Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 6 de Outubro de 2008, aworldtowinns.co.uk
O leite tóxico da China: Porque é que o capitalismo não consegue produzir o leite da generosidade humana
Produtos lácteos contaminados provenientes da China estão a surgir em todo o mundo porque a China está muito no centro da produção capitalista mundial. Além disso, embora o escândalo do leite contaminado que matou pelo menos quatro bebés e afectou mais de 53 mil pessoas esteja muito ligado às particularidades do funcionamento do capitalismo na China, é muito mais um produto do próprio sistema global de lucro.
O encobrimento e a criminosa responsabilidade dos governantes da China
Um dos aspectos mais amplamente noticiados do escândalo tem sido o papel do governo chinês e do partido governamental, dito “comunista”. Já há algum tempo, talvez há três anos, que os responsáveis governamentais chineses a vários níveis tinham indicações de que um produto químico, a melamina, normalmente usada no fabrico de plásticos e outros artigos industriais, estava presente no leite e em produtos lácteos. A melamina é tóxica para os seres humanos por causa dos danos que causa aos rins. As crianças não só são particularmente vulneráveis a essa substância química, como estão duplamente em risco porque dependem em grande parte ou quase exclusivamente do leite em pó. Quatro das crianças envenenadas até agora e que tinham menos de dois anos de idade morreram de falhas renais. A maioria sofreu micção dolorosa. Sabe-se que mais de cem crianças sofrem de pedras nos rins – uma condição extremamente rara em bebés, e extremamente dolorosa.
A melamina não é difícil de detectar na urina das crianças, sobretudo nas enormes doses que foram encontradas no leite da China. A urina das crianças fica viscosa (cheia de cristais) e com uma cor estranha, de uma forma tal que alarma imediatamente os pais, e isso cessa assim que as crianças deixam de ingerir esses produtos, embora os seus rins possam já ter sofrido danos permanentes. Sabe-se que o Grupo Sanlu, a empresa de produtos lácteos mais implicada neste escândalo, recebeu queixas em Dezembro de 2007. O primeiro relato formal de doença surgiu em Março de 2008 e as primeiras mortes foram registadas em Maio e Julho. Depois de alguns pais de várias províncias terem começado a fazer barulho por causa do leite contaminado que suspeitavam ser a causa da doença dos seus bebés, a empresa começou a fazer testes em Junho e confirmou a presença da melamina. Apesar disso, a empresa encobriu activamente esses e outros indícios de problemas sérios. Manteve a sua intensa campanha publicitária na televisão para convencer as mulheres a deixarem de dar peito e a usarem, em vez disso, os seus produtos.
Segundo o jornal Diário do Povo e outras fontes oficiais do governo central chinês que recentemente se pronunciaram, em Agosto, depois de o escândalo ter rebentado, a Sanlu pediu a responsáveis oficiais de Shijiazhuang, a cidade na província norte de Hebei onde tem a sua sede, que a ajudassem a “gerir” a resposta pública (incluindo à comunicação social) se e quando a empresa começasse a recolher os seus produtos. Diz-se que as autoridades locais não comunicaram o problema aos responsáveis provinciais durante mais um mês. Alguns analistas suspeitam que as actuais revelações pelo governo central de um encobrimento a nível provincial sejam de facto uma tentativa de mandar as culpas para baixo (BBC, 6 de Outubro). Sabe-se que as autoridades centrais receberam em Julho relatórios de responsáveis oficiais de outras províncias e que nesse mês impediram uma denúncia de surgir publicamente. Ao que parece, os altos responsáveis estavam ansiosos por impedir que esse escândalo chegasse às notícias até tanto quanto possível após o entusiasmo que se seguiu às Olimpíadas de Pequim. Finalmente, em meados de Setembro, a meio de um bombardeamento de denúncias (incluindo um relato detalhado, publicado numa página profissional de notícias na internet, da morte confirmada de dois bebés e da proibição em Taiwan do leite em pó vindo da China continental), a Sanlu parou a produção do seu leite em pó e essa e outras empresas de produtos lácteos começaram a recolher os seus produtos envenenados.
