Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 6 de Abril de 2015, aworldtowinns.co.uk

O horrendo assassinato de Farkhunda

O funeral de Farkhunda em Cabul, onde o caixão foi transportado exclusivamente por mulheres
O funeral de Farkhunda em Cabul, onde o caixão foi transportado exclusivamente por mulheres (Foto: Massoud Hossaini/AP)

Farkhunda, uma mulher afegã de 27 anos acusada de queimar o Alcorão, foi brutalmente espancada até à morte por uma turba de linchamento na presença de um grupo de polícias que nada fez para o impedir. O assassinato ocorreu perto da conhecida mesquita e santuário de Shah-Du-Shamshaira, no centro de Cabul, a apenas cerca de cem metros do palácio presidencial.

Centenas de homens bateram em Farkhunda com os punhos e placas de madeira, até ela cair, e depois pontapearam-na. Ela tentou lutar contra eles, e foi novamente espancada. Isto continuou até ela deixar de se mover. Os homens atropelaram-na com um carro e depois incendiaram o corpo dela perto do Rio Cabul.

Este horrendo assassinato chocou o país e o mundo e gerou protestos e manifestações a seguir ao funeral dela. Farkhunda, cujo apelido não foi revelado, provavelmente para segurança da família dela, tinha obtido recentemente um diploma em estudos religiosos e estava a preparar-se para ocupar um lugar pedagógico.

O que levou ao assassinato dela foi o corajoso protesto dela contra a venda de amuletos e charmes pelos mulás e pelas autoridades religiosas. Segundo os familiares dela, ela apelou às mulheres no santuário para não desperdiçarem dinheiro em produtos supersticiosos, tendo discutido com o mulá que os vendia na mesquita. Como vingança, o mulá retirou algumas páginas queimadas de uma fogueira e gritou: “Esta mulher infiel queimou o santo Alcorão”. Alguns homens começaram a gritar com ela e a pequena multidão depressa se transformou numa turba de linchamento.

Sob pressão das autoridades, a família de Farkhunda foi forcada a sair de Cabul, supostamente para sua própria segurança. Foi anunciado que os familiares teriam dito que ela estava mentalmente doente e que já tinha tentado cometer suicídio.

Estes incidentes não são incomuns no Afeganistão. A comunicação social interna e internacional foi lenta a reagir, até que os vídeos do assassinato dela começaram a circular nas redes sociais, desencadeando uma onda de indignação no Afeganistão e fora do país. No funeral dela, a 22 de Março, estiveram presentes milhares de homens e, sobretudo, mulheres. O caixão foi levado unicamente por mulheres, no que se disse ter sido um gesto sem precedentes. As corajosas mulheres gritaram “Justiça para Farkhunda!” e “Morte aos assassinos!” e não deixaram um proeminente clérigo participar no funeral.

As maiores manifestações a condenar o assassinato dela tiveram lugar no dia seguinte. Milhares de mulheres e homens de todas as idades estiveram presentes. Alguns jovens manifestantes pintaram a cara de vermelho para chamar a atenção para o rosto ensanguentado de Farkhunda enquanto ela resistia à turba. Os manifestantes também gritaram palavras de ordem contra os responsáveis e líderes religiosos que inicialmente justificaram o ataque. Gritaram “Apoiar o crime também é crime”, “Somos todos Farkhunda”, “Ignorância, a ignorância é inimiga da humanidade” e “Vergonha para vocês, A e G”, referindo-se a Abdullah Abdullah e Ashraf Ghani. Ghani foi recentemente eleito presidente com o apoio dos EUA e Abdullah, o anterior rival dele, ocupa agora o novo posto de chefe executivo depois de um acordo de partilha do poder negociado por Washington.

