Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 13 de Abril de 2009, aworldtowinns.co.uk
Peru: Criminosos encarceram criminoso
A 7 de Abril, o ex-Presidente peruano Alberto Fujimori foi condenado por assassinato e sequestro e sentenciado a 25 anos de prisão. Mas, apesar das felicitações de certas organizações de direitos humanos para se sentirem bem, não foi feita justiça. De facto, muito pouca da cobertura noticiosa mencionou questões muito mais importantes que a própria e inegável culpa pessoal de Fujimori. Em primeiro lugar: Será que um só homem pode ser realmente o responsável pelas atrocidades cometidas durante a década em que ele foi presidente? Em segundo lugar: Quem – e que interesses e sistema social – ele estava a servir?
Esse antigo reitor universitário obteve uma vitória surpresa nas eleições de 1990. Apresentou-se como um político fora do sistema, um representante do homem comum, em contraste com os quezilentos políticos do Peru que se tinham desacreditado perante as classes médias e que, ao mesmo tempo, se tinham mostrado incapazes de derrotar a ascendente maré de uma guerra revolucionária com dez anos. Centenas de milhares de pessoas tinham aderido a ela e milhões tinham vindo em apoio dessa sublevação revolucionária armada. Ela tinha por base os mais oprimidos do país, os que são normalmente excluídos da vida política embora constituam a vasta maioria, os camponeses, os habitantes dos bairros de lata urbanos e as pessoas de todas as classes sociais que odiavam a humilhação e a estagnação do país num sistema social económica e politicamente dominado pelos interesses do capital norte-americano. A tarefa de Fujimori era unir as classes dominantes, colocar as classes médias mais integralmente sob o seu controlo e esmagar a revolução liderada pelo Partido Comunista do Peru (PCP) a qualquer preço.
Nisso, ele desfrutou de todo o apoio e colaboração dos EUA desde o primeiro momento do seu mandato – se não mesmo antes.
No dia em que Fujimori foi condenado, os Arquivos Nacionais de Segurança (NSA), um projecto progressista baseado na Universidade George Washington, na capital dos EUA, divulgou seis telexes da Embaixada e do Departamento de Estado dos EUA, que antes eram secretos, com datas entre 23 de Agosto de 1990 e 8 de Junho de 1993, o período em que Fujimori cometeu os actos pelos quais foi agora condenado. Esses documentos revelam que o governo norte-americano sabia desde o início dos seus detalhes, extensão e objectivos. Apesar disso, durante esse período, os EUA encobriram-nos ao mesmo tempo que proporcionavam ao governo peruano mais apoio económico e militar que nunca, numa dimensão continuamente crescente de tal forma que, em 1993, o tornou no recipiente número um da América do Sul de dinheiro do governo dos EUA.
O resumo do primeiro telex secreto enviado da embaixada dos EUA em Lima para Washington, feito pelos Arquivos, diz o seguinte: “Apenas algumas semanas após a eleição de Fujimori, um agente de informações que trabalhava com o SIN (o Serviço Nacional de Informações peruano) informou agentes da embaixada dos EUA de um plano encoberto, alegadamente ‘uma criação do conselheiro presidencial Vladimiro Montesinos’, para levar a cabo assassinatos extrajudiciais de suspeitos de terrorismo. O treino dessas novas ‘equipas de assassinato’ já está a decorrer, relatava a fonte. Também declarava que o plano tinha ‘a aprovação tácita do Presidente Fujimori’.”
