Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 9 de Março de 2015, aworldtowinns.co.uk

Palestina: Um dia de expulsão, 1949

Perda de território palestino, 1947-2005

O romance histórico israelita Khirbet Khizeh foi recentemente publicado pela primeira vez por uma editora de grande dimensão e numa edição norte-americana, ficando assim mais amplamente disponível e mais proeminentemente revista. A este propósito, voltamos a editar a recensão crítica deste livro que surgiu originalmente na edição do SNUMAG de 17 de Dezembro de 2012. Para uma breve descrição da infame execução em massa e violação de palestinianos na aldeia de Deir Yassin em 1948 e para uma maior discussão do planeamento e concretização pelos israelitas da limpeza étnica da Palestina, ver o SNUMAG de 10 de Dezembro de 2007.

O livro Khirbet Khizeh, de S. Yizhar, fala de uma expulsão de palestinianos da aldeia deles nos últimos meses da guerra de 1948-49. A novella (romance curto) justapõe com mestria bonitas imagens da paisagem da Palestina com a brutalidade dos soldados israelitas. Sente-se o seu enfado, indiferença, raiva, a sua excitação ao matarem misturada com a perspectiva de que têm direito a possuírem essa terra já habitada e com as ocasionais agonias de consciência deles quando forçam os aldeãos ao exílio. O que se desenrola na descrição de Yizhar é um único dia da implementação do “Plano D” adoptado em Março de 1948 pelo dirigente sionista e primeiro primeiro-ministro israelita David Ben-Gurion (o arquitecto político e ideológico de vários esquemas para libertar a terra dos seus habitantes palestinianos) e pelo grupo dele. O Plano D – um plano agressivo para desalojar os palestinianos – autorizava os comandantes militares a usar todos os métodos para atingirem os seus objectivos.

Este foi um dos primeiros romances escritos em hebraico. Reconhecido como obra-prima literária pouco depois de ter sido inicialmente publicado em 1949, foi comparado à obra do romancista norte-americano William Faulkner, o qual escreveu sobre o Sul profundo e a complexa relação entre os brancos fanáticos e os descendentes dos escravos.

O surgimento de Khirbet Khizeh no recém-criado estado de Israel causou um torvelinho de controvérsia. A sua qualidade literária só tornou o debate ainda mais azedo. Algumas pessoas elogiaram-no pela sua honestidade, enquanto outras condenaram-no por estar a conspurcar os objectivos pretensamente legítimos e nobres do Sionismo. Odiaram-no porque, baseando-se na sua própria experiência de soldado israelita, o livro de Yizar mostrou a mentira da narrativa fundacional israelita, de que os palestinianos tinham abandonado as suas terras de livre vontade ou que tinham feito o que os chefes dos estados regionais árabes lhes tinham dito. Esta narrativa da “fuga” manteve-se largamente incontestada em Israel durante quase três décadas até que alguns dos “Novos Historiadores”, como Ilan Pappé e outros, desafiaram essa tese com novas provas de arquivo que passaram a estar disponíveis. Khirbet Khizeh não foi traduzido para inglês senão em 2008 e não foi publicado fora de Israel senão em 2011, pela Granta Books de Londres.

S. Yizar era o pseudónimo de Yizar Silanksy. Apesar do seu passado familiar sionista e das suas ligações políticas (era amigo íntimo de David Ben-Gurion), ele tinha consciência do dilema moral que representava a perspectiva sionista de um estado “só para judeus”.

O tormento do narrador atrai imediatamente o leitor: “É verdade, aconteceu tudo há muito tempo, mas tem-me perseguido desde então. Tentei abafar isto com a algazarra do passar do tempo, diminuir o seu peso, limar as suas arestas com a pressa da vida diária, e ocasionalmente cheguei a conseguir um sóbrio encolher de ombros, consegui ver que afinal de contas tudo não tinha sido assim tão mau, felicitando-me pela minha paciência, que é, claro, irmã da verdadeira sabedoria. Mas, às vezes, eu voltava a tremer, surpreendido por quão facilmente eu tinha sido seduzido, conscientemente desviado e por me ter juntado à grande massa geral de mentirosos – essa massa composta de ignorância grosseira, indiferença utilitária e egoísmo sem vergonha...”

Então, o autor relata o dia em questão: “O objectivo de todo aquele dia desde o início, a ‘ordem operacional’ número tal... a cláusula marcante intitulada ‘informação’ que avisava imediatamente do crescente perigo de ‘infiltradores’, de ‘células terroristas’ e (numa maravilhosa reviravolta de frase) de ‘operacionais enviados em missões hostis’, mas também a cláusula subsequente e ainda marcante que declarava explicitamente: ‘agrupe os habitantes da área que vai do ponto X (ver mapa anexo) ao ponto Y (ver o mesmo mapa) – meta-os nos meios de transporte e leve-os para trás das nossas linhas; faça explodir as casas de pedra e queime as cabanas; detenha os jovens e os suspeitos e limpe a zona de ‘forças hostis’.”

