Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 9 de Fevereiro de 2009, aworldtowinns.co.uk

O Paquistão e a ocupação do Afeganistão

A 20 de Janeiro, vários fundamentalistas islâmicos do Paquistão fizeram explodir cinco escolas em Mingora, que já foi uma das zonas mais seguras da região de Swat, no Noroeste do Paquistão, numa tentativa de imporem o seu crescente domínio sobre a região norte do país. Não muito antes, eles tinham declarado que as escolas para raparigas eram não-islâmicas e tinham-nas proibido. Segundo as notícias, já foram destruídas quase 200 escolas governamentais. Um agrupamento islâmico similar, os talibãs paquistaneses, também proibiram recentemente as escolas para raparigas, forçando o governo a fechar mais algumas centenas de escolas da zona durante vários dias.

Este tipo de coisas está a tornar-se cada vez mais comum no Paquistão, sobretudo no norte. “Os representantes eleitos fugiram do Swat e muitos agentes da polícia, alvo dos atentados suicidas, desertaram, tendo a força policial sido reduzida de 1725 para 295 agentes” (Guardian, 20 de Janeiro de 2009). Grande parte da zona tribal do Waziristão a norte de Peshawar está sob o controlo de Baitullah Mehssud, um líder tribal que se diz estar perto da Al-Qaeda. A maioria do Vale do Swat, que já foi uma zona turística, está cada vez mais sob o controlo de um grupo fundamentalista islâmico liderado pelo clérigo Maulana Fazlullah.

“Em grande parte da Província da Fronteira Noroeste – cerca de um quinto do Paquistão – as mulheres foram agora obrigadas a usar burca, a música foi silenciada, as barbearias estão proibidas de cortar barbas e mais de 140 escolas para raparigas foram explodidas ou incendiadas. Uma parte significativa da elite da capital provincial de Peshawar, bem como os seus músicos, deslocou-se agora para os relativamente seguros e tolerantes confins de Lahore e Carachi. Entretanto, dezenas de milhares de pessoas comuns das colinas vizinhas da cintura tribal semi-autónoma – as Zonas Tribais Administradas Federalmente (FATA) situadas ao longo da fronteira afegã – fugiram das zonas de conflito bombardeadas com mísseis por veículos não tripulados norte-americanos Predador e metralhadas por helicópteros armados paquistaneses, indo para os campos de tendas que agora cercam Peshawar.” (“O Paquistão em Perigo”, William Dalrymple, New York Review of Books, 12 de Fevereiro de 2009)

Na realidade, mesmo Lahore está agora invadida pelo medo. A esperança de que essa cidade, terra de muitos dos intelectuais laicos do Paquistão e coração da cultura e da poesia do país, se poderia manter afastada da guerra, evaporou-se. A cidade tem sido abalada por uma série de atentados e ameaças. Isto é um sinal de quão profundamente já se sente o impacto de uma guerra que antes se limitava às zonas fronteiriças.

Nos últimos anos, o Paquistão tem visto um número crescente de ataques terroristas, atentados suicidas e assassinatos sectários entre sunitas e xiitas. Mas agora está a ocorrer uma guerra generalizada no norte do Paquistão. O exército paquistanês tem muitas dezenas de milhares de soldados a operar na zona. Diariamente, cada um dos lados alega ter matado dezenas de inimigos. Segundo uma notícia da BBC (2 de Novembro de 2008), o exército paquistanês precisou de seis semanas para retomar o controlo de apenas 13 quilómetros de uma estrada no norte do Paquistão. Quando, nessa campanha, o exército tomou uma cidade, isso só foi possível após várias semanas de pesados bombardeamentos aéreos e disparos de tanques e artilharia. Quando os soldados finalmente lá entraram, a cidade estava completamente destruída, acrescentando mais alguns milhares de pessoas às centenas de milhares que nesta guerra se tornaram refugiadas e/ou sem-tecto.

À medida que as dimensões do campo de batalha se têm expandido, quase um quarto de milhão de pessoas apanhadas no fogo cruzado fugiram das suas aldeias ou cidades. Ironicamente, muitos paquistaneses têm procurado refúgio num Afeganistão atolado em guerra.

Em Novembro e Dezembro, a principal estrada que liga o Afeganistão e o Paquistão através da estratégica Passagem de Khyber foi temporariamente fechada depois de guerrilheiros terem atacado um depósito de distribuição e queimado camiões de carga que deveriam abastecer as tropas lideradas pelos EUA que combatem a Al-Qaeda. Destruíram um grande número de Humvees que estavam à espera de ser transportados. A 3 de Fevereiro, uma ponte de ferro nessa estrada explodiu – a apenas 23 quilómetros a oeste de Peshawar, e a estrada foi fechada de novo. Dois dias depois, um posto de controlo foi assaltado e destruído. Cerca de 80% dos abastecimentos de que os EUA e seus aliados necessitam de viajar através dessa rota desde o porto de Carachi para as bases norte-americanas no Afeganistão.