Montesinos, que viria a encabeçar a guerra suja de Fujimori, era bem conhecido das agências norte-americanas de informações. Durante anos, ele fora um ‘activo’ da CIA. Durante os anos 70, foi expulso do exército peruano e encarcerado por ter participado em reuniões secretas não autorizadas em Washington, onde informava a CIA sobre a influência soviética nas forças armadas peruanas. Mais tarde, começou a trabalhar como advogado e confidente de traficantes de droga. Depois de se ter associado a Fujimori, recomeçaram as suas viagens a Washington, desta vez para se reunir com generais norte-americanos, em vez dos seus agentes. A manutenção do apoio dos EUA a Montesinos é melhor exemplificada como sendo “o cão que não latia”: embora os EUA soubessem das suas ligações aos barões da droga do Peru antes e durante os seus anos como homem de Fujimori responsável pelo trabalho sujo, não disseram nada sobre isso até ele ter ultrapassado o seu prazo de utilidade e ter perdido as graças de Washington. Alguns responsáveis norte-americanos declararam que derrotar a guerra revolucionária era mais importante que impedir o tráfico de droga.
O nome desses esquadrões da morte seria rapidamente conhecido em todo o mundo: La Colina, organizados pelo SIN sob o comando de Montesinos e operando, segundo depoimentos e documentos apresentados durante os 15 meses do julgamento de Fujimori, com o total conhecimento e aprovação do presidente. O primeiro dos três crimes de que Fujimori foi acusado neste julgamento ocorreu em Novembro de 1991, quando um esquadrão da morte invadiu uma churrascada de galinha num bairro de Lima, que disseram ser uma recolha de fundos para um jornal pró-PCP. Catorze adultos e um rapaz de oito anos foram abatidos a metralhadora no pátio de um prédio de apartamentos de um bairro de lata em Barrios Altos.
Esse massacre não foi feito para ser segredo – visava aterrorizar apoiantes activos e potenciais da guerra popular. Fujimori nunca quis que a sua alegação de que não sabia de nada fosse levada a sério. O telex de 2 de Dezembro de 1991 da Embaixada dos EUA divulgado pelos NSA torna claro que o governo norte-americano sabia exactamente o que se estava a passar. Um desses telexes indica que o embaixador dos EUA avisou Fujimori sobre o perigo de o exército ficar “desacreditado pelas alegações de envolvimento paramilitar no massacre de Barrios Altos”. No julgamento de Fujimori, isso foi usado como prova de que ele sabia do La Colina. Mas ninguém parece ter salientado, quer no tribunal, quer na comunicação social, que também indica que os EUA também sabiam de tudo e optaram por manter isso em segredo, caso o próprio Fujimori e as forças armadas ficassem “desacreditadas”.
Em Abril de 1992, procurando pôr fim às lutas internas entre os políticos da classe dominante do Peru e centrar todos os esforços em inverter a maré revolucionária, Fujimori mandou os tanques fechar o Congresso e instituiu o seu próprio poder pessoal, com o apoio dos militares. Porque é que não foi feita nenhuma acusação contra ele por este acto altamente ilegal? Porque nessa altura os EUA reconheceram o seu governo de “auto-golpe” como legítimo, após uma expressão pública inicial de consternação e aumentaram indiscutivelmente o seu apoio a Fujimori. O mesmo fizeram o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, numa súbita inversão da sua relação com anteriores governos peruanos. A condenação do golpe pela Organização dos Estados Americanos e a posição da Amnistia Internacional de que o regime de Fujimori tinha o “pior registo de direitos humanos do mundo” foram ignoradas.
O embaixador norte-americano, Anthony Quainton, tinha estado colocado antes na Nicarágua, na altura em que os EUA aí levavam a cabo uma guerra encoberta contra o governo sandinista. O General do Exército norte-americano George Jowland foi enviado para o Peru. Richard Meadows, que tinha participado em operações clandestinas dos EUA no Vietname e no Irão, estava agora colocado como director de segurança de uma plantação de óleo de palma numa zona de combates crucial, onde dirigia uma força mercenária “privada”. Os EUA começaram a fornecer helicópteros, pilotos, mecânicos e tropas para trabalharem com as forças armadas peruanas. Montaram mesmo bases militares, incluindo uma em Santa Lúcia, perto da plantação de Meadows, a maior base dos EUA a sul do Panamá nessa altura. O que é que podiam fazer que não fosse encobrir os crimes das forças armadas peruanas com quem trabalhavam tão de perto?
