Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 5 de Maio de 2008, aworldtowinns.co.uk
Será aceitável que os EUA “obliterem totalmente” o Irão?
A recente ameaça da candidata presidencial norte-americana Hillary Clinton de “obliterar totalmente” o Irão foi verdadeiramente alarmante, não só pelo que ela disse, mas também pelo que não sucedeu: pela tempestade de condenações e de repúdio que não aconteceu, nem em Washington nem em nenhuma outra capital ocidental. Mesmo o rival dela à nomeação do Partido Democrata, Barack Obama, limitou-se a repreendê-la suavemente pela sua má escolha de palavras – “Essa não é a linguagem de que precisamos nesta altura.” O que ele não disse, e o que nenhum político norte-americano com alguma influência nessa questão também não disse, foi que o que ela ameaçou é um genocídio, que o genocídio é um crime e que mesmo as ameaças de genocídio são inaceitáveis.
A aterradora ameaça de Hillary Clinton revelou muito mais que as suas próprias ambições. Trouxe à luz do dia um certo estado de espírito em Washington no seu todo, um consenso em que o Irão é uma ameaça aos interesses norte-americanos e que os EUA deveriam planear e levar a cabo tudo o que for necessário para atingirem os objectivos políticos em que todos eles estão de acordo.
Lá se vai a ideia de que a iminente saída de Bush da Casa Branca poderia reduzir o perigo de um ataque ao Irão, antes ou depois de ele sair do lugar.
Em Novembro passado, uma Estimativa dos Serviços Nacionais de Informações dos EUA concluía que provavelmente o Irão já não estava a desenvolver um programa de armas nucleares. A divulgação pública desse documento indicava algum desconforto sobre a prudência de atacar o Irão e uma disputa no interior das fileiras dos que tomam essas decisões. Mas a situação já evoluiu um pouco desde então. Ironicamente, à medida que se aproxima o fim marcado para o mandato de Bush, parece que a avaliação estratégica que ele fez, por exemplo no seu discurso de 10 de Abril, tem sido amplamente aceite entre os que tomam essas decisões. “O Iraque é o ponto de convergência entre as duas maiores ameaças deste século à América: a Al-Qaeda e o Irão.”
Ao contrário do que ele e outros repetidamente insinuam ou alegam, essas duas ameaças são diferentes de muitas formas fundamentais. Elas são inimigas, sem que alguma vez tenha sido fornecida por alguém a mais leve prova de ligação entre elas. Mas só temos que reorganizar um pouco essas palavras para descodificar o que Bush realmente quis dizer e o que é realmente verdade: a xiita República Islâmica do Irão e o fundamentalismo islâmico sunita armado anti-EUA são as ameaças mais fortes à conclusão do “século norte-americano” global que os EUA visam obter. Ambos reflectem uma maré fundamentalista islâmica e o sucesso de qualquer dos componentes diversos e mutuamente opostos dessa tendência no confronto com os EUA incentiva e incita os outros.
Ainda mais ironicamente, se se pode dizer que a ironia é apropriada quando se fala de apelos ao assassinato em massa, a declaração de Bush é agora mais verdadeira que quando ele desencadeou a “guerra ao terror” e colocou o Irão ao lado do Iraque no “eixo do mal”. O que a tornou mais verdadeira foi toda a ofensiva internacional norte-americana desde o ataque de 2001 ao World Trade Center. A invasão do Afeganistão liderada pelos norte-americanos ressuscitou os talibãs que se tinham tornado odiados e desacreditados para muitos afegãos. As tentativas norte-americanas de manterem o controlo do Paquistão levaram a que aí o fundamentalismo islâmico armado ficasse fora de controlo. Olhando para o outro lado do horizonte, a invasão israelita do Líbano, apoiada pelos EUA, resultou num beco sem saída sem precedentes para o exército israelita e encorajou o crescimento do Hezbollah como um dos mais poderosos aliados do Irão, militar e politicamente, com um verdadeiro exército e armas modernas sob o seu comando e provavelmente mais simpatia em todo o Médio Oriente que qualquer dos governantes dependentes dos norte-americanos.
