameaças militares eram percebidas. Logo após o massacre de Houla, o chefe das forças armadas norte-americanas, o Chefe de Estado Maior General Martin Dempsey, disse à televisão norte-americana: “Irão sempre encontrar os líderes militares algo cautelosos em relação ao uso da força, porque nós nunca estamos completamente seguros do que está do outro lado. Mas dito isto, poderemos chegar a esse ponto com a Síria, devido às atrocidades.” (Guardian, 28 de Maio) E acrescentou que os EUA estavam preparados para lançar uma intervenção militar se lhes fosse “pedido para o fazerem”.

A polícia de choque síria dispara gás lacrimogéneo contra os manifestantes
A polícia de choque síria dispara gás lacrimogéneo contra os manifestantes

Parece que nas actuais circunstâncias os EUA prefeririam não ficar directamente envolvidos noutra guerra, sobretudo dado que o regime sírio tem mais poder de fogo que qualquer outro com que os EUA se misturaram ultimamente. Até certo ponto, a ameaça de uma intervenção militar visa obter objectivos políticos: encorajar um golpe do exército sírio que afaste Assad (e, se necessário, apoiar uma facção contra outra), e tornar claro à Rússia que aceitar a oferta norte-americana de uma influência reduzida na Síria é a sua melhor opção disponível. Mas a ameaça não é um bluff.

Uma tal intervenção pode muito bem ser bem acolhida pelos dois principais grupos da oposição síria que têm desempenhado um papel a nível internacional, sobretudo o Conselho Nacional Sírio cujo dirigente, Burhan Ghalioun, escolheu Istambul como local para pedir uma vez mais uma intervenção militar estrangeira na Síria para “proteger os civis”. (NYT, 29 de Maio) A França (que já dominou a Síria e o Líbano e cultivou o antagonismo étnico/religioso) e a Grã-Bretanha têm sido particularmente vocais no apoio a esses grupos. O Conselho e o Comité de Coordenação das Forças Democráticas, um outro defensor da intervenção imperialista, têm tentado obter uma solução negociada com o regime de Assad. Nenhum deles parece ter uma grande presença organizada no interior da Síria onde o objectivo declarado do movimento nas ruas é derrubar o regime.

Regressando ao tema da resolução do Conselho de Segurança da ONU, aqueles que não a vêem à luz dos interesses imperialistas em jogo não poderão compreender que em vez de ser uma tentativa de criar a paz, ela representa uma tentativa de resolver os conflitos, tanto entre as potências imperialistas rivais como entre o povo e o regime, pela força e pela ameaça de guerra. Qualquer pessoa que duvide disso, deveria perguntar-se porque é que o Conselho de Segurança da ONU, e sobretudo os EUA, se interessaram de repente pelas vidas dos sírios, depois de muitas vezes durante décadas terem ignorado os crimes do regime de Assad. Porque é que o Conselho de Segurança está agora preocupando com as vidas dos civis, depois de ter declarado que o custo em vidas árabes era irrelevante quando Israel invadiu o Líbano e Gaza, e quando Israel e os seus aliados falangistas fizeram um massacre ainda maior nos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Chatila, no Líbano?

As potências imperialistas — todas elas — estão particularmente decididas a fazer com que os seus interesses concorrenciais prevaleçam a qualquer preço, porque a Síria, importante como é, é apenas parte do quadro global. Para os EUA, chegou o momento de tentarem uma mudança de regime na Síria, preferencialmente sob o seu controlo, no contexto de uma campanha mais vasta para reconfigurarem toda a região, transformando ou eliminando todos os obstáculos à sua hegemonia inquestionável, incluindo a República Islâmica do Irão, cujos aliados principais são o regime de Assad e o Hezbollah do Líbano, um grupo dependente de Assad. Para os EUA, não é uma situação de vida ou morte imediata como o é para os regimes sírio e Iraniano, mas uma vitória ou um fracasso neste potencial teatro de guerra será crucial para decidir se os EUA irão ou não consolidar o seu domínio ou se sofrerão maiores perdas — o que, em última instância, é uma questão existencial para o império dos EUA e para o imperialismo norte-americano.

Estudantes manifestam-se na cidade síria de Aleppo
Estudantes manifestam-se na cidade de Aleppo

Nas últimas semanas, o movimento espontâneo de milhões de sírios contra o regime mostrou sinais da possibilidade de atingir um novo nível. Embora durante muito tempo tenha estado sobretudo confinado a aldeias, vilas e cidades de província, uma manifestação de estudantes que pediam a queda do regime, a 17 de Maio em Aleppo, a maior cidade da Síria, obteve um apoio significativo fora das universidades. Após o massacre de Houla, as lojas e bancas comerciais de Damasco, sobretudo no bazar, fecharam em protesto.

Mas a situação do movimento popular sírio é aterradora. Enfrenta inimigos extremamente poderosos de todos os lados. E também pode ser vulnerável à manipulação.

Além do assassinato de civis sunitas em Houla, atribuída a milicianos alawitas (Shabihah) pró-regime de aldeias vizinhas, houve o misterioso sequestro de peregrinos xiitas e uma vaga de aparentes ataques bombistas suicidas atribuídos a fundamentalistas sunitas que matou sobretudo civis e em que os alvos governamentais ficaram essencialmente intactos. Alguns ou todos estes incidentes podem ter sido organizados pelo regime para solidificar o seu apoio entre os alawitas e outras minorias, jogando com o seu medo da maioria sunita numa guerra civil comunitária. Mas não é impossível que outras forças também estejam a tentar fomentar esse tipo de conflito reaccionário.

Quando o representante sírio no Conselho de Segurança da ONU comparou os assassinatos de Houla aos massacres de civis na Argélia nos anos 90 (Al-Jazeera, 26 de Maio), não estava necessariamente a exagerar, excepto que o exemplo, uma guerra civil em que o governo militar e os seus opositores islâmicos competiam no assassinato de intelectuais e na eliminação de comunidades, condena em vez de justificar o regime de Assad. De facto, a sua tentativa de defesa do seu governo com este exemplo também pode ser vista como uma ameaça: apoiem o regime ou enfrentem algo ainda pior.

Apesar da vontade popular de manter este movimento focado em se opor ao regime e evitar divisões sectárias entre o povo, quando os tiros começam é muito difícil manter o povo unido sem uma noção clara de saber exactamente qual é o problema além da questão imediata de Assad e do seu círculo interno predominantemente alawita, e qual é que pode ser a solução que sirva os interesses da vasta maioria do povo.

A revolta espontânea de milhões de pessoas na Síria, apesar da ausência de uma visão de mudança social de fundo e de todas as fraquezas políticas e organizativas que daí fluem, foi incontestavelmente o que levou o regime à beira da queda. E é este movimento que os imperialistas e seus amigos estão a tentar trair e talvez a esmagar pela força. O problema da liderança — quem irá dirigir o povo, ao serviço de que interesses e objectivos e portanto com que meios lutar — está a ser abertamente colocado.

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