A segunda acusação contra Fujimori foi a sua responsabilidade nos assassinatos por esquadrões da morte na universidade conhecida como La Cantuta em Julho de 1992. Como parte da sua tentativa de fazer parar a ebulição revolucionária, ele enviou o exército para ocupar as principais universidades de Lima e de algumas outras cidades. Os estudantes rechaçaram a tentativa inicial do exército para tomar La Cantuta, uma escola técnica e de ensino cujos jovens tinham organizado manifestações em bairros pobres em defesa da guerra popular. Num segundo ataque, as tropas esvaziaram as unidades de habitação e prenderam cerca de 500 estudantes. Nove estudantes e um professor foram levados dali e nunca mais foram vistos. Várias universidades permaneceram sob controlo militar durante muitos meses.
Uma vez mais, o que aconteceu não era segredo nenhum. Um oficial superior do exército denunciou-o publicamente e foi forçado a exilar-se. Em Abril do ano seguinte, uma fuga de documentos dava detalhes da operação e alguns meses depois os corpos foram encontrados em sepulturas clandestinas. Apesar disso, durante a maior parte dos anos 90, foi sobretudo a determinação das famílias das vítimas, que corajosamente denunciaram e organizaram protestos públicos apesar do perigo, numa altura em que a maioria das forças políticas se mantinha silenciosa, que impediu esses casos de ficarem enterrados e esquecidos.
Dois outros acontecimentos em 1992, que não surgiram no julgamento de Fujimori, revelam ainda mais do que as provas que foram apresentadas.
Em Maio desse ano, também pouco depois do seu “auto-golpe”, Fujimori enviou o exército à prisão de Canto Grande em Lima, onde estavam detidos cerca de 500 presos políticos. Depois de subjugarem os prisioneiros que lutavam para se defenderem, seleccionaram e assassinaram cerca de 40 homens e mulheres suspeitos de serem líderes do PCP. Os EUA não disseram nada, tanto quanto se sabe, nem esse massacre entrou no julgamento de Fujimori. Para algumas pessoas, matar revolucionários capturados não gera controvérsia.
Depois, em Setembro, surgiu o maior triunfo de Fujimori: a sua polícia – com um apoio dos EUA que pode nunca vir a ser conhecido – capturou o Presidente Gonzalo (Abimael Guzmán) do PCP e outros líderes de topo do partido. Num procedimento judicial militar secreto que durou pouco mais que a leitura das acusações, oficiais com a cara tapada condenaram Gonzalo à prisão perpétua em isolamento pelo crime forjado de “traição à pátria”. Fujimori proclamou publicamente que Gonzalo poderia não vir a viver muito tempo. Instado a comentar essa descarada caricatura de justiça, um porta-voz do Departamento de Estado dos EUA disse à imprensa: “O Sr. Guzmán é o líder do movimento terrorista mais brutal do hemisfério ocidental... Não temos nenhum comentário a fazer sobre os procedimentos judiciais pelos quais foi julgado.” (Revista Um Mundo A Ganhar, n.º 18, 1992)
Um ano após a captura de Gonzalo, Fujimori anunciou à ONU e ao mundo que Gonzalo e outros líderes do partido tinham emitido um apelo a negociações de paz para terminarem a guerra popular. Das prisões surgiu um importante documento do partido – em nome de Gonzalo – alegando que a guerra não podia continuar sem a sua liderança e que portanto o partido deveria dissolver o seu exército, terminar a guerra e encontrar uma “solução política”. Os quadros do partido fora das prisões que quiseram continuar a guerra revolucionária alegaram que essa sua alteração de linha era uma “farsa” mantida por Fujimori e Montesinos. Nos anos seguintes, a interacção entre o aparente apelo de Gonzalo ao fim da guerra popular e a confusão ideológica e política entre os que o rejeitaram feriu a revolução ainda mais do que Fujimori tinha sido capaz. Durante a última década, mantiveram-se acções armadas ocasionais em diferentes bolsas do país, levadas a cabo por grupos com visões contraditórias sobre o apelo aos acordos de paz.
