Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 16 de Fevereiro de 2004, aworldtowinns.co.uk
Relato do Resistência Mumbai 2004 e do Fórum Social Mundial
O seguinte relato foi escrito pelos delegados do Movimento de Resistência Popular Mundial que estiveram em Mumbai (Bombaim).
Com uma população de mais de 13 milhões de pessoas, Bombaim é a segunda maior cidade da Índia e o seu centro financeiro, comercial e de comunicação social. Qualquer pessoa que viaje para esta cidade pela primeira vez sofre um golpe devido ao seu tamanho e às suas condições de incrível abarrotamento. Todas as manhãs há um fluxo aparentemente infinito de seres humanos que invadem as ruas. Vastas ruas sujas estendem-se por quilómetros em todas as direcções. Ao mesmo tempo, há cibercafés em quase todo o lado a que se vá e o som dos telemóveis a tocar está tão presente como em qualquer cidade da Europa. Modernos edifícios de escritórios elevam-se a partir de passeios onde em muitos lugares quase não há um metro quadrado que não sirva de quarto de dormir a alguém. As contradições da globalização imperialista do século XXI dificilmente poderiam ter uma expressão mais concentrada – e gigantesca. Assim, Bombaim foi um local apropriado para o que aconteceu na semana de 16 a 22 de Janeiro: um desabrochar de resistência anti-imperialista que não só foi sentida em toda a cidade, como reverberará indubitavelmente em toda a região e mesmo em todo o planeta. Mais de 60 000 pessoas de todas as zonas da Índia, da Ásia do Sul e de todo o mundo convergiram para esta metrópole para participar em dois eventos, o Fórum Social Mundial e o Resistência Mumbai 2004 [MR2004] – Contra a Globalização Imperialista e a Guerra. Estas duas conferências ocorreram simultaneamente numa zona da cidade chamada Goregaon, a cerca de 35 quilómetros a norte do centro histórico da cidade, construída durante os quase 200 anos de domínio colonial britânico.
Resistência Mumbai 2004 – Contra a Globalização Imperialista e a Guerra
Os iniciadores do MR2004 sentiram que a ideia política resumida no principal slogan do FSM, “Um Outro Mundo é Possível”, é limitada e decidiram estabelecer como objectivo mostrar como o imperialismo é hoje um sistema global de relações económicas e sociais. A essa luz, concentraram-se nas formas em que uma resistência activa pode ser construída. Nas semanas anteriores ao MR2004, os activistas lançaram uma grande campanha de graffiti e cobriram as paredes de Bombaim e arredores com palavras de ordem contra a globalização imperialista e a guerra.
Realizaram-se dois dias de seminários e workshops, a 17 e 18 de Janeiro. Mais de mil delegados participaram na sessão plenária de abertura. A esmagadora maioria provinha de países da Ásia do Sul e de outros países oprimidos da Ásia (especialmente das Filipinas), do Médio Oriente e de outras regiões. Ainda no primeiro dia, seguiram-se workshops sobre várias questões, desde os camponeses e a agricultura até à Organização Mundial do Comércio, o imperialismo, a globalização e o seu impacto nas mulheres, os direitos democráticos no âmbito da “guerra contra o terrorismo”, a classe operária e sobre a questão nacional. Conhecidos intelectuais e dirigentes anti-imperialistas de toda a região e não só, estiveram entre os participantes. Durante toda a conferência foram feitos grandes esforços para traduzir os trabalhos para hindi, o segundo idioma mais falado entre os delegados.
Os workshops de domingo incluíram tópicos como a ocupação do Iraque, a marginalização dos povos indígenas, o impacto da globalização entre os dalits [NT: anteriormente conhecidos como “intocáveis”] e a questão do fascismo. O destaque do domingo foi o workshop sobre a ocupação de Iraque e a guerra imperialista. Mais de 250 delegados assistiram e ouviram a conhecida escritora e activista política indiana Arundhati Roy fazer o discurso de abertura. Neste workshop os delegados que representavam o MRPM (Europa) fizeram uma apresentação sobre as origens, importância e efeito dos movimentos contra a guerra que surgiram nas metrópoles imperialistas em oposição à invasão imperialista e à actual ocupação do Iraque.
Um activista da Brigada Parem a Guerra (uma organização anti-imperialista ligada ao MRPM, que trabalha entre os soldados e as suas famílias nos EUA e noutros países) mostrou como a oposição e mesmo a resistência activa à guerra e à ocupação se tinham desenvolvido mesmo entre as forças militares dos EUA, da Grã-Bretanha e de outros países e o importante papel que os veteranos de anteriores guerras imperialistas representaram no alimentar dessa resistência.
Em nome do MRPM (Ásia do Sul) e do MRPM (Europa) um delegado fez uma apresentação intitulada “A Libertação dos Povos Não é Terrorismo: Imperialistas e Reaccionários – Tirem as Mãos do Nepal / Liberdade para o Camarada Gaurav!”, referindo-se ao dirigente do Partido Comunista do Nepal (Maoista) encarcerado desde Agosto passado pelas autoridades indianas.
