Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 6 de Outubro de 2008, aworldtowinns.co.uk

O Czar Nicolau II foi reabilitado... Dizemos não, não e não

Czar Nicolau II
O Czar Nicolau II em Março de 1917, por altura da abdicação dele logo após a Revolução de Fevereiro (Fonte: Asia, vol. 17, Março-Dezembro 1917)

O Supremo Tribunal da Rússia reabilitou Nicolau II, o último czar da Rússia, membro da família imperial russa Romanov que governou cruelmente a Rússia durante três séculos. Embora a Igreja Ortodoxa russa tenha canonizado os Romanov como mártires, nenhum deles foi um “santo” no sentido comum dessa palavra.

A declaração de 1 de Outubro de que o czar foi “uma vítima da repressão política” é totalmente falsa num contexto histórico. Faz parte de uma tentativa global dos actuais governantes capitalistas da Rússia, dos seus porta-vozes e dos avidamente complacentes descendentes dos Romanov para denegrirem as vitórias revolucionárias da revolução bolchevique russa e para promoverem a ideia de que tentar “libertar a humanidade” nunca poderá levar a nada de bom. Isto contraria a verdade de que onde há opressão há resistência por parte dos povos de todo o mundo. E o reinado dinástico dos czares teve tudo a ver com opressão.

A monarquia dos Romanov usou um brutal sistema policial (a Okhrana) para esmagar toda e qualquer oposição, usando execuções, prisões e o exílio como castigo. A Ucrânia e outras zonas limítrofes da Rússia foram ocupadas. Foi desencadeada uma pletora de pogroms contra os judeus, os quais não tinham quaisquer direitos de cidadãos. Durante a maior parte do domínio dessa dinastia, a esmagadora maioria dos camponeses (cerca de 80% da população) eram servos, presos à terra e sujeitos aos chicotes e aos caprichos dos nobres feudais e dos outros grandes proprietários de terras. Os camponeses habitavam aldeias isoladas e viviam dominados por convicções patriarcais tradicionais e pelo obscurantismo religioso da Igreja Ortodoxa. As mulheres camponesas estavam também sujeitas aos abusos dos seus maridos. Esse sistema económico e social preservava métodos agrícolas tradicionais (os camponeses ainda usavam arados de madeira), pelo que o aumento dos rendimentos dos nobres implicava uma ainda maior intensificação da exploração dos camponeses. Os nobres também investiam na indústria e usavam os camponeses nesses trabalhos. Houve centenas de insurreições camponesas só durante o século XIX.

Após uma importante derrota do mal treinado exército russo na Guerra da Crimeia e a agitação em massa dos camponeses, ficou cada vez mais evidente a instabilidade do domínio czarista. O avô do último czar, Alexandre II, estabeleceu a Lei de Emancipação de 1861 para libertar 20 milhões de servos, pagando avultadas somas aos nobres e grandes proprietários para redistribuírem a terra pelos camponeses. Essa lei de “emancipação” incluía muitas condições que a tornaram odiosa para os camponeses. Deixou-os com largos anos de pagamentos compensatórios e com a manutenção de regras que estruturavam rigidamente a sua existência. O seu objectivo era duplo: subjugar os camponeses e facilitar a reciclagem da velha nobreza em capitalistas modernos.

Forças bolcheviques na Praça Vermelha
Forças bolcheviques na Praça Vermelha, Moscovo

Nos primeiros anos do século XX, virtualmente todos os sectores da sociedade russa estavam em alvoroço. Nos campos, os camponeses continuavam a arcar com um fardo insustentável. Os camponeses ficaram com terras insuficientes, enquanto o czar e os nobres continuavam a deter grandes propriedades. Os conflitos entre camponeses e proprietários começaram a surgir em algumas zonas: em 1902-3, houve revoltas camponesas generalizadas em algumas partes da Ucrânia e no Volga. A agitação também era comum entre os operários industriais. O rápido crescimento da indústria pesada na década de 1890 criou uma nova força de trabalho urbana cujas condições de vida e trabalho eram desesperadas. As greves tornaram-se frequentes por altura do fim do século e resultavam frequentemente em confrontos entre os operários e a polícia ou a tropa. Ao mesmo tempo, começou a desenvolver-se uma oposição política organizada contra o czarismo. Muitos membros da intelligentsia, uma pequena minoria da população com educação superior, tinham tido acesso às ideias ocidentais, incluindo as do Marxismo, e desejavam ver transformações radicais na Rússia.