À medida que a revolução perdia a sua vitalidade e a sua orientação revolucionária durante os anos 90, também Fujimori começou a perder o seu brilho para os EUA, embora esse processo não tenha sido linear nem numa relação directa com o declínio da guerra popular. O seu governo de um só homem revelou-se instável e cada vez mais desnecessário e a corrupção que inundava o seu governo foi um factor de desunião entre as classes dominantes, de alienação entre as classes que normalmente olham para a política eleitoral e de ineficiência em geral. (A terceira e última das acusações contra Fujimori no seu recente julgamento, a ordem de 1992 para o sequestro temporário de um jornalista da oposição e de um homem de negócios, está relacionada com a luta interna dentro da “classe política” peruana e aparece em contraste com os outros dois massacres com a qual é comparada, uma vez que ninguém foi sequer ferido.) Ele conseguiu obter um terceiro mandato nas eleições de 2000, mas enfrentou uma renascida oposição popular e já não desfrutava do apoio dos EUA. A divulgação de um vídeo que mostrava Montesinos a subornar um importante congressista da oposição destapou um escândalo que forçou o presidente a fugir para o Japão e enviar a sua demissão por fax.
Um mal planeado regresso ao Chile, na esperança de regressar à política eleitoral, resultou em vez disso na sua extradição e em dois julgamentos no Peru. O primeiro, em 2007, foi por ter ordenado o roubo da casa da mulher de Montesinos, numa tentativa desesperada de obter vídeos incriminatórios antes que outros os descobrissem. Estas mais insignificantes das possíveis acusações mostram uma relutância inicial em lidar com os crimes mais sérios de Fujimori. No ano seguinte iniciou-se o julgamento que recentemente terminou.
Fujimori tinha forçado ao exílio o actual presidente peruano, Alan Garcia, após o seu auto-golpe e não é difícil perceber o ciclo de vingança. Mas, por trás disso, os EUA parecem ter concluído que os dias de Fujimori acabaram. Deixá-lo politicamente activo apenas iria perturbar a boa ordem de exploração e opressão, enquanto um julgamento mais político sustentaria a ideia de que o actual sistema eleitoral e legal torna desnecessária a revolução.
Este tipo de alternância entre ditadura aberta da burguesia e ditadura democrática burguesa já se viu antes, sobretudo em países dominados pelo sistema económico e político imperialista. Um ditador odiado está na prisão, mas mesmo ele descobriu vantagens nas eleições, e embora a sua forma de governo fosse frequentemente individual e não parlamentar, ele foi apoiado pelo mesmo exército, por muita da mesma classe dominante e pela mesma superpotência que o Presidente Garcia antes dele (1985-1990) e depois dele (desde 2006). Prevalece o sistema económico capitalista que emergiu dos terrenos feudais do Peru e do domínio imperialista e as velhas classes dominantes que ainda representam esse sistema continuam a governar, exercendo a sua ditadura sob a forma de democracia eleitoral.
E quanto aos EUA? Usaram Fujimori quando dele precisaram e depois descartaram-no quando se transformou num fardo.
O actual Presidente Garcia não tem menos sangue nas suas mãos, durante os seus primeiros cinco anos de governo, pela morte de 69 camponeses (incluindo 21 crianças com menos de cinco anos) na aldeia de Accomarca, assassinados por uma patrulha do exército em 1985, e pelo assassinato de centenas de presos políticos em 1986, pelo massacre de 1988 na aldeia de Cayara e pelo subsequente assassinato de pelo menos nove testemunhas para o encobrir. Durante a sua primeira presidência, milhares de pessoas “desapareceram” às mãos do exército e dos seus próprios esquadrões da morte.
Não há melhor indicação do que significa ou não significa o julgamento de Fujimori que o facto de que foi durante o governo de Garcia que Fujimori foi condenado por fazer exactamente o mesmo tipo de coisas que fez Garcia, enquanto os EUA observam, sempre a sorrir.