Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 18 de Janeiro de 2010, aworldtowinns.co.uk

Quem esmagou e pilhou o Haiti?

Porque é que o Haiti é tão pobre?

“A tragédia que continua a perseguir o Haiti e o povo haitiano é bíblica”, entoou a Secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton pouco após o terramoto. “É tão trágico. Eles tiveram quatro furacões o ano passado. Nós tínhamos um bom plano, sentíamo-nos positivos em relação a como podíamos implementar esse plano. E então vem a Mãe Natureza e pura e simplesmente arrasa todo o lugar. Vamos dar ao povo do Haiti o apoio de ele necessita, quando ele atravessa mais uma catástrofe.”

Mas o que é que fez com que tantos haitianos vivessem tão perto do precipício que quando um desastre natural atingiu as suas vidas, eles passaram da catástrofe diária a um pesadelo inimaginável? Qual é a ligação entre como as coisas ficaram como estão no Haiti e as políticas reaccionárias que os EUA estão a implementar neste mesmo momento, quando o povo haitiano precisa de ajuda de emergência como poucos povos alguma vez precisaram?

A verdade é que quando a natureza derrubou os edifícios e deixou um atordoante número de pessoas mortas, feridas e sem casa, o mercado capitalista mundial e as potências imperialistas em cujo benefício esse sistema trabalha, já tinham esmagado o Haiti económica e socialmente. Eles transformaram o Haiti num desastre muito antes da Mãe Natureza ter entrado em cena.

O Haiti tem um lugar de orgulho na história por ser o país do mundo onde ocorreu a primeira e única revolta vitoriosa de escravos. Mas o país que os ex-escravos estabeleceram em 1804 quase nunca, se é que o foi alguma vez, verdadeiramente independente das potências coloniais. A França, seu antigo colonizador, bloqueou o país durante décadas e só acabou por reconhecer a república haitiana quando esta concordou em pagar aos antigos donos das plantações francesas as suas propriedades perdidas. Os bancos franceses emprestaram avidamente ao Haiti o dinheiro para o fazer, começando assim a apropriação das finanças do país para reembolsar esses empréstimos e o deslizar do país para o neocolonialismo. Os Estados Unidos recusaram-se a reconhecer a independência do Haiti até 1862, devido ao medo das consequências do exemplo do Haiti nos escravos do continente.

Finalmente, os EUA, que declararam o Caribe como lago norte-americano, arrebataram o Haiti aos franceses. Os navios de guerra dos EUA fizeram demonstrações de força nas águas haitianas em conjunturas políticas críticas em 17 ocasiões durante a última metade do Século XIX. Em 1915, finalmente invadiram abertamente. A invasão ocorreu durante um longo período de lutas dos camponeses contra os proprietários e o sistema feudal que tinham re-subjugado a maioria dos antigos escravos, apesar de anos de resistência camponesa nas colinas do país. Um exército camponês resistiu aos invasores durante vários anos. Entre as atrocidades que os fuzileiros cometeram ao serviço dos proprietários inclui-se o massacre em 1929 de centenas de camponeses que protestavam contra o trabalho forçado na cidade de Les Cayes.

A ocupação terminou em 1934. Durante esses 19 anos, os EUA constituíram um exército haitiano que viria a ser o principal pilar da vida económica, política e social do país e o principal instrumento do domínio dos EUA. Esse exército esteve na origem das presidências do infame tirano “Papa Doc” Duvalier e do seu filho e sucessor, conhecido como “Baby Doc”. Os EUA e outros estados imperialistas (e mais tarde Israel) treinaram e armaram os Tonton Macoutes dos Duvaliers. A missão dessa milícia era aterrorizar as massas populares, sobretudo nos campos, através da tortura mais brutal e muitas vezes arbitrária e do assassinato de dezenas de milhares de pessoas. Muitos Macoutes foram recrutados entre os pobres, embora os seus membros viessem de todas as classes e instituições sociais, incluindo a Igreja Católica e os padres vudu. Não recebendo nenhum salário, eles viviam do roubo e da extorsão. Duvalier deu ao seu poder um toque populista, chamando-o de “poder negro”, uma vingança das pessoas de pele escura das zonas rurais contra a elite urbana mais clara.

Os EUA mantiveram os Duvaliers no poder durante 30 anos. A meio do início de uma abertura imposta pelos EUA da economia do Haiti ao mercado mundial, em 1986 uma revolta de massas derrubou Baby Doc. Um avião militar norte-americano levou-o para o exílio e mais tarde para França, onde ele tem sido autorizado a ficar em total impunidade – e com muito dinheiro roubado – até aos dias de hoje. Surgiu um movimento dechoukage (desenraizador) de massas, muitas vezes violento, com o objectivo de libertar o Haiti dos criminosos guardiães da velha ordem. Os Macoutes foram perseguidos e punidos. O objecto desse movimento era não só obter justiça contra os “pequenos Macoutes” como também extirpar os “grandes Macoutes” entrincheirados no aparelho militar e estatal. Houve uma greve geral contra as tentativas dos militares de se manterem no poder e grandes ocupações de terras.

