Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 7 de Janeiro de 2008, aworldtowinns.co.uk

O assassinato de Benazir Bhutto e a estrutura de poder no Paquistão

Benazir Bhutto, a antiga primeira-ministra do Paquistão que recentemente tinha regressado do exílio para participar nas eleições, foi assassinada a 27 de Dezembro quando saía de um comício em Rawalpindi. Ela tinha escapado a um anterior atentado, umas horas após o seu regresso a 18 de Outubro. O governo do Presidente Pervez Musharraf acusou imediatamente Baitullah Mehsud, um chefe militar tribal do Noroeste do país supostamente próximo da Al-Qaeda, de ter organizado o assassinato. Algumas horas após o assassinato, antes de ser conhecido qualquer detalhe, o Presidente norte-americano George Bush apoiou essa alegação com uma declaração em que acusava os “extremistas” anti-regime. Ele telefonou a Musharraf para exprimir a continuação do apoio norte-americano ao seu regime.

Porém, o Partido Popular do Paquistão de Bhutto considera que os responsáveis foram alguns elementos dentro do governo e dos Inter-Serviços de Informações (ISI). Imediatamente após a sua morte, grandes multidões populares organizaram violentos protestos em Carachi, Lahore e em muitos outros lugares. Nos ataques aos edifícios governamentais e a outros símbolos do governo que se prolongaram durante vários dias, as pessoas gritaram “Musharraf é um cão” e outras frases que o acusavam directamente do assassinato.

O assassinato de Benazir Bhutto mergulhou o Paquistão numa crise ainda mais profunda que fez estremecer todos os sectores do país, com um potencial impacto de longo alcance em toda a região. O caos, a incerteza e a volatilidade que ao longo do último ano têm marcado esse país, aumentaram enormemente os perigos e os problemas do imperialismo norte-americano. Os desafios são elevados porque o Paquistão tem uma importância estratégica para os EUA e tem representado um papel crucial ao serviço dos interesses norte-americanos durante os últimos 30 anos, tanto durante a Guerra Fria como na sequência do 11 de Setembro de 2001. De facto, esta situação tem levantado questões fundamentais sobre para onde o país se dirige. Nem sequer a continuação da sua existência como estado federal unificado está garantida.

Todas as questões políticas parecem ser fontes de discórdia que concentram a contradição entre o povo e o partido dominante, a contradição entre o povo e os imperialistas e a contradição entre os vários imperialismos. O espectro de um Paquistão a implodir persegue os EUA e a Grã-Bretanha, os dois países que há muito dominam o país. Mas o povo também tem aproveitado todas as oportunidades para mostrar o seu ódio e enfrentar os governantes do país e os seus patronos imperialistas.

Quem matou Benazir Bhutto?

Não há dúvida nenhuma de que o assassinato de Bhutto trouxe choque, pesar e fúria a muitas pessoas, sobretudo às que tinham esperado que ela trouxesse a mudança ao Paquistão e que acabasse com a miséria por que têm passado, sobretudo durante o regime militar de Musharraf. A família de Bhutto tem sido um elemento chave da nervosa classe dominante do Paquistão desde muito antes de os britânicos terem criado o país. O pai de Benazir, Zulfikar Ali Bhutto, foi o primeiro primeiro-ministro do país a chegar ao poder em eleições parlamentares. Foi afastado do poder pelo General Zia ul-Haq num golpe militar em 1977 e executado dois anos depois. O irmão dele, Shahnawaz Bhutto, foi misteriosamente envenenado no Sul de França em 1985; um outro irmão, Murtaza, foi abatido em Carachi em 1996. A viúva de Murtaza acusou Benazir; Benazir acusou os ISI e o exército. De qualquer forma, o facto de a violência ser a única forma como a classe dominante do Paquistão consegue resolver rivalidades e disputas políticas foi uma outra fonte da raiva expressa nas ruas depois de também ela ter sido assassinada.

A crise e o caos que submergiram o Paquistão após a morte de Benazir não surgiram apenas da dor, mas talvez mesmo mais das circunstâncias e da controvérsia que rodeiam a sua morte. O governo anunciou que ela tinha morrido quando bateu com a cabeça contra uma alavanca do tejadilho do seu carro. Mas responsáveis do Partido Popular do Paquistão e testemunhas oculares têm insistido em que ela foi atingida no pescoço e no tórax. “Havia uma clara ferida de bala na parte de trás do pescoço. Entrou numa direcção e saiu noutra... Todo o meu carro está coberto com o sangue dela, as minhas roupas, toda a gente”, disse à BBC a porta-voz do PPP, Sherry Rehman.

De uma forma ainda mais profunda, muita gente não acredita na alegação governamental de que ela morreu às mãos dos fundamentalistas islâmicos. O governo alega ter interceptado uma conversa telefónica que indica que Baitullah Mehsud esteve por trás do assassinato. Mas, numa chamada telefónica à comunicação social, um porta-voz do líder tribal do Waziristão do Sul, Maulana Omar, disse: “Ele não teve qualquer envolvimento nesse ataque”. E acrescentou: “É contra a tradição e os costumes tribais atacar uma mulher”. O PPP acusou o governo de tentar tramar Mehsud, afirmando que ele tinha enviado a Bhutto uma mensagem em que lhe dizia não estar envolvido no atentado de Carachi que quase a matou em Outubro.