Os protestos contra o assassinato de Farkhunda não se limitaram a Cabul, também surgiram noutras grandes cidades como Herat e Mazar-e-Sharif. Este apoio permitiu à família dela resistir à pressão governamental para se distanciar da filha e, em vez disso, proclamou publicamente que estava orgulhosa do desafio e coragem dela. No funeral, eles conseguiram chorar a morte da sua amada familiar, juntamente com os milhares de pessoas presentes e com a simpatia de milhões de pessoas em todo o mundo. O irmão dela, Najibullah, mudou o seu apelido para Farkhunda em memória da irmã e negou que ela estivesse mentalmente doente.

O papel do governo islâmico e das autoridades religiosas do Afeganistão

Na manifestação contra o assassinato de Farkhunda a 23 de Março em Cabul, uma mulher retira o véu em protesto
Na manifestação em Cabul a 23 de Março contra o assassinato, uma mulher retira o véu em protesto (Foto: Zafar Shah Rouyee)

Este assassinato lançou um poderoso holofote sobre o brutal sistema político do Afeganistão. Os vídeos do crime mostram claramente a presença de um conjunto de agentes da polícia armados, mas nada fazendo para parar a turba de linchamento. A reacção governamental inicial foi condenar Farkhunda, e não os assassinos dela. O porta-voz do chefe da polícia de Cabul chamou a Farkhunda “uma apóstata”, o que significava que o assassinato dela era aceitável. Segundo a organização Human Rights Watch, Abdul Rahman Ahmadzai, um alto responsável do Ministério dos Assuntos Religiosos, disse à estação de televisão 1TV de Cabul que se Farkhunda tinha feito algo “em oposição aos ayahs [versículos religiosos] ou ao Alcorão, ela não é uma muçulmana, nós justificamos a acção do povo”.

Alguns clérigos também insistiram em que as turbas tenham direito a defender o “seu” Islão a qualquer preço. Chegaram mesmo a dizer que se o governo prendesse as pessoas envolvidas no assassinato iria provocar “uma insurreição”. Todas as declarações oficiais condenaram as pessoas que insultam o Alcorão em vez de condenarem o assassinato desta jovem a sangue-frio. Eles insinuaram que os elementos da turba, a quem chamaram “o povo”, estavam a fazer o seu dever.

Foi só quando viram a indignação em todo o país e no mundo que as autoridades começaram a mudar a sua melodia. O Presidente Ghani declarou: “Não vamos permitir uma justiça de turba” e o parlamento afegão mexeu-se para canalizar a ira popular, formando uma comissão de inquérito. Um investigador oficial disse que não tinha sido encontrada nenhuma prova de Farkhunda ter queimado uma cópia do Alcorão. Depois, as autoridades anunciaram ter prendido 28 pessoas, suspendido 13 agentes da polícia e demitido o porta-voz da polícia. Mas esta reviravolta não foi nenhuma surpresa porque, face à indignação das pessoas, até os talibãs condenaram o assassinato de Farkhunda a 24 de Março.

Obviamente, nessa altura todos estes reaccionários não tiveram outra alternativa a não ser condenar o assassinato desta jovem. O Presidente Ghani sabe muito bem que a “justiça de turba” é parte inseparável do regime dele e deste tipo de regime em geral que se baseia em caceteiros, seja do governo central, seja de facções particulares rivais, para impor a sua vontade em nome da religião das pessoas e da vontade de deus. Em vários países em todo o mundo, entre os quais o Irão, para citar apenas um entre muitos exemplos, as turbas agem frequentemente como impositores não oficiais de regimes reaccionários, da sua ideologia de estado e dos seus valores, juntamente com os representantes mais oficiais do estado.

Algumas questões sobre a importância deste ataque

É surpreendente que mesmo num país que há mais de 35 anos tem vindo a ser devastado por guerras reaccionárias, onde os bombardeamentos aéreos e outros crimes imperialistas criaram algumas das cenas mais sangrentas da história recente, ainda assim o assassinato de Farkhunda não foi, e não pôde ser, tratado como um assassinato comum. Em vez disso, este assassinato concentra algumas das mais importantes contradições do país. Os imperialistas ocidentais, liderados pelos EUA, invadiram e continuam a ocupar o país – de facto, já deixaram claro que não há nenhum fim próximo à vista para a sua ocupação – sob o pretexto de libertarem as mulheres dos fundamentalistas, mas tudo o que trouxeram foi a ruína nacional, um fundamentalismo mais forte e uma maior opressão das mulheres.