“(...) Moishe, o comandante da companhia (...) fez-nos um resumo da situação, da lei da terra e do objectivo. Daí concluí que as poucas casas na encosta inferior da outra colina eram uma tal Khirbet Khizeh ou uma outra aldeia, e todas as colheitas e campos vizinhos pertenciam a essa aldeia cuja água abundante, boas terras e célebre agricultura lhe tinham dado uma reputação quase igual à dos seus habitantes que eram, disseram eles, um bando de rufias que ajudavam o inimigo e estavam prontos para qualquer maldade caso surgisse uma oportunidade; ou, por exemplo, caso acontecesse encontrarem algum judeu, era certo que eles o eliminariam de imediato – tal era a natureza deles e tais eram os modos deles.”

Informados de que os soldados teriam de esperar, eles cantam canções, contam contos, cabeceiam para dormir ou discutem a sua missão e o “Ayrabs”:

“Que o Diabo os leve”, disse Gaby, “que bonitos lugares eles têm”.
“Tinham”, respondeu o operador. “Já são nossos.”
“Rapazes”, disse Gaby, “por um lugar assim, nós lutaríamos como não sei o quê, e eles estão a fugir, nem sequer resistem!”
“Esqueçam esses árabes – eles nem sequer são humanos”, respondeu o operador.

Durante a espera, o narrador começa a pensar sobre como combater uma guerra era uma coisa, lutar para nos mantermos vivos, independentemente dos fins da guerra. Mas esvaziar as aldeias “atormentava a alma, e a melhor coisa a fazer era libertarmo-nos disso, darmos um olhar furioso e fixarmo-nos nessa mesma aldeia, qual é o nome dela, aquela à nossa frente”. O narrador não faz a ligação entre os pontos de que o esvaziar sistemático das aldeias palestinianas que ele descreve era desde o início um objectivo fundamental da guerra. “Antes, as aldeias eram algo que se atacava e se tomava intempestivamente. Hoje não eram senão um vazio bocejante que gritava com um silêncio que era simultaneamente cruel e triste. Estas aldeias vazias, estava a chegar o dia em que começariam a gritar. Quando passávamos por elas, de repente, sem se saber de onde, descobríamo-nos silenciosamente seguidos por olhos invisíveis de paredes, pátios e vielas. Desolador silêncio abandonado. Os intestinos apertavam.”

Quando é dada a ordem de atacar e o fogo de artilharia ecoa a toda a volta, há um grande deleite entre os soldados israelitas. Discutem quem são os melhores a disparar e quem deveria usar a metralhadora. Muitos aldeãos conseguem escapar com nada mais que as suas roupas às costas. Mães frenéticas juntam desesperadamente os seus filhos, mas elas e as outras pessoas não conseguem partir antes da chegada dos soldados.

Ao atravessar a aldeia, o narrador fica perturbado por quão semelhante é às inúmeras outras que eles tinham tomado, e pelos sinais de vida deixados pelos que tinham acabado de fugir.

“Os colchões ainda estavam estendidos, o fogo entre as pedras das cozinhas ainda estava activo, num momento as galinhas estavam a debicar no lixo como sempre e logo estavam a fugir guinchando como se estivessem quase a ser sacrificadas. Os cães cheiravam desconfiadamente, meio a aproximarem-se, meio a latirem. E os utensílios no pátio ainda estavam – e isso era claro – em uso activo. E o silêncio ainda não se tinha estabelecido, excepto como uma espécie de espanto e estupefacção, como se o resultado ainda não estivesse decidido e ainda fosse possível as coisas endireitarem-se e restabelecerem-se da forma como eram antes. Num pátio, um burro mantinha-se estático, com colchões e mantas coloridas empilhadas no seu dorso, a caírem para os lados e a desmoronarem-se no chão, porque quando estavam a ser carregados à pressa, o sussurrar do medo ‘Eles já cá estão!’ tinha vencido as pessoas e elas tinham gritado: ‘Para o inferno com isto, fujam!’ E no pátio seguinte, que tinha um jardim de cozinha com um bem cuidado canteiro de batatas, a boa qualidade da sua terra e o verde luminoso das folhas chamavam-nos e diziam-nos: vão directamente para casa e não façam mais nada a não ser cultivar bonitas batatas.”

À medida que os soldados avançavam pela aldeia, deixando para trás as primeiras colunas de fumo, juntavam os aldeãos que tinham ficado e não tinham conseguido escapar.

“Quando uma casa de pedra explodiu com um estrondo ensurdecedor e uma alta coluna de pó – com o seu telhado, visível de onde estávamos, a flutuar pacificamente no ar, completamente expandido, intacto, e de repente partindo-se e separando-se alto no ar e desabando numa massa de escombros, pó e uma saraivada de pedras – uma mulher, de quem aparentemente era a casa, saltou, explodiu num uivar selvagem e começou a correr nessa direcção, segurando um bebé nos seus braços, enquanto outra criança miserável que já se conseguia manter de pé apertava a bainha do vestido dela, e ela gritou, apontou, falou e sufocou, e então o amigo dela levantou-se, e um outro e um velho também se levantaram, e outras pessoas puseram-se de pé quando ela começou a correr, ao mesmo tempo que a criança que prendia a bainha do vestido dela foi arrastada durante um momento e tropeçou no chão e gritou... De repente, ela tinha percebido, parecia, que não se tratava de ficar à espera debaixo da árvore de sicómoro a ouvir o que os judeus queriam e depois ir para casa, mas que a casa dela e o mundo dela tinham acabado de desaparecer completamente, e que tudo se tinha tornado escuro e estava a desmoronar-se; de repente, ela tinha compreendido algo inconcebível, terrível, incrível e directamente à frente dela, real e cruel, corpo a corpo, e que não havia forma de voltar atrás.”