Um outro aspecto da violência que aumenta em espiral na região é a intervenção dos EUA no norte do Paquistão, onde a CIA está a usar aviões não tripulados de controlo remoto equipados com mísseis para atacar aldeias em nome da luta contra a Al-Qaeda. Cada ataque aéreo mata dezenas de pessoas. Em Agosto passado, os EUA levaram a cabo um ataque terrestre que matou 18 pessoas. Mesmo segundo os principais órgãos de imprensa, a grande maioria dos mortos são aldeãos comuns. Entre essa altura e o fim de Janeiro, as forças norte-americanas baseadas no sul do Afeganistão usaram esses veículos Predador para levarem a cabo cerca de 40 ataques aéreos no norte do Paquistão e o seu ritmo está a aumentar. Bastaram apenas três dias depois da tomada de posse para que Barack Obama mostrasse o que pretende levar aos habitantes do Paquistão e do Afeganistão – ele aprovou a continuação desses ataques aéreos.

Esta descrição sumária mas dolorosa do Paquistão parece muito diferente da que se poderia ter feito antes da ocupação do Afeganistão em 2001. A longa e cruel campanha norte-americana no Afeganistão na “guerra contra o terrorismo”, que supostamente traria “estabilidade” e “democracia” à região, apenas deitou achas para a fogueira e espalhou as labaredas da guerra num raio que se está a expandir rapidamente. Um inferno para o povo do Afeganistão e agora um inferno para o povo do Paquistão – é este o resultado da ocupação.

A ligação ao Afeganistão

A ligação entre o Afeganistão e o que está a acontecer no Paquistão está a ficar cada vez mais óbvia, mas diferentes forças vêem isto de formas muito diferentes.

Só recentemente os militares e os responsáveis dos governos ocupantes admitiram abertamente essa ligação. O General David Petraeus, recentemente nomeado chefe do Comando Central dos EUA que inclui as frentes de guerra do Iraque e do Afeganistão, disse o mês passado numa audiência em Washington: “O Afeganistão e o Paquistão fundiram-se, de muitas formas, num único grupo de problemas e a solução no Afeganistão fica incompleta sem uma estratégia que inclua e ajude o Paquistão”. E continuou dizendo que essa estratégia também teria que ter em conta a “agitada relação do Paquistão com a rival Índia” (Associated Press, 8 de Janeiro). Obama confirmou essa perspectiva de um “único grupo de problemas” ao nomear um único enviado diplomático ao Afeganistão e ao Paquistão, Richard Holbrook. Numa decisão invulgar, também nomeou o principal comandante militar no Afeganistão como novo embaixador de Washington em Cabul.

Durante muitos anos, os dirigentes e a comunicação social ocidentais apenas mencionavam o Paquistão e o Afeganistão em conjunto quando se queixavam dos talibãs estarem a cruzar a fronteira em busca de santuário nas zonas tribais ditas “desgovernadas” do norte do Paquistão, que usavam como zona de retaguarda para reorganizarem as suas forças. Eles criticavam a relutância do exército paquistanês em perseguir os talibãs no seu território, ponto em que eles nunca fizeram mais do que o que os responsáveis ocidentais e afegãos quiseram. Porém, durante todos estes anos, a administração Bush continuou a apoiar o governo do General Parvez Musharraf, o presidente e chefe do exército paquistanês dessa altura. Nem o governo Bush nem qualquer outro no Ocidente levaram a sério a crise que se desenvolvia no Paquistão.

Mesmo uma série de grandes convulsões políticas que culminaram no assassinato da rival de Musharraf, Benazir Bhutto, durante a campanha das eleições parlamentares e a sua cada vez mais aberta repressão contra todo o tipo de opositores que arrebatou o país contra ele, não levaram Washington e outras capitais ocidentais a questionar a sua abordagem na região. Não foi senão quando a crescente força dos fundamentalistas islâmicos os levou a decidirem-se abertamente pela tomada do poder que finalmente rebentou uma guerra aberta e que os dirigentes ocidentais começaram a ficar seriamente preocupados com a situação no Paquistão e a ligar os pontos que levavam ao Afeganistão. Não foi senão no fim da administração Bush que os seus conselheiros emitiram “apelos a uma nova abordagem, amplamente regional, aos insurrectos que atravessam livremente a montanhosa fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão”, num relatório que eles prepararam para a futura administração Obama. (International Herald Tribune, 7 de Dezembro de 2008)