No centro desse furacão está o Iraque. Claro que Bush está a mentir quando culpa o Irão pela guerra contra a ocupação norte-americana do Iraque. Mas não há dúvida nenhuma que essa guerra foi a melhor coisa que aconteceu aos mulás do Irão desde que chegaram ao poder. Se eles estão muito confiantes em que os EUA não os ousarão atacar ou que essa guerra terminará numa derrota norte-americana, talvez seja porque, se deus existe, ele tem sido certamente generoso para com eles a esse respeito. Ele deu-lhes uma ocupação norte-americana do Iraque que, como concluía um recente artigo do analista Joseph Collins do Departamento de Defesa dos EUA, os EUA nem podem ganhar nem estão em condições de perder (“Escolher a Guerra: A Decisão de Invadir o Iraque e o Seu Resultado”, Instituto de Estudos Estratégicos, Universidade de Defesa Nacional). Contudo, há poucas esperanças de uma solução política que possibilite aos EUA continuarem a dominar o Iraque sem a ajuda das forças ligadas ao fundamentalismo islâmico em geral e sobretudo à República Islâmica do Irão (RII), o regime irmão do governo islâmico que os EUA acabaram por instalar no Iraque.
Se as autoridades norte-americanas descrevem cada vez mais a guerra do Iraque como tendo a ver com o Irão, uma “guerra por procuração” como disse recentemente o Embaixador dos EUA no Iraque, Ryan Crocker, é porque a invasão do Iraque nunca teve a ver apenas com o regime de Saddam Hussein, ou apenas com o próprio Iraque, mas com uma tentativa norte-americana de controlo regional, o que tornou inevitável uma colisão com o Irão. Ao mesmo tempo que os mulás que governam em Teerão calibram cuidadosamente os seus movimentos (por exemplo, apoiando forças xiitas tanto no interior como opostas ao governo iraquiano instalado pelos EUA), tentando evitar ou adiar uma colisão directa com os EUA por causa do Iraque, eles certamente procuram defender os seus interesses naquilo que é, para eles, uma situação vantajosa.
Para o regime iraniano, a imagem tem um outro lado: está completamente cercado por todos os lados pelo exército norte-americano, no Iraque, no Afeganistão, no Paquistão e nos estados do Golfo Pérsico e da Ásia Central. Próximo da cidade de Kut, no sudeste do Iraque, a cerca de 58 quilómetros da fronteira iraniana e próximo de uma importante passagem fronteiriça entre os dois países, há construtores norte-americanos atarefados a ampliar um quartel para alojar confortavelmente 6000 soldados dos EUA. Até agora, essas instalações têm sido uma importante base de espionagem do Irão. Os EUA começaram por enviar para o Golfo um grupo de porta-aviões de ataque, e recentemente enviaram um segundo grupo e um outro para o Mediterrâneo oriental, ao largo do Líbano. Poucas vezes na história houve tanta potência de fogo concentrada. Os EUA e a Grã-Bretanha provocaram, em várias ocasiões, confrontos navais perto da costa iraniana. A quantidade adicional de armas de destruição em massa que os EUA poderiam deslocar rapidamente do Oceano Índico, da Europa e da própria “pátria” imperialista é horrenda.
Além disso, depois de longos esforços, os EUA tiveram algum êxito na bajulação e na pressão sobre as outras potências imperialistas para imporem um bloqueio comercial. Nos últimos meses, foi cortado muito do financiamento às importações e exportações iranianas. Em Maio, a Yahoo e a Microsoft entraram nessa campanha, retirando o Irão da lista de países em que se podem registar as pessoas que queiram usar o seu correio electrónico. Isto estabeleceu um grave exemplo para as empresas de menores dimensões que apoiam o governo dos EUA ou que temem as suas ameaças de punição. Obviamente, milhões de iranianos enfrentam o facto de se virem a tornar em “danos colaterais” das sanções que inicialmente se dizia visarem unicamente a liderança do regime.
Dito de uma forma simples, o regime iraniano está sob a ameaça de se atravessar à frente dos objectivos geopolíticos que os EUA definiram para si próprios para poderem continuar a ser os principais exploradores do mundo. Os EUA estão a ameaçar “obliterar totalmente” o Irão – o que não significa apenas o regime mas muitos, talvez mesmo um grande número, dos habitantes do país.
Como é que os imperialistas norte-americanos podem justificar isso, pelo menos para algumas das pessoas dos EUA, se não mesmo do mundo? (O vice-presidente Dick Cheney disse que o apoio de um terço da população dos EUA seria suficiente para tornar uma guerra politicamente possível.) No seu discurso de Abril, Bush, tal como os seus generais e embaixadores que têm falado desde então, acusam o Irão de estar a matar norte-americanos no Iraque. No último mês tem havido um crescendo desse tipo de afirmações. Entre os norte-americanos que não se questionam sobre o que esses soldados estavam a fazer no Iraque, isso pode ser um argumento aliciante.
Há uma outra justificação moral que tem sido apresentada e que é, também ela, potencialmente muito séria: a “defesa” do único posto avançado dos EUA verdadeiramente fiel no Médio Oriente, Israel.