Isso ajudou a criar anos de extrema instabilidade política que desde então tem crescido e descido, mas que nunca chegou ao fim devido à interacção das divisões nas classes dominantes e dos motins de massas. Os Macoutes tinham sido sem dúvida o maior e mais vital braço armado do estado. O exército, originalmente aliado próximo das poderosas forças feudais das zonas rurais, acabou por ser dissolvido. Os EUA e os capitalistas haitianos que tinham emergido durante o domínio de Duvalier tinham planos diferentes para o país. Esperavam que o domínio eleitoral – uma ditadura disfarçada baseada no monopólio da violência da lei pelas classes dominantes, dependentes dos EUA – pudesse pacificar o povo e acalmar a situação política. Isso visava aumentar dramaticamente a tendência já antes iniciada de acoplar o Haiti mais directamente ao mercado internacional.

O FMI e o Banco Mundial prepararam um programa de liberalização centrado na privatização das empresas estatais que tinham sido um componente chave do domínio dos Duvalier e numa abertura ainda maior do mercado do país às importações estrangeiras. A vasta maioria das pessoas trabalhava a terra e produzia a sua própria comida e algumas culturas para venda. Parcelas de pequenas dimensões (com um hectare em média), uma quase completa ausência de maquinaria e praticamente sem sequer animais de carga, excepto nas plantações de produção de cana-de-açúcar para exportação, e uma falta de crédito ou qualquer outro tipo de apoio, implicou que essa agricultura camponesa não podia produzir tão barato quanto as enormes e modernas agro-indústrias de capital intensivo dos EUA e outros países. O pouco progresso que houve na agricultura haitiana teve lugar sobretudo nas grandes quintas (de propriedade capitalista), que produzem sobretudo para exportação. Uma peste suína resultou no abate dos porcos dos camponeses e no desaparecimento de uma actividade que tinha sido uma importante fonte de rendimentos para eles. Um punhado de quintas de larga escala, propriedade de investidores privados, com novos porcos resistentes à doença (e importados) começaram a dominar a produção de porcos. O investimento rural das agências internacionais – barragens, estradas, portos, etc. – ajudou ao crescimento da agro-indústria mas pouco fez pela situação dos camponeses, ou ainda a piorou. Sob supervisão do FMI, acabaram as tarifas que protegiam os camponeses haitianos das importações e foi proibido o apoio estatal à agricultura.

Em resultado disso, o Haiti tornou-se no quarto principal mercado norte-americano de arroz, por exemplo. Quando, em 2008, os mecanismos do mercado mundial fizeram disparar de um dia para o outro o preço do arroz e do feijão, as pessoas vieram para as ruas, lutaram e derrubaram o governo. Ainda mais revelador, nos últimos anos, o Haiti teve uma apreciável percentagem de crescimento económico, mas a vida das pessoas deteriorou-se ainda mais.

Devemos manter este pano de fundo na nossa mente, enquanto os EUA e os seus parceiros e rivais planeiam a “reconstrução” do Haiti. Certamente que o país precisa cruelmente de infra-estruturas, mas a questão é: infra-estruturas – e desenvolvimento em geral – para quem e para quê?

O outro lado do programa – as políticas com objectivos específicos de dar forma a mudanças essencialmente definidas pelas forças do mercado – visa usar a ruína da agricultura para tornar os imperialistas e os seus parceiros locais ainda mais ricos através da sobreexploração dos antigos camponeses forçados a deixar a terra. Tem havido algum crescimento da manufactura ligeira para exportação, sobretudo da indústria de vestuário. De facto, é isso que o governo dos EUA está agora a promover como salvação do Haiti. Qualquer pessoa que pense que isto é um exagero, deve ir ao sítio internet do Departamento de Estado dos EUA. Numa conferência de homens de negócios norte-americanos patrocinada o ano passado pelo governo dos EUA no Haiti, foi salientado que os salários haitianos são competitivos com os do Bangladesh, ao mesmo tempo que o Haiti está a uma curta distância dos portos norte-americanos. O que não foi dito, e não precisava de ser, é que o Haiti também está solidamente integrado no que os EUA alegam ser a sua “esfera de influência”, para onde o governo dos EUA envia tropas ou solta os exércitos locais sempre que o povo cria uma séria ameaça ao “clima empresarial” e aos interesses geopolíticos dos EUA: Guatemala 1954, República Dominicana 1965, Granada 1983, Panamá 1989, Venezuela 2002 (um golpe de estado que Chávez conseguiu gorar) e Honduras 2009, só para citar as invasões e golpes norte-americanos no Caribe no último meio século.