Mas, pelo menos publicamente, esse reconhecimento vem acoplado a uma perspectiva invertida sobre as causas do problema – a de que o Paquistão é o culpado do fracasso dos EUA no Afeganistão e que a solução é atacar o vizinho do Afeganistão. O artigo acima citado continua: “A curto prazo, [o relatório] defende ataques encobertos continuados em território paquistanês a partir do Afeganistão”. (Obama deu a sua aprovação a este ponto, actuando imediatamente). Mas termina com um aviso: “Um alto responsável militar disse ‘que a mensagem do relatório era de que não se pode ganhar no Afeganistão sem se resolver primeiro o problema do Paquistão... Mas mesmo que se resolva o problema do Paquistão... isso não será suficiente’.”

Em oposição a esta perspectiva, a verdade é que o que está a acontecer no Paquistão é produto da ocupação do Afeganistão liderada pelos EUA e não o contrário. Uma vez feita a invasão, essa guerra não se poderia manter dentro dos limites do Afeganistão. O responsável militar norte-americano insinua que embora atacar o Paquistão possa não ser suficiente para resolver todos os problemas dos EUA por ter ocupado o Afeganistão, isso seria um bom começo. Mas se em vez de “resolverem o problema” do Paquistão, os ataques norte-americanos o fracturarem? E se atiçarem ainda mais as chamas de um conflito apresentado como sendo uma luta entre o Islão e os seus inimigos? E se essa tentativa expandir a guerra e ameaçar mesmo envolver outros países da região?

Algum enquadramento das ligações entre o Paquistão e o Afeganistão

É verdade que a ligação entre o Paquistão e o Afeganistão não emergiu de uma forma inesperada. Há toda uma história por trás dela, sobretudo nas três últimas décadas. E certas tendências têm-se vindo a desenvolver há muito tempo.

Em 1980, a meio da Guerra Fria entre dois blocos imperialistas rivais, a União Soviética invadiu o Afeganistão, um país estrategicamente importante. Os imperialistas ocidentais viram nisso uma oportunidade para converterem essa zona num campo de batalha contra o Bloco de Leste. Na realidade, dada a importância dessa região para os seus planos geopolíticos, o Ocidente não podia ter feito outra coisa. Transformaram o Paquistão numa retaguarda dos mujahideen fundamentalistas islâmicos afegãos que combatiam os russos através da fronteira. O Paquistão em geral tornou-se numa nova e vital frente da Guerra Fria entre o Ocidente e o Leste. As potências imperialistas ocidentais despejaram dinheiro e armas e, mais importante, forneceram apoio político aos mujahideen e, com encorajamento norte-americano, a Arábia Saudita também enviou dinheiro e apoio ideológico aos seus correligionários. Tudo isto foi canalizado através do governo paquistanês e sobretudo dos ISI (Inter-Serviços de Informações, do Paquistão).

Há várias razões, distintas mas convergentes, para a ascensão desta forma de fundamentalismo religioso na região, mas este apoio, a certo momento, representou um papel decisivo. Sem o papel directo dos ISI na organização e treino dos mujahideen nos campos de treino do Paquistão e sem tudo o que passou por esses canais, esses fundamentalistas em particular provavelmente não conseguiriam ter levado a cabo uma bem-sucedida guerra contra a invasão soviética.

O Paquistão desejava desempenhar esse papel para poder reforçar a sua posição na região e cortar a possível influência indiana no Afeganistão (nessa altura, a URSS e a Índia eram aliadas). Além disso, um aumento da influência paquistanesa no Afeganistão seria um bónus na sua disputa com a Índia.

A outra razão para o solícito envolvimento do Paquistão foi a particular importância do fundamentalismo islâmico nas suas classes dominantes.

Para os EUA e outras potências ocidentais, o fundamentalismo islâmico era uma arma usada contra os comunistas soviéticos “ateus”. (Há muito que a URSS tinha deixado de ser socialista e a sua classe dominante queria tanto construir o comunismo como os dirigentes ocidentais, mas tinha mantido a sua designação de “comunista” como arma do seu arsenal.) Como essa era a principal arma ideológica que os mujahideen usavam para mobilizar as pessoas, o Ocidente fez o seu melhor para promover essa ideologia. Ao mesmo tempo, convinha tanto à CIA como aos fundamentalistas apresentarem essa guerra não como uma luta contra a opressão nacional mas como um conflito religioso. Eles preferiam não despertar a consciência das massas mas, em vez disso, apoiar-se na ignorância e no atraso. Isto também possibilitou a mobilização de muçulmanos de todo o mundo, sobretudo de países árabes, para serem treinados no Paquistão e depois enviados para a luta no Afeganistão.