A maior das três principais grandes empresas da indústria de produtos lácteos acusadas, a Sanlu, já foi uma empresa estatal. Apesar de ser agora oficialmente privada, o comité provincial do partido continua a nomear a sua principal administradora, a qual era, neste caso, também dirigente do partido. Esta foi provavelmente uma das razões por que os responsáveis locais e provinciais mantiveram o caso secreto durante tanto tempo. Quando isso falhou, em Setembro, ela foi despedida, tal como alguns funcionários da saúde e da segurança, incluindo o principal regulador da qualidade na China. Em Maio, a sua agência tinha declarado o sector leiteiro como a indústria mais segura do país e dito que não era necessária nenhuma inspecção à Sanlu e às outras 21 grandes empresas de produtos lácteos.
O ano passado, o chefe da Autoridade Chinesa de Produtos Médicos e Alimentares foi executado por “corrupção” e um castigo severo pode estar à espera de vários bodes expiatórios, sacrificados para salvar a reputação do partido governamental e a estabilidade política do sistema. No início de Outubro, várias dezenas de pessoas da indústria de produtos lácteos foram presas por terem introduzido melamina na cadeia alimentar. Iam de agricultores e encarregados de pastos e estações leiteiras a comerciantes de melamina e ao CEO da Sanlu. Ao mesmo tempo, os responsáveis oficiais mandaram a polícia aos advogados dos grupos de pais de crianças doentes – 13000 continuavam hospitalizadas em finais de Setembro – para os avisar a deixarem cair o assunto. Embora o governo tenha prometido cuidados gratuitos de saúde para essas crianças, há relatos de pais a quem foram pedidas quantias exorbitantes para que as suas crianças fossem testadas e para lhes ser dito depois que teriam que pagar ainda mais dinheiro com antecedência se quisessem ter a esperança de receber tratamento. O desmantelamento do sistema universal de cuidados de saúde da China, que já foi muito avançado – e um importante factor na duplicação da esperança média de vida na China durante as primeiras décadas após a revolução – tem sido um importante factor de agravamento da actual crise.
“É como mudar a água sem mudar as ervas”, disse um empregado de bar de Pequim sobre as demissões e as prisões. “Este escândalo foi causado por todo o sistema, pelo que não serve de nada substituir apenas um funcionário” (Washington Post, 23 de Setembro).
Não podia ser mais evidente o contraste entre a China de hoje, onde as palavras de ordem são “Ficar rico é glorioso”, e a China do tempo de Mao, altura em que o princípio-guia era “Servir o povo”. Em nome dessas infames palavras de ordem, Deng Xiaoping, o líder daqueles que Mao avisou serem os “seguidores da via capitalista” dentro do partido, eliminou o sistema socialista após a morte de Mao. Os revolucionários na direcção do partido foram presos ou mesmo eliminados. O partido, que antes era uma organização cujo objectivo era liderar as massas populares na transformação da China e do mundo para emanciparem a humanidade da divisão da sociedade em classes, do sistema onde o lucro é a lei suprema e o mais alto dos bens e onde todas as leis, práticas e ideias que lhe estão associadas se tornam num instrumento de uma forma particular de classe dominante capitalista, tanto nas empresas estatais como nas privadas. A propósito, os alimentos para as autoridades centrais, os seus guarda-costas, a polícia, etc., são produzidos em quintas orgânicas e especialmente testados.
Mas não é exactamente novidade que a China já não é socialista. Muitos dos relatos da comunicação social global trataram este escândalo simplesmente como evidência da extrema corrupção que caracteriza este recém-nascido capitalismo de estilo chinês, como se o problema fosse específico da China e de uma fase precoce do capitalismo que os países capitalistas mais amadurecidos há muito ultrapassaram.
Foi o mercado que o fez
A corrupção representou um enorme papel. Mas focar nisso impõe a seguinte pergunta: antes de mais, porque é que estava a ser adicionada melamina ao leite?
A melamina estava a ser adicionada porque o leite não tratado estava a ser diluído com água. Muitas vezes, os compradores grossistas testam o conteúdo proteico do leite justamente para se salvaguardarem contra não estarem a receber aquilo por que pagam. Adicionar essa substância química ilude esses testes normalizados. Segundo o governo chinês, isso acontecia sobretudo ao nível das estações leiteiras, os intermediários que compram leite não tratado aos produtores de leite.