A derrota do exército do czar na Guerra Russo-Japonesa de 1904 desencadeou uma série de actividades revolucionárias entre os soldados amotinados e a sociedade civil. A revolução de 1905 foi o culminar de décadas de agitação e descontentamento que decorriam do domínio autocrático da dinastia Romanov e do ritmo lento das mudanças na sociedade russa. Embora essa revolta tenha sido selvaticamente esmagada, as reformas iniciadas na sua sequência não foram suficientes para impedir a revolução de 1917.

O factor que a despoletou foi o terrível efeito da I Guerra Mundial sobre o povo e o exército, em grande parte camponês. Tratou-se de uma guerra predatória de redivisão do mundo que envolveu dois blocos imperialistas. A 23 de Fevereiro de 1917, surgiram greves em São Petersburgo, acompanhadas de protestos de donas de casa contra a falta de pão em tempo de guerra. A princípio, esses acontecimentos nas ruas da capital não pareciam ser mais perigosos que as manifestações anteriores que tinham sido reprimidas ou que se tinham esgotado sem resultados. Essa agitação tornou-se muito mais significativa quando os soldados da guarnição de Petrogrado desobedeceram às ordens de abrir fogo contra os manifestantes. Alguns regimentos revoltaram-se e viraram as suas armas contra os seus próprios oficiais. Nicolau abdicou do trono e foi formado um governo provisório liderado pelo reformista Kerensky. Mas Kerensky não podia fazer nada para resolver os dois assuntos prementes do dia, recusando-se a retirar a Rússia da guerra ou a redistribuir as terras.

Lenine
O camarada Vladimir Ilitch Ulianov (Lenine), dirigente dos revolucionários bolcheviques, discursando às tropas frente ao Teatro Bolshoi em Moscovo, a 5 de Maio de 1920

A Revolução de Outubro de 1917, que derrubou Kerensky, foi profundamente definida pelos actos colectivos e pelas aspirações dos operários e dos camponeses. Desenvolveu-se numa atmosfera de generalizada desafeição social, resistência em massa e um grande fermento intelectual. O Partido Bolchevique liderado por Lenine estava preparado para a liderar como nenhuma outra força na sociedade russa dessa altura o poderia fazer. Teve um generalizado apoio e organização nos comités de fábrica, nas forças armadas e nos sovietes (as assembleias revolucionárias representativas dos trabalhadores e dos soldados que se tornaram em órgãos de poder). O novo poder proletário adoptou novos valores sociais, bem como relações económicas e sociais revolucionárias. O programa e a perspectiva bolchevique repercutiram-se não só na sociedade russa como em todo o mundo, quando os operários vieram em sua ajuda quando os seus próprios governos tentaram cercar e suprimir a nova sociedade da União Soviética.

As palavras de ordem bolcheviques que capturaram o sentimento das pessoas foram: Fim à Guerra, Toda a Terra aos Camponeses e Todo o Poder aos Sovietes. Depois das vitoriosas insurreições de São Petersburgo e Moscovo, emergiu uma guerra civil nos campos entre 1918 e 1920. Os Vermelhos e os seus apoiantes combateram os exércitos dos Brancos, alguns dos quais eram abertamente monárquicos e queriam restaurar o czar, enquanto outros queriam uma ditadura militar. Tropas britânicas, francesas, polacas, norte-americanas, japonesas e outras invadiram e ocuparam partes do país e juntaram-se aos Brancos para derrubarem o novo governo revolucionário.

Esta guerra civil representou uma batalha entre duas perspectivas opostas do mundo que competiam pelo governo da sociedade, uma que representava o velho sistema decrépito a que as massas veementemente se opunham e tinham derrubado, uma sociedade de domínio do czar e dos nobres sobre os camponeses e os operários ou um capitalismo pouco disposto e mesmo impossibilitado de gerar as grandes mudanças de que o povo russo necessitava, e uma perspectiva oposta, que representava um mundo novo onde as massas pudessem governar a sociedade e libertar toda a humanidade.

Foi neste contexto que o czar foi executado. Não foi um acto de vingança, mas uma decisão política tomada durante os dias negros dessa guerra civil, numa altura em que o restabelecimento da monarquia parecia ser uma possibilidade real. Esse acto político não foi muito diferente do que ocorreu durante as revoluções democráticas burguesas em França e Inglaterra, onde os reis foram decapitados para impedir a possibilidade do seu regresso ao poder e enfraquecer a contra-revolução.

O czar foi realmente uma vítima nessa batalha histórica? E quem foram os verdadeiros heróis nessa luta monumental?

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