Porém, para o Paquistão, a questão religiosa não era só uma boa ideia. Era uma questão existencial. O General Zia Ul-Haq, que tinha tomado o poder através de um golpe de estado e que já tinha iniciado a islamização do país, tinha todas as razões para dar as boas-vindas à oportunidade de promover essa ideologia. Em primeiro lugar, isso projectaria o Paquistão como centro mundial do Islão, desafiando dessa forma o Irão, onde o clero islâmico tinha sequestrado uma revolução e instituído um regime teocrático. Ainda mais importante, era vantajoso para o Paquistão que, no seu confronto com a Índia, consolidasse as suas forças internas em torno de um Islão mais rígido. Dado que o que esteve na origem do Paquistão foi a decisão britânica de dividir a sua colónia da Índia segundo linhas religiosas para contrariar o impacto da independência, a religião sempre foi a principal cola que o manteve coeso e os seus dirigentes sempre foram sensíveis a esse facto, mas isto era mais um grande salto nessa direcção e uma oportunidade que os dirigentes do Paquistão e os seus patronos imperialistas não podiam perder.

O resultado foi que o Paquistão se tornou num centro do fundamentalismo islâmico e tem desfrutado da particular influência nos assuntos do Afeganistão que conquistou com a guerra anti-soviética. Quando, no início dos anos 90, após a retirada soviética e a subsequente guerra civil, ficou visível que os senhores da guerra mujahideen não conseguiam governar o Afeganistão da forma que os dirigentes do Paquistão e dos EUA precisavam, os ISI mudaram o seu apoio para um movimento fundamentalista islâmico diferente, os talibãs. Não é segredo nenhum que o treino, o apoio militar e logístico e o dinheiro dos ISI representaram um papel chave para levar os talibãs ao poder. Também não é segredo nenhum que, nessa altura, os EUA não colocaram nenhuma objecção.

Uma nova situação

As classes dominantes do Paquistão sempre pensaram que o fundamentalismo islâmico se iria desenvolver na direcção que elas queriam e que as beneficiaria enormemente. Elas também pensavam que conseguiriam manter o controlo da situação. Porém, as coisas não se desenrolaram tão suavemente quanto elas esperavam, seja na região seja no próprio Paquistão.

Isto não quer dizer que o que está a acontecer no Paquistão é completamente independente e frontalmente contrário ao governo paquistanês e aos ISI. Têm surgido muitas provas que indicam o envolvimento do exército paquistanês e dos ISI no conflito na fronteira Afeganistão/Paquistão. Durante muito tempo, o governo norte-americano e outros governos ocidentais raramente, se alguma vez, mencionaram esse facto. Agora que afastaram Musharraf sem cerimónia – não por ser um déspota brutal mas por ser um falhado – tem havido muitos relatos vindos dos serviços de informações norte-americanos e ocidentais que confirmam o que toda a gente já sabia desde o início. Isto pode ser entendido como uma outra forma de pressionar o Paquistão. Mas não há dúvida nenhuma de que há muitos elementos fora do controlo desse governo. Além disso, o governo paquistanês é completamente incapaz de vencer ou sequer confinar esta guerra.

O facto de haver inúmeros factores e elementos a influenciar este conflito tem tornado impossível que alguém o controle. E toda a gente, incluindo os imperialistas norte-americanos, o governo paquistanês e os talibãs – todos os que trouxeram o caos à região – têm recorrido a meios militares como forma de resolverem a situação segundo os seus interesses. Mas, como a ocupação do Afeganistão deu origem a uma guerra no Paquistão, o recurso à guerra da parte destas forças reaccionárias não vai necessariamente resolver o seu problema da forma que eles poderiam querer, mas pode muito bem provocar outros conflitos, sobretudo devido à sensibilidade de toda a região da Ásia do Sul. Há muitos potenciais conflitos na região à espera de serem ateados. Por exemplo, os ataques em Bombaim em Novembro passado estão muito provavelmente relacionados de alguma forma com a guerra do Afeganistão, bem como com a ocupação da Caxemira e a aspereza da disputa entre os dois países a seguir a esses eventos revelou potenciais linhas de fractura. Há também a questão da inflamada província paquistanesa do Baluchistão. É claro que o Afeganistão e o Paquistão estão ligados, mas esses vínculos vão até à Índia e à China numa das direcções e até ao Irão e à Rússia na outra.

A ironia é que as intromissões e intervenções imperialistas de longo prazo têm sido um importante factor em tornar tão volátil essa região. O que é que uma maior intervenção imperialista poderá produzir que não seja mais miséria e mais volatilidade?

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