E porque é que o leite era diluído? Obviamente, os proprietários das estações leiteiras, que são na prática os verdadeiros patrões dos supostamente independentes pequenos camponeses que de facto deles dependem, têm todo o interesse em tentarem esticar o seu produto para ganharem mais dinheiro. Mas há aqui algo mais que apenas a cobiça a funcionar. Para sobreviverem enquanto empresas capitalistas, eles foram levados a deitar água no leite.
O preço do leite, tal como o de outros alimentos básicos, é controlado pelo governo da China, tal como na Europa e noutros lugares. Esse governo tem resistido a deixar subir o preço do leite, porque isso elevaria o custo de vida para os operários e outros trabalhadores da China – e a principal vantagem da China no mercado mundial é o baixo custo da sua mão-de-obra. Ao mesmo tempo, os custos dos camponeses têm subido, sobretudo os da alimentação das vacas (devido à pressão dos preços internacionais) e de tudo o que esteja relacionado com o petróleo (fertilizantes, combustíveis para os tractores e camiões, etc.). Isto está a fazer subir actualmente os preços do leite em todo o mundo. O particularmente agudo “efeito de tesoura” que afecta as quintas de produção leiteira da China é um exemplo de como a extracção de valor ao campesinato tem sido uma importante componente da rentabilidade do capital na China. Seja acrescentado ao nível das quintas individuais ou das estações leiteiras, foi o próprio mercado que ditou que o leite não podia ser produzido de uma forma lucrativa ao preço pelo qual os camponeses e as estações leiteiras o tinham que vender.
“Durante muito tempo, os produtos lácteos foram mais baratos que a água engarrafada”, disse um professor de ciência alimentar de Pequim ao jornal Washington Post (23 de Setembro). “Tínhamos medo que o índice de preços no consumidor subisse e pressionasse ainda mais os consumidores, pelo que mantivemos baixo o preço dos produtos lácteos. Produzir leite não é lucrativo. Quando se quer produzir leite de boa qualidade, tem que se alimentar bem as vacas.”
Contudo, é fundamental notar aqui que as tentativas governamentais de conter o preço do leite não reflectem uma falha no cumprimento das regras do mercado mas sim uma resposta ao domínio do mercado em geral, a nível nacional e internacional. Além disso, além dos custos da mão-de-obra chinesa – o principal produto mercantil do país –, a rentabilidade da própria indústria leiteira tem sido outro importante factor que compele ao envenenamento do leite e, também isto, é guiado pelo mercado mundial.
Ninguém quer saber
A indústria de produtos lácteos da China, que gera 19 mil milhões de dólares, é uma cada vez mais importante fonte de lucros para o capital chinês e estrangeiro. Isso deve-se tanto ao crescente consumo doméstico de leite e produtos lácteos, como à exportação destes produtos. Mais, as empresas chinesas de produtos lácteos fornecem a um ritmo cada vez mais rápido empresas estrangeiras de produtos alimentares na China, cujos chocolates, bolachas, branqueadores de café, etc., são, por sua vez, exportados para todo o mundo.
Elas compram o leite da China porque é mais barato, tal como é mais barato fabricar aí os seus produtos derivados do leite. Para os dirigentes das empresas leiteiras da China, tal como para os proprietários das fábricas baseadas numa intensa exploração onde são produzidos outros bens que acabarão por ser comercializados pelas multinacionais, não há nenhuma consciência escapatória das horrendas condições de produção (longas horas nas fábricas, leite adulterado nas leitarias). É aí que entra a corrupção, fazendo com que as autoridades envolvidas olhem para o lado. Mas as multinacionais que compram esses produtos não precisam dessa corrupção. Tudo o que têm que fazer é... não perguntar. Elas nem querem saber.
A melamina não é difícil de detectar. Algumas pessoas dizem que nas elevadas percentagens aqui envolvidas (em alguns casos milhares de vezes acima do nível de segurança para consumo humano), a adulteração é visível a olho nu. Será que a Cadbury, a Kraft, a Mars, a Danone, a Decano Foods e os comerciantes de derivados para bebés alguma vez se interrogaram como é que conseguiam comprar leite tão barato na China, apesar de ser o mercado mundial a determinar em grande parte o preço dos rendimentos dos camponeses locais? Será que alguma vez se preocuparam em testar seja o leite que compram sejam os produtos que a partir dele produzem?