Foi assim que Port-au-Prince, uma cidade muito pequena até meados do Século XX, se tornou na residência de quase um terço da população de um país ainda sobretudo rural e agrícola e cujo desenvolvimento não consegue suportar essa urbanização. É por isso que tanta gente foi forçada a viver em ladeiras e desfiladeiros, onde estava particularmente vulnerável a desastres naturais, em choupanas que rapidamente se incendiaram após o terramoto. Frequentemente famintos e sempre no máximo a um passo de distância da fome, eles não tinham nenhum recurso para resistir a qualquer tensão repentina, já para não falar em algo como um dos piores terramotos das últimas décadas.

Como consequência da migração forçada da terra causada pela ruína da agricultura haitiana, a maior exportação do país tornou-se a de seres humanos, de trabalhadores cuja mão-de-obra barata no estrangeiro é outra das coisas que torna esta ilha empobrecida numa tão grande fonte de lucro. Pelo menos 800 mil haitianos trabalham nas plantações de açúcar e noutras indústrias na vizinha República Dominicana, onde não são tratados de uma forma muito diferente da escravatura que eles já tinham derrubado. Mais de 400 mil haitianos vivem legalmente nos EUA e provavelmente quase 200 mil mais sem documentos, trabalhando em fábricas de trabalho intensivo, na indústria do vestuário e outras indústrias, ou nos serviços. Cerca de 100 mil haitianos mais moram no Canadá e 50 mil em França. Entre um quarto a um terço do PIB do Haiti vem do dinheiro que essas pessoas mandam para casa. Como cerca de 70 % dos habitantes das cidades do Haiti não têm nenhum emprego, a única coisa que impede muitas, muitas famílias de morrerem à fome e que injecta muito dinheiro na economia não é a ajuda externa nem o investimento estrangeiro mas o dinheiro ganho pelo suor de familiares forçados a um exílio inóspito.

Porque é que o Haiti é tão politicamente instável?

O mundo oficial alega que a instabilidade política do Haiti é uma razão central para o desejado investimento estrangeiro se manter afastado, como se a pobreza fosse culpa das pessoas. Mas essa instabilidade é um sinal do estatuto neocolonial do Haiti. Os EUA têm intervindo repetidamente para impor governos que levem a cabo as suas políticas, e se esses governos caem um atrás do outro, é porque eles não têm conseguido extinguir a ira do povo que se tem revoltado sucessivamente e para quem essa instabilidade tem um lado positivo, nem resolvido as contradições entre as classes dominantes do Haiti.

Os EUA contavam que as eleições criassem o tipo de governo de que necessita, mas os seus próprios actos têm mostrado onde está o verdadeiro poder. Jean-Bertrand Aristide, um ex-padre que emergiu do movimento dechoukage de meados dos anos 80, foi eleito presidente. O exército derrubou-o em 1991 com o apoio dos EUA.

Depois, quando a junta se revelou incapaz de governar, o exército norte-americano fez regressar Aristide ao governo em 1994 e autorizou-o a dissolver o exército.

Dessa vez, os ocupantes ficaram durante cinco anos. Insistiram em que o governo de Aristide mandasse quase todas as suas reservas bancárias para Washington para pagar as suas dívidas – um eco do pretexto para a invasão de 1915, quando os EUA confiscaram os fundos bancários haitianos para “protecção”. Em 2004, Aristide foi mais uma vez derrubado – num golpe de estado patrocinado pelos EUA. Foi sequestrado por soldados norte-americanos e rapidamente levado para fora do país num avião militar dos EUA. Ainda hoje o seu partido político continua a ser ilegal e ele não foi autorizado a regressar. Milhares de pessoas foram mortas e o ódio aos EUA recrudesceu.

As tropas da ONU têm dirigido o país desde então. A inocentemente chamada MINUSTAH (Missão da ONU de Estabilização do Haiti) disparou frequentemente contra protestos como as revoltas da comida de 2008, invade repetidamente os bairros de lata e dispara as suas armas automáticas de uma forma selvática. Tem sido acusada de controlar esquadrões da morte contra oponentes políticos e outros que ameaçam a “estabilidade”, de violarem mulheres e em geral de se comporem como os Tonton Macoutes dos Duvaliers.

Agora, o Exército e os Fuzileiros dos EUA estão de volta.

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