As ameaças de Hillary Clinton (e Obama) relembraram o discurso de Bush em Abril, em que ele encobriu as ameaças genocidas com a salvação de vidas israelitas: “Eles [o Irão] têm declarado que querem ter uma arma nuclear para destruir pessoas – algumas no Médio Oriente. E isso é inaceitável para os Estados Unidos e é inaceitável para o mundo”, disse ele à rádio Farda, que é financiada pelos EUA e transmite para o Irão em farsi [persa].
Eis como se define o consenso entre a classe dominante dos EUA: não se pode permitir que o Irão obtenha armas nucleares.
Uma vez mais, a declaração de Bush precisa de ser descodificada, mas tem um significado real. A RII tem dito que não visa obter armas nucleares e que o Islão proíbe a toda a gente o uso de armas nucleares. O Presidente Mahmoud Ahmadinejad não fez, de facto, um apelo à destruição de Israel, como muito frequentemente se alega. Mas se a República Islâmica construísse algumas armas nucleares, a sua utilização mais lógica seria para dissuadir um ataque nuclear israelita usando o mesmo tipo de “equilíbrio de terror” em que os EUA e a União Soviética se envolveram. Isso poderia alterar o equilíbrio de poder – ou melhor dito, a falta de qualquer equilíbrio de poder ou de terror – no Médio Oriente.
Ao mesmo tempo, ao que parece e até onde se sabe, pelo menos até agora, há um consenso oposto entre a classe dominante iraniana: o de que não abandonará o seu programa nuclear. Pelo contrário, acelerou-o enormemente. Na vida real, e não apenas na retórica de todos, o Iraque, o Irão, Israel e as armas nucleares fazem todos parte de um único pacote.
Defender um estado de colonos ilegais seria ilegítimo por si só, mas a “defesa” de Israel não é a verdadeira questão. Como praça-forte regional e gendarme dos EUA, Israel representará quase certamente um papel chave na própria guerra. Poderá servir de gatilho para uma guerra em que os EUA intervirão. Entre um significativo sector das massas israelitas, bem como dos círculos governamentais, há a disposição para uma solução desesperada e final para a actual e insustentável situação. Durante um exercício de defesa civil de cinco dias em Abril, um alto responsável governamental israelita avisou que o Irão está “a provocar-nos” ao apoiar o Hezbollah e arengou: “Um ataque iraniano levará a uma dura vingança da parte de Israel que levará à destruição da nação iraniana” (CNN, 7 de Abril). A implicação é que mesmo fornecer armas ao Hezbollah, como o Irão já está a fazer, poder ser considerado um ataque. Note-se que, tal como no caso de Hillary Clinton, a ameaça não é de uma “vingança proporcional” mas de genocídio. Ele também avisou que os israelitas se deveriam preparar – e isso foi o objectivo dos exercícios – para que os rockets chovam em todos os cantos do país.
Em Israel, tal como no Irão e certamente na Casa Branca de hoje e de amanhã, há pessoas que têm uma ideia muito clara do que pode significar uma guerra e, confiando no seu deus e na sua missão em nome dele, não estão prestes a retroceder perante a perspectiva de um banho de sangue.
A decisão do governo Bush de divulgar vídeos e outra informação sobre o misterioso ataque aéreo israelita do ano passado a um edifício na Síria acrescentou um outro elemento perturbador aos preparativos concretos para isso. Para alguns peritos nucleares civis, a “prova” que pretensamente mostra que o que a força aérea de Israel atacou era uma fábrica inacabada de armas nucleares parecia mostrar exactamente o contrário. Um porta-voz do governo sírio deu uma explicação plausível quando perguntou porque é que iriam construir uma fábrica estratégica de armas ao ar livre, à vista clara dos satélites espiões dos EUA, sem meios antiaéreos ou qualquer outra protecção militar. Além disso, uma vez que a Síria é signatária do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, a Agência Internacional da Energia Atómica poderia ter exigido que se submetesse a uma inspecção surpresa.
O momento e a abordagem por trás dessas acusações sugerem que Washington decidiu aumentar a pressão contra o único estado aliado do Irão, numa tentativa de isolar Teerão ainda mais. Mas o seu falso carácter também dá mais peso à ideia amplamente defendida de que Israel enviou os seus aviões de guerra à Síria para localizarem as suas instalações de radar e testarem a sua capacidade de reacção. É considerado provável que qualquer ataque aéreo israelita ao Irão atravesse o espaço aéreo sírio. Isto torna ainda mais sinistra a deslocação para o Mediterrâneo oriental de navios de guerra dos EUA especializados no apoio aéreo. Um ataque israelita, uma resposta iraniana, um presidente norte-americano, Republicano ou Democrata, a anunciar na televisão que, querendo a paz para os EUA não tem outra alternativa que não seja “proteger” vidas israelitas – não é isto muito fácil de imaginar?