Tal como os donos das conhecidas marcas de sapatilhas, roupa, brinquedos, electrónica, etc., etc., feitos na China para o mercado mundial, elas pura e simplesmente não querem verdadeiramente saber.
Criminosos globais
A Sanlu, veio a saber-se, afinal não é uma empresa inteiramente chinesa. Um pouco menos de metade (43%) dela é propriedade de um gigante da indústria leiteira da Nova Zelândia, a Fonterra, ela própria uma cooperativa de fazendeiros de produtos lácteos da Nova Zelândia (e que, provavelmente, tal como os fazendeiros de produtos lácteos de outros países, são na realidade geridos e esfolados pela cooperativa que supostamente possuem e cuja verdadeira lealdade é para com interesses financeiros mais vastos). A Fonterra comprou a Sanlu em 2005 por 150 milhões de dólares e desde então já investiu outros 200 milhões de dólares na empresa. A empresa da Nova Zelândia diz que, embora tenha representantes seus na Direcção da Sanlu, estes não têm nenhuma responsabilidade operacional e não tiveram conhecimento do problema até Agosto (apenas um mês antes de o escândalo ter explodido), altura em que os membros chineses da Direcção se sobrepuseram aos neozelandeses sobre a sua revelação pública.
Será que a empresa leiteira da Nova Zelândia não se interrogou porque é que o leite chinês era tão barato? Será que não se interrogou sobre o segredo do sucesso da Sanlu – o seu derivado para bebés, conhecido como o produto dos “pobres”, era um dos mais baratos? Será que não se lembrou do grande escândalo de 2004 na China, em que 13 crianças chinesas alimentadas com um falso derivado morreram de desnutrição? Será que alguma vez realizou algum teste próprio, mesmo que para proteger os seus próprios investimentos? Será que investiu 200 milhões de dólares na ampliação das instalações da empresa sem ter a mais leve ideia do que se estava a passar? Diluir leite com água acontece em todo o mundo, e aparentemente o uso da melamina era um segredo que todos sabiam em toda a província e, até certo ponto, noutros pontos da China e do Leste da Ásia. Será que não falou com ninguém da indústria nem lia os blogues chineses? Será que nem sequer tinha alguém que pelo menos olhasse para o leite? Ou será que pura e simplesmente não queria saber?
Depois de Setembro, a Fonterra reduziu a sua participação na Sanlu. A explicação pública foi de que a marca estava irrevogavelmente manchada. Um outro factor possível é o seguinte: se o escrutínio público significar que a Sanlu deixará de poder usar leite adulterado, deixará de ser tão lucrativa. Em 2007-08, teve lucros por cada quilo de leite vendido. Isso não acontecerá este ano.
E que dizer do argumento de que tudo isto se deve ao facto de a China ainda estar nos primórdios do capitalismo, como o Ocidente antes de terem sido estabelecidas as inspecções governamentais e a regulação alimentar?
Considere-se o seguinte: a melamina é muito tóxica e provavelmente cancerígena (como não deve ser usada na alimentação, os seus efeitos nos seres humanos nunca foram suficientemente estudados). As quantidades permitidas em produtos alimentares na Europa e nos EUA são estritamente reguladas (embora as autoridades norte-americanas permitam quase 20% mais que as europeias). Para os bebés, o nível de tolerância é supostamente zero.
Ainda na sequência do escândalo na China, as autoridades de muitos países asiáticos começaram a testar todos os alimentos contendo produtos lácteos. Encontraram alguma melamina em quase todos, em níveis bastante elevados em alguns casos, incluindo nas grandes marcas globais. Alguns desses produtos foram produzidos com leite chinês, outros não. Um elemento a ter em conta é que a adição de melamina ao leite pode não estar limitada à China. Mas as marcas acusadas, em particular a Nestlé, propuseram outra desculpa: a de que a melamina chega aos produtos alimentares através do plástico em que são embalados. E porque é que isto não foi revelado antes e os seus potenciais perigos não foram avaliados e resolvidos?
Estas empresas não são pura e simplesmente corruptas. São empresas capitalistas normais – estas empresas leiteiras e alimentares criminosas não são assim tão diferentes das multinacionais tabaqueiras que têm envenenado de uma forma fatal tantos milhões de seres humanos ou de qualquer outro tipo de capitalistas que têm que se submeter à supremacia do mercado e aos ditames do lucro, se se quiserem manter em actividade.