Na segunda-feira, o programa cultural “Ondas de Resistência Cultural” juntou artistas, músicos, escritores e actores activos na luta contra o imperialismo e que usam conscientemente a sua arte para ajudar essa luta. Começando de manhã cedo e entrando pela noite fora, mais de 3 000 pessoas escutaram música e poesia, viram pintura e filmes e outras formas de expressão que representavam as culturas de mais de uma dúzia de países e nacionalidades.
Embora as autoridades tivessem recusado autorizar uma manifestação junto ao consulado dos EUA em Bombaim, realizou-se uma combativa manifestação, durante a qual bandeiras dos EUA e de Israel foram queimadas. O MR2004 decidiu tomar em mãos os casos dos presos políticos Camarada Gaurav e Mumia Abu-Jamal e foi emitido um apelo para que toda a gente participe no Dia Global de Acção contra a Ocupação Norte-Americana do Iraque que está a ser organizado para 20 de Março.
Fórum Social Mundial (Bombaim)
O FSM e os seus fóruns sociais regionais têm um carácter muito contraditório. Por um lado, a liderança e o controlo organizativo do FSM está nas mãos de forças (como o Partido dos Trabalhadores do Brasil, cujo Presidente Lula foi anfitrião de anteriores realizações do FSM em Porto Alegre) que criticam afrontas específicas dos imperialistas e das suas instituições mundiais, mas que promovem a ilusão de que através da pressão popular e do diálogo se pode conseguir um sistema económico e social justo, sem eliminar completamente o imperialismo.
Enquanto algumas dessas forças se oponham à actual actuação dos imperialistas dos EUA por uma hegemonia mundial indiscutível, não se opõem ao próprio sistema imperialista. Por exemplo, os seus princípios organizativos excluem “todos os que possam utilizar o sacrifício de vidas humanas para fins políticos”, uma posição que não os impede de aceitar o apoio directo ou indirecto de certos estados reaccionários como a França ou o Brasil, cujas polícias e exércitos já mostraram de inúmeras maneiras serem capazes de “sacrificar vidas humanas” e que o fazem para manter e preservar o domínio das classes exploradoras.
Por outro lado, também é evidente que as palavras de ordem e a actividade do FSM e dos fóruns seus afiliados atraíram um grande número de activistas e progressistas, principalmente das classes médias ultrajadas com as crescentes desigualdades e injustiças no mundo e furiosas com o imperialismo dos EUA e que querem opor-se-lhe de um modo efectivo. A maioria dessas forças é jovem e tem pouca ou nenhuma exposição a um ponto de vista anti-imperialista consistente e completamente fundamentado. Esses indivíduos e forças procuram ansiosamente explicações e soluções mais abrangentes para os problemas do mundo. E muitos deles querem agir. Embora muitas dessas forças tenham diferentes graus de contradição e oposição aos principais líderes do FSM, também é claro que ainda consideram o FSM como uma importante arena na qual podem aprender e interagir com outras forças e pessoas de diferentes países e expressar uma oposição unida e internacional às políticas imperialistas.
Esse carácter contraditório foi mais que evidente logo desde a primeira noite do FSM. Mais de 30 000 pessoas juntaram-se num acontecimento ao ar livre na Feira de Exposições para a sessão de abertura. Programada para falar estavam, entre outros, Arundhati Roy e Shirin Ebadi. Como mencionado acima, Roy também participou no MR2004 e é conhecida pela sua inflexível posição contra muitas formas de dominação e opressão imperialista. Falando aos milhares de pessoas que se juntaram na sessão de abertura do FSM, ela disse que “o imperialismo é como a violação, não há nenhum modo cortês de o descrever.”
Ebadi, a advogada iraniana a quem foi recentemente atribuído o Prémio Nobel da Paz, também falou. Uma carta aberta da Organização de Mulheres 8 de Março (Irão-Afeganistão) ao FSM foi aí distribuída, intitulada “Shirin Ebadi Não Quer ‘Um Outro Mundo’!”. Declarava, em parte, “Shirin Ebadi... é uma pessoa do statu quo. Representa uma tendência política do Irão que acredita na rectificação por dentro do regime islâmico moribundo, corrupto, absolutamente opressivo e odiador da mulher... Essa facção do regime é apenas um grupo com interesses diferentes dentro do completamente reaccionário regime da República Islâmica... (que acredita) que o povo do Irão não tem outra escolha a não ser entre ‘o mau e o pior’”. Os delegados do MRPM (Sul da Ásia) e do MRPM (Europa) distribuíram 1 500 cópias dessa carta aberta durante a sessão de abertura em que Ebadi falou. Assim que as pessoas se deram conta do assunto, fizeram fila para obter cópias, as quais foram todas distribuídas num curto espaço de tempo. Nos dias seguintes, foram impressas e distribuídas no FSM outras 3 000 cópias dessa carta.
