Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 30 de Março de 2009, aworldtowinns.co.uk
O sofrimento de Binyam Mohamed e o futuro da “guerra ao terror” dos EUA e da Grã-Bretanha
A Scotland Yard, a agência policial britânica conhecida formalmente como Polícia Metropolitana, anunciou que irá investigar a acusação feita pelo ex-prisioneiro de Guantânamo libertado em Fevereiro, Binyam Mohamed, de que o governo da Grã-Bretanha e o seu serviço secreto MI5 foram cúmplices na sua tortura às mãos dos EUA e de outros que actuaram a seu lado durante os seus quase sete anos de detenção.
O anúncio da polícia surge em resposta a um pedido do Procurador-Geral da Grã-Bretanha, a Baronesa Scotland. O pedido dela para que a polícia investigasse o governo foi um passo invulgar e de certa forma duro e, dado que ela tinha revisto os registos governamentais e outro material classificado, implica que ela considera que as acusações são bem fundamentadas. Porém, ao mesmo tempo, ao escolher tomar essa via, ela negou os pedidos do antigo procurador principal da Grã-Bretanha, de membros do Parlamento e de outras pessoas para que instaurasse um inquérito judicial independente. Em vez disso, ela na prática pediu ao governo que se investigasse a si próprio. Os principais membros deste governo são potenciais alvos dessa investigação. Por exemplo, Jack Straw, actual Secretário de Estado da Justiça, era o Secretário dos Negócios Estrangeiros durante o período de sofrimento de Mohamed e foi acusado de responsabilidade directa da cumplicidade britânica na tortura de Mohamed e de depois a ter encoberto.
A investigação da Polícia Metropolitana que se branqueou a si própria após o assassinato pela polícia a 22 de Julho de 2005 de Jean Charles de Menezes é uma razão para uma certa falta de confiança em que se fará justiça no caso de Binyam Mohamed. Mas uma razão mais profunda é a atitude do governo, muito longe do arrependimento, que continua a bloquear as tentativas para se conseguir que divulgue documentos que poderiam provar as alegações de Mohamed. Chegou mesmo a ir ao ponto de se recusar a cumprir uma decisão de Outubro de 2008 do Supremo Tribunal da Grã-Bretanha de que o governo tinha o “dever” de entregar mais de 42 documentos específicos que dizem respeito ao caso dele. O Secretário dos Negócios Estrangeiros David Miliband disse que libertar esses registos que detalham o que as agências de espionagem dos dois países fizeram a Mohamed iria “comprometer a cooperação de informações” entre a Grã-Bretanha e os EUA.
Mohamed foi preso no aeroporto de Carachi em Abril de 2002, quando tentava sair do Paquistão com o que ele diz ser um passaporte britânico emprestado. Ele disse o seguinte através dos seus advogados (The Observer, 8 de Fevereiro de 2009): Pouco depois de se ter convertido ao Islão em 2001, foi estudar com os talibãs no Afeganistão para “resolver questões pessoais”, incluindo o uso de drogas. Para sair da região após a invasão norte-americana/britânica, tentou usar o passaporte de um amigo porque, sendo um etíope a residir na Grã-Bretanha e a tentar obter asilo político, o governo etíope não teria concordado em substituir o que ele tinha perdido. Foi levado para um centro de detenção onde, entre outras torturas, foi pendurado por uma correia de couro à volta dos seus pulsos durante uma semana. Durante esse tempo, foi interrogado por agentes da CIA e visitado por dois agentes do MI5, um dos quais, conhecido como “testemunha B” nos registos governamentais, se espera que venha a ser o centro da investigação policial. “Eu tinha sido franco com eles”, disse Mohamed em relação aos agentes britânicos que lhe disseram que iriam “tentar fazer alguma coisa” sobre a forma como os norte-americanos o estavam a tratar. “Contudo, as próprias pessoas que eu estava à espera que me viessem salvar, percebi depois, tinham-se aliado aos meus abusadores” (Guardian, 23 de Fevereiro).
A CIA levou-o para Marrocos onde “Eles tiraram-me as roupas com uma espécie de bisturi de médico. Eu estava totalmente nu. Tinha receio de perguntar a Marwan [o interrogador] o que ia acontecer porque isso revelaria medo. Tentei pôr uma cara de valentia. Mas talvez me fossem violar. Talvez me electrocutassem. Talvez me castrassem.
“Um deles pegou no meu pénis com a mão e começou a fazer cortes. Fez isso uma vez e esperaram talvez um minuto, a observar a minha reacção. Eu estava em agonia, chorando, tentando desesperadamente reprimir-me, mas estava a gritar. Eles devem ter feito isso 20 a 30 vezes, durante talvez duas horas. Havia sangue por todo o lado.”
Durante essa parte do seu encarceramento, mostraram-lhe fotografias e fizeram-lhe perguntas que pareciam ter sido enviadas pelos serviços secretos britânicos. Mais tarde, quando o enviaram para Guantânamo, a sua advogada militar norte-americana, a Tenente Coronel Yvonne Bradley, obteve e mostrou-lhe dois telegramas do MI5 para a CIA que indicavam que a Grã-Bretanha estava a participar activamente na condução desse interrogatório. O governo britânico tem-se recusado até agora a divulgar esses telegramas ou a confirmar ou negar a sua existência.