Há algumas interrogações e gracejos para trás e para a frente entre os soldados israelitas. “O que é que lhes irá acontecer? O que irão eles comer ou beber?” perguntou um soldado. Um outro responde: “Pára de pensar tanto. E se isso é o que tu sentes, podes ir com eles.”

“Algo me atingiu como um raio. De uma só vez, tudo parecia querer dizer algo diferente, mais precisamente: o exílio. Isto era o exílio.”

Os palestinianos são agrupados e levados em camiões. Quando o narrador diz ao seu oficial comandante que isto é uma guerra imunda, é-lhe dito que os imigrantes judeus virão e povoarão esta terra e que ela ficará bonita, um Khizeh hebraico nas ruínas da antiga aldeia.

Abundam as referências bíblicas ao longo do livro, referindo-se aos dois mil anos de exílio dos judeus. Mas aqui os judeus são agora os senhores que chegaram, dispararam, queimaram, fizeram explodir e mandaram outros para o exílio. Apesar desta constatação, o narrador não consegue ultrapassar a sua paralisia moral e a sua cumplicidade.

Crimes muitos maiores foram cometidos durante as expulsões que ocorreram no livro, onde nenhum palestiniano é morto. Embora Khirbet Khizeh seja uma aldeia fictícia, é ainda assim emblemática das verdadeiras expulsões que aconteceram com o estabelecimento do estado de Israel e que continuam a acontecer ainda hoje em cada vez maior número nas zonas perto dos colonatos israelitas na Cisjordânia.

O historiador israelita Pappé chama ao que o movimento sionista liderado por David Ben-Gurion e pelos seus conselheiros mais próximos iniciaram em 1948 de “limpeza étnica”. Mais de 500 aldeias palestinianas foram esvaziadas à força dos seus habitantes através de ataques terroristas levados a cabo por várias milícias israelitas como a Stern Gang, a Haganah e a Irgun, bem como pela Força de Defesa Israelita. Pappé refere os arquivos militares e políticos recentemente desbloqueados, bem como os diários de David Ben-Gurion. As directivas do Plano Dalet incluíam “bombardear aldeias... lançar fogo a casas, propriedades e bens, expulsão, demolição e espalhar minas entre os escombros para impedir que quaisquer dos habitantes expulsos regresse”. Pappé também documenta a forma como foram envenenados abastecimentos de água e refere que entre as atrocidades cometidas estavam massacres e a violação de muitas mulheres. Tudo isso foi apagado da história israelita convencional.

Cerca de 800 000 palestinianos foram exilados, mais de metade da população da Palestina da altura, segundo os números de Pappé. Os palestinianos chamam a isto Nakba ou catástrofe.

No livro, os soldados divergem entre si sobre o que estão a fazer. “Enquanto discutem, ficam impressionados com uma mulher com uma criança de sete anos. Havia algo de especial em relação a ela. Parecia rígida, autocontrolada, austera no seu sofrimento. As lágrimas, que quase não pareciam ser dela, escorriam pela sua face. E também a criança estava a soluçar uma espécie de ‘o que é que vocês nos fizeram’ de lábios rígidos. (...) Senti-me envergonhado pela presença dela e baixei os meus olhos. Era como se houvesse um clamor no andar deles, uma espécie de acusação carregada: Malditos sejam (...) uma determinação a suportar o seu sofrimento com coragem, e de como agora, que o seu mundo tinha ficado em ruínas, ela não queria quebrar perante nós. Exaltados na sua dor e sofrimento por cima da nossa – cruel – existência, eles seguiram o seu caminho e nós também pudemos ver como estava a acontecer algo no coração do miúdo, algo que, quando crescesse, só se poderia tornar numa víbora dentro dele, essa coisa que agora era o lamento de uma criança impotente.”

O narrador é apanhado entre a indiferença dos outros soldados e a sua própria repugnância pelo que ele e os outros estavam a fazer. Mas, ao chamar “víbora” à justa raiva do miúdo, ele revela uma atitude que ainda vê o que considera serem os interesses do “seu povo” como sendo mais elevados que os interesses de outros seres humanos. Ele odeia os métodos que estão a ser usados para criar Israel, mas não rejeita o objectivo de um estado sionista na Palestina. Por isso não consegue resolver o seu dilema moral. Revoltado com o que ele e outros soldados israelitas estão a fazer, ele mantém-se cúmplice com o que sabe ser intolerável.

O próprio autor estava menos dividido. Ele passou uma boa parte da sua vida como oficial do exército israelita.

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