O principal slogan do FSM “Um Outro Mundo é Possível” atrai muita gente exactamente a porque sentem que abre a perspectiva de um mundo sem imperialismo. Ao mesmo tempo, os principais organizadores do FSM gostam de salientar que o que realmente estão a tentar é dar “uma face humana” à globalização. Ambos os lados desse debate estavam presentes em praticamente todos os aspectos do evento. Algumas das características de base do FSM, como o facto de se realizar em países oprimidos e de a vasta maioria dos participantes virem de países oprimidos, significa que não se pode falar sobre globalização e guerra, sem também permitir que pelo menos algumas pessoas falem sobre o imperialismo. Isto é assim porque nesses países o domínio e a exploração imperialistas são um facto de tal modo evidente na vida diária de tanta gente, que se ninguém fosse autorizado a falar sobre como o imperialismo é a fonte principal de todos os males do mundo, um acontecimento como o FSM depressa perderia toda a credibilidade. Ao mesmo tempo, a maioria das muitos centenas de seminários e workshops do FSM tendeu a não se concentrar no papel do imperialismo como causa e perpetuador da pobreza e da injustiça, mas bastante em assuntos específicos e modos práticos os abordar, seja através de acções de base e/ou acções políticas, ou através de vários tipos de reforma, pressão eleitoral/legislativa, ou mesmo através de métodos pedagógicos alternativos.
A imprensa local criticou o FSM dizendo que era mais um “festival de rua” que um acontecimento político “sério”. De facto, foi uma mistura de ambos! As pessoas assistiram a reuniões, circularam para compreender o “ambiente” em seu redor ou visitaram as centenas e centenas de postos de informação e mesas de livros montadas por todo o lado. Muitos grupos formaram brigadas, levantaram as suas bandeiras e marcharam pelo local (muitas vezes acompanhados por tambores e outros instrumentos), distribuindo os seus folhetos e geralmente tentando atrair a atenção para a sua causa ou tema. Havia uma quantidade incrível de energia no ar. Longe de apolítica, havia um sentimento de solidariedade, de propósito e destino comuns: um festival dos oprimidos.
Organizações de dalits de toda a Índia e da região tinham-se organizado para assistir ao FSM em Bombaim e a sua grande presença pôs o seu selo em todo o evento. Os dalits, frequentemente chamados “intocáveis” ou “tribais” são as pessoas situadas mais abaixo na escala da sociedade de castas da Ásia do Sul, com poucos direitos e pouco ou nenhum acesso a educação, empregos, cuidados de saúde, etc. Essa foi uma questão centra discutida no Fórum.
Na noite de domingo, a principal sessão foi “Guerras Contra as Mulheres, Mulheres Contra as Guerras”, atraindo cerca de 6 000 participantes. Menos de metade da multidão levantou a mão quando Arundhati Roy perguntou quem percebia inglês. Numa parte das suas observações, que foram traduzidas para hindi, ela falou sobre os pogroms anti-islâmicos inspirados pelo governo, no estado indiano de Guzerate. Depois de recordar como tinham sido brutalmente assassinados e violados centenas de muçulmanos, enquanto a polícia ficava por perto a assistir, declarou que esses acontecimentos mostravam que o actual governo da Índia – encabeçado por Atal Bihari Vajpayee e o seu partido hindu BJP – era de facto um “governo fascista”. Com eleições nacionais na Índia previstas actualmente para os próximos meses e com Vajpayee a esperar ganhar a reeleição, declarou que “a única coisa pior que uma ditadura fascista é uma ditadura fascista eleita!”.
A internacionalmente conhecida escritora egípcia Nawal el Saddawi falou sobre a alegação de que o colonialismo terminou há décadas e que portanto já não poderia ser considerado como tendo qualquer papel na extrema pobreza e na depravação comuns nas ex-colónias. Disse: “eles têm razão, o colonialismo terminou há muito tempo. Mas isso não significa que os países do chamado terceiro mundo – e eu objecto vigorosamente contra essa expressão uma vez que só há um mundo e eu sou tão parte dele como qualquer pessoa dos EUA, da Grã-Bretanha ou de França – isso não significa que já não estejamos a ser dominados pelas antigas potências coloniais... Elas têm agora um modo mais inteligente de o fazer – o neocolonialismo!”. A sua corajosa declaração resultou num grande grito de aprovação da audiência.
Participando na discussão do Dia Global de Acção planeado para 20 de Março, o porta-voz do MRPM advertiu as pessoas contra colocarem a sua fé numa mudança de partido político na Casa Branca e na simples saída de Bush do governo, como alguns defendiam. Recordou que os presidentes do Partido Democrático Kennedy e Johnson enviaram tropas dos EUA para o Vietname e depois fizeram escalar essa guerra a toda a Indochina. E depois Nixon, um Republicano, foi forçado a abandonar o território quando estavam militarmente derrotados nos campos de batalha do Vietname e politicamente derrotados nas ruas dos países do mundo inteiro, incluindo nos próprios EUA. Argumentou que nessa batalha contra a ocupação e a ofensiva norte-americana, como em todas as outras batalhas contra este sistema, não devemos ser desviados para becos políticos e só podemos confiar na nossa própria unidade e luta.
O FSM chegou ao fim a 21 de Janeiro com uma manifestação no centro da cidade de Bombaim, contra a globalização e a guerra. Um total de mais de 10 mil pessoas participou nela.