Homens vestidos com burcas em solidariedade com as mulheres afegãs
Homens vestidos com burcas em solidariedade com as mulheres afegãs (Foto: Massoud Hossaini/AP)

Farkhunda foi corajosa ao desafiar o mulá e as mercadorias dele, os amuletos ditos de boa-sorte, porque ela sabia que eles eram inúteis e só serviam para enganar as pessoas. O incidente mostrou que há mulheres que, apesar de estarem cercadas de uma forma tão brutal, não se rendem e não se deixam intimidar, pelo contrário estão decididas a lutar ainda que isso lhes possa custar a vida. Também mostrou que há muitas pessoas que lhes darão o seu apoio apesar dos riscos. Em vez de fortalecer o fundamentalismo religioso como pretendiam, este acto sórdido e cruelmente retrógrado fez com que as pessoas condenassem e denunciassem a religiosidade retrógrada e os seus representantes, incluindo aqueles que detêm o poder de estado. Esta luta também poderia expor aqueles que estão a controlar o cenário do crime por trás das cortinas – os EUA e seus aliados.

As autoridades afegãs, os imperialistas, os talibãs, a comunicação social interna e estrangeira e mesmo muitos activistas e pessoas comuns que apoiam os protestos estiveram unidas em salientar que o assassinato dela foi injustificado porque Farkhunda estava inocente da acusação contra ela. Disse-se que ao se ter oposto aos amuletos de boa-sorte ela estava a defender o “verdadeiro Islão” e que deveria ser considerada uma mártir religiosa. Quaisquer que possam ter sido os factos, esta abordagem totalmente errada poderia implicar que o assassinato dela teria sido justificado se ela de facto tivesse queimado um Alcorão. Esta posição aceita objectivamente os valores do chauvinismo masculino e do obscurantismo religioso. Representa uma autorização para os mulás ou as turbas assassinarem outras mulheres e homens por não serem “verdadeiros muçulmanos”. Em vez disso, o que deveria ser salientado é que o assassinato de Farkhunda teria sido um crime cruel mesmo que ela tivesse queimado um Alcorão. Ninguém deveria ser autorizado a forçar alguém a aceitar aquilo em que acreditar ou não acreditar. A possibilidade de a acusação contra Farkhunda ser falsa só torna o horror ainda mais óbvio.

Embora os responsáveis governamentais que inicialmente justificaram o assassinato tenham recuado sob pressão dos protestos populares, nunca sequer lhes ocorreu declarar claramente que o assassinato dela deveria ser, em todo o caso, condenado sem ambiguidades. Isto mostra que eles têm a mesma mentalidade que a turba que a linchou. Que outra coisa se poderia esperar de um regime cujo poder se baseia em servir os imperialistas, cuja seiva de vida é a corrupção e cuja legitimidade vem da religião e do fundamentalismo? O regime nunca se afastará destes pilares reaccionários que o mantêm no poder. Só pode promover e impor as relações sociais e os valores de opressão representados pelo mulá da mesquita de Shah-Du-Shamshaira e pela turba que assassinou brutalmente Farkhunda. É isto que liga a turba, o mulá, o regime e os imperialistas que invadiram e começaram a ocupar o Afeganistão há 14 anos.

O protesto das mulheres e homens contra o assassinato de Farkhunda tem de continuar. Poderia ser transformado em parte de uma luta por uma sociedade melhor, uma sociedade onde não haja opressão das mulheres, regra religiosa e dominação imperialista. Levar a cabo um combate em toda a sociedade afegã contra o chauvinismo masculino, o fundamentalismo e o imperialismo seria um importante passo nessa luta.

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