Este, claro, está longe de ser o único cenário possível. Mas os outros não são melhores.
Algumas pessoas esperam que a guerra possa ser evitada pela vacilação da República Islâmica. Isso pode acontecer, mas também pode não acontecer, e ninguém deve contar com isso. Tal como os imperialistas norte-americanos, o regime iraniano enfrenta a sua própria necessidade imperiosa. Um artigo da edição de Novembro de 2007 do Haghighat, órgão do Partido Comunista do Irão (Marxista-Leninista-Maoista) analisa que “tal como os imperialistas norte-americanos, estes reaccionários não têm nenhuma ‘boa’ alternativa disponível para si próprios. Em resultado do confronto com os EUA, as contradições internas no Irão intensificaram-se: a contradição entre o regime e o povo do Irão e as contradições internas dentro da classe dominante da república islâmica. Mas se o regime da República Islâmica recuar face às exigências dos EUA, estará a cometer suicídio.” (sarbedaran.org) Neste momento, apesar da mortal luta interna entre as facções do regime, todas elas parecem inclinadas a preservar a República Islâmica.
Muita gente no regime islâmico acredita que os EUA não ousarão atacar o Irão porque a Rússia não o toleraria. É verdade que um ataque norte-americano ao Irão visaria, entre outras coisas, trazer o petróleo do Médio Oriente mais firmemente para baixo do seu controlo directo e reduzir a capacidade da Rússia para usar o seu próprio petróleo e gás para projectar o seu poder político. (Outro objectivo seria restringir ainda mais a China e a Índia, dois países com os quais o Irão tem procurado estabelecer ligações económicas em substituição das com o Ocidente.) Mas, face a uma ameaça nuclear norte-americana, o papel da Rússia é muito difícil de prever. De novo, seria loucura contar que a Rússia, por causa das suas tentativas de obter um papel de relevo no palco imperialista, represente um papel positivo no desenvolvimento desta situação.
Além disso, embora haja forças dentro da República Islâmica que gostariam de chegar a um “grande compromisso” com os EUA, isso não exclui um “grande ataque” para garantir que o compromisso ocorre nos termos norte-americanos, como diz o artigo do Haghighat. “Uma outra facção da RII”, continua, “acredita que uma guerra com os EUA é a única hipótese que este regime tem de sobrevivência, porque, como resultado da guerra, a RII pode atrasar ou colocar uma tampa na fervura das contradições internas que ameaçam derrubá-la.”
Isso foi dramaticamente demonstrado durante a parada anual do Dia do Exército da República Islâmica, a 17 de Abril. Ahmadinejad vangloriou-se que nenhuma potência ousaria atacar o Irão, enquanto tanques e lança-mísseis rodavam atrás de si e quase 200 aviões voavam por cima, no que responsáveis do regime disseram ser a maior demonstração de sempre de poder aéreo.
No debate dentro da classe dominante norte-americana tem havido uma evolução que deve ser salientada. Há mais de dois anos, o jornalista Seymour Hersh revelou os contornos dos planos dos EUA para “ataques cirúrgicos”, operações de comandos e outros meios para atacar o Irão e provocar a queda da República Islâmica. Nessa altura, muitos comentaristas questionaram se os EUA conseguiriam atingir os seus objectivos sem utilizar mais inteiramente o seu poderio militar. Alguns avisaram que os EUA se poderiam encontrar com mais guerra que aquela com que poderiam lidar. Agora, de uma forma mais “por qualquer meio necessário”, estamos a ouvir ameaças para “obliterar totalmente” o Irão.
A questão aqui não é prever o que não pode ser previsto por gente comum, e provavelmente nem sequer pelos que tomam decisões nos países envolvidos, incluindo os EUA. As contradições envolvidas são complexas e podem interagir de uma forma inesperada. Mas uma coisa é tão clara como a luz do dia, e não verdadeiramente contestada por ninguém bem informado: de uma forma ou de outra, os EUA estão determinados a obterem o controlo político e económico do Irão. De facto, não têm outra alternativa senão fazê-lo. Caso contrário, toda a sua ofensiva para obterem um controlo incontestado e sem precedentes do Médio Oriente, e com base nisso, do globo, poder-se-ia desfazer. O seu sucesso seria uma coisa muito perniciosa para a humanidade, quer surja através da guerra ou da ameaça de guerra – e a decisão sobre se uma ameaça de guerra se transforma numa guerra real, e em que tipo de guerra, pode não estar nas mãos de ninguém.