Mohamed disse que, para parar a tortura, confessou falsamente “o que eles queriam ouvir”.
Porém, isso não foi o fim do seu sofrimento. Em Janeiro de 2004, foi levado para uma prisão da CIA em Cabul, no Afeganistão, onde passou pelo que disse ter sido a pior experiência de todas. “O interrogatório começou logo desde o início. A CIA trabalhava as pessoas, incluindo eu, dia e noite, antes de eu partir. Muitas enlouqueceram. Eu ouvia pessoas a bater com as cabeças contra as paredes e as portas, aos gritos.” Foi repetidamente espancado, atirado contra as paredes e acorrentado de forma a não se poder nem levantar nem sentar. Numa altura, foi mantido assim em escuridão total durante oito dias.
Esta parte da sua história tem uma particular relevância actual. Parece provável que “a escura prisão” em Cabul seja a secção da CIA da prisão norte-americana da Base de Bagram da força aérea. Embora o presidente norte-americano Barack Obama tenha prometido que Guantânamo seria fechada no futuro, o seu governo está a planear duplicar a capacidade destas instalações, que já foram uma prisão soviética e que estão agora sob total controlo dos EUA. Crê-se que tenha muito mais de 500 prisioneiros, tantos quanto até recentemente tinha Guantânamo, e que irá deter 1100. É importante salientar que embora os juízes norte-americanos tenham rejeitado o argumento do governo Bush de que os prisioneiros de Guantânamo não tinham direitos de habeas corpus para recorrerem aos tribunais norte-americanos, já que consideravam a base como parte da jurisdição dos EUA, o governo de Obama alegou recentemente em tribunal que, ao contrário de Guantânamo, Bagram está numa “zona de guerra” e, por isso, quem estiver aí detido não tem direitos nenhuns. (Ver Karen J. Greenberg. “O Legado Vivo de Bush na Prisão de Bagram”, publicado em tomdispatch.com, 5 de Março. A autora, Directora Executiva do Centro para a Lei e a Segurança da Faculdade de Direito da Universidade de Nova Iorque, escreveu um livro onde chama a Guantânamo “o menos pior lugar” comparado com Bagram, por exemplo. Embora se descreva a si própria como “uma perpétua optimista” que quer ver Obama a definir um rumo diferente do de Bush, ela pergunta se Bagram não poderá vir a ser “o Guantânamo de Obama”.)
Depois de Bagram, a CIA levou Mohamed para Guantânamo onde, ironicamente, ele teve sorte em ver nomeada como advogada uma oficial do exército norte-americano que acreditou na sua história. Como salientou essa antiga “soldado... uma verdadeira crente”, pelo menos meia dúzia de outros advogados militares demitiram-se publicamente em protesto contra essa prisão e “há muito mais que passaram despercebidos por baixo do radar, desiludidos e desmoralizados” (BBC, 24 de Fevereiro de 2009).
Ela e alguns advogados britânicos acabaram por conseguir que o Supremo Tribunal ouvisse o pedido de Mohamed para que o governo da Grã-Bretanha divulgasse os documentos que provariam as suas acusações. Embora o governo britânico nem sequer tenha autorizado que essa decisão de Outubro de 2008 fosse publicada, quanto mais cumpri-la, dois dos juízes que recentemente tiveram acesso a esse material revelaram que, no início de 2008, quando uma campanha para libertar Mohamed ganhava momento na Grã-Bretanha e noutros lugares, os EUA lhe tinham proposto um acordo: ele seria libertado daqui a alguns anos se assinasse uma declaração a dizer que não tinha sido torturado e concordasse em nunca processar o governo dos EUA ou os seus aliados devido ao seu tratamento em cativeiro ou sequer falar à comunicação social sobre isso. Caso contrário, disseram-lhe os agentes, ele nunca seria libertado. (McClatchy Newspapers, 23 de Março de 2009)
Mas os EUA sabiam que já estava demasiada informação nas mãos do Supremo Tribunal da Grã-Bretanha e temiam a fuga de informação que acabou por acontecer. Pode ser por isso que eles abandonaram oficialmente todas as acusações contra Mohamed e que, cerca de cinco meses depois, após ele ter iniciado uma greve da fome, finalmente o deixaram sair a 23 de Fevereiro deste ano. Alguns comentadores crêem que uma importante razão para o governo de Obama o ter libertado foi para evitar mais protestos e acções judiciais que poderiam levar à publicação desses documentos e a ainda mais danos políticos.
O perigo da nova investigação da Scotland Yard é que, tal como aconteceu com o seu inquérito ao caso de Menezes, esta investigação possa ser parte de um encobrimento. Pelo menos parece ser essa a intenção do governo. Em suma, ao tentar esconder a sua própria conduta e a do seu aliado mais próximo, o governo britânico está a tentar evitar não só expor a administração Bush e a sua antiga aliança com ela, mas também causar embaraços à nova administração Obama. O governo Obama também se recusou a libertar os documentos que detalham a forma como os EUA trataram Mohamed e tornou claro que espera que o governo trabalhista mantenha a posição nessa questão.
Apesar desta libertação, os riscos políticos envolvidos estão relacionados com o futuro, tanto como com o passado – não só com o que os governos desses dois países fizeram, mas também com a que é que eles podem escapar no futuro. Independentemente do que aconteça, a investigação da Scotland Yard não será um simples caso de polícia.