De facto, após o ataque de Carachi, e apesar das tentativas do governo para inundar a comunicação social com alegações de que os fundamentalistas islâmicos estavam por trás do atentado-suicida, a própria Bhutto acusou alguns elementos do partido dominante pró-Musharraf. É claro que Bhutto temia que alguns elementos dentro dos círculos governamentais estivessem a planear matá-la. Por exemplo, apenas dois dias antes do seu regresso do exílio, numa entrevista ao jornal britânico Guardian (15 de Outubro de 2007), ela disse: “Eu não estou preocupada com Baitullah Masood [Mehsud], estou preocupada com as ameaças dentro do governo... gente como Baitullah Masood são apenas peões. Foram as forças por trás dele que presidiram à ascensão do extremismo e do militantismo no meu país.” Ela especificou que os seus “inimigos mais poderosos” eram os oficiais militares aposentados “que lutaram na jihad... Eles têm muitos apoiantes e simpatizantes na administração e nos serviços de informações.”

Depois da primeira tentativa de assassinato contra si, ela levantou essa mesma questão com vários jornalistas, entre os quais o jornalista francês Patrick Cheval e o jornalista britânico Jason Burke. Ela enviou um email ao apresentador da CNN Wolf Blitzer sobre a ameaça contra a sua vida, indicando que se lhe acontecesse qualquer coisa, “eu considero Musharraf responsável”. Ela pediu-lhe que apenas tornasse público o email após a sua morte.

O envolvimento do governo de Musharraf ou dos militares, ou mesmo de elementos dentro do exército e dos ISI na morte de Bhutto é impossível de se provar por agora, e pode nunca vir a ser conhecido. Mas, tendo em conta todos estes indícios, é igualmente difícil ignorar os papéis que alguns sectores do governo podem ter desempenhado no assassinato. Entre os observadores e analistas sérios que têm pouco interesse em tomar partido, há um acordo mínimo de que mesmo que tivessem sido os fundamentalistas islâmicos a levar a cabo este assassinato, não o poderiam ter feito sem a ajuda de alguns elementos dentro do exército ou dos ISI.

A declaração de confiança de Bush na inocência de Musharraf sossegou pouca gente no Paquistão; de facto, isso apenas gerou mais ódio a Musharraf pela sua subserviência a uma potência odiada pela esmagadora maioria dos paquistaneses. A reacção do governo imediatamente após o assassinato – as aparentemente falsas declarações sobre como ela morreu, a ausência de autópsia, a apressada limpeza do local do assassinato que pode ter destruído provas – tudo isto tem alimentado ainda mais as suspeitas das pessoas.

Essas suspeitas não foram apaziguadas pela decisão do governo de aceitar um inquérito da Scotland Yard, sobretudo tendo em conta o comprovado historial dos agentes britânicos no encobrimento ou na justificação de assassinatos políticos. Uma vez mais, isso revela simplesmente o grau em que Musharraf colocou o seu país e mesmo o seu próprio destino em mãos imperialistas. Talvez Musharraf tenha aceitado essa investigação porque, tal como Bush, muito antes de ser conhecido qualquer facto, o governo de Gordon Brown já lhe tinha exprimido o seu apoio. Os resultados dessa investigação irão depender de decisões políticas tomadas pelos EUA e pela Grã-Bretanha, sobretudo com base nos seus cálculos sobre como melhor assegurar a sobrevivência do regime militar, com ou sem o seu actual líder. Os EUA e a Grã-Bretanha têm tornado claro que a sua verdadeira confiança está não em Musharraf como indivíduo, mas no exército paquistanês.

Porque é que Bhutto foi assassinada

Desde a criação do Paquistão há 60 anos que os golpes militares, as execuções, os assassinatos, as conspirações e outras formas de violência entre os seus governantes reaccionários têm caracterizado a cena política. Qualquer pessoa que entre nesse jogo político tem que estar preparada para essa violência. Quase nenhum chefe de estado paquistanês conseguiu sobreviver mais de uma década. Isto não é estranho tendo em conta que o país tem vindo a ser governado pelos militares durante a maior parte da sua existência. O exército tem desempenhado um papel central, mesmo durante os governos supostamente civis. É a instituição mais forte do país, não só militar e politicamente, mas também economicamente, penetrando todos os sectores da economia do país. O papel do exército está muito relacionado com a forma como o país foi fundado através de uma intervenção britânica, com o seu desenvolvimento desde então, primeiro sob tutela da Grã-Bretanha e depois dos EUA, e com o papel que lhe foi atribuído desempenhar num mundo dominado pelos imperialistas.

Apesar da sua submissão aos imperialistas ocidentais, sobretudo aos EUA, a família de Bhutto nem sempre foi considerada um bom encaixe na sua estrutura política. Apesar de serem uma das famílias khan (feudais) mais poderosas do país, de terem estado ligados de perto aos britânicos durante o seu domínio colonial e de terem aprendido a defender os interesses da classe dominante, eles quiseram afastar os militares do centro da vida política do Paquistão e reconfigurar a relação entre as instituições políticas e o aparelho militar. Procuraram estabelecer o tipo de estrutura política com que muitos países oprimidos são governados, em que as eleições disfarçam a ditadura dos grandes agrários e grandes capitalistas ligados à economia imperialista mundial e em que os representantes políticos dessas classes dominantes controlam o aparelho militar. É por isso que o autor William Dalrymple chamava a Benazir Bhutto “uma senhora feudal elegível”.

Além dos militares, o outro pilar da formação do Paquistão no decurso dos últimos 60 anos tem sido o Islão, cujo papel se tem tornado cada vez mais crucial. O país foi fundado com base no Islão como o principal ponto que os seus diversos povos tinham em comum. Essa religião foi usada como arma na disputa do Paquistão com a Índia sobre o Caxemira. Depois veio a Guerra Fria e a guerra contra a ocupação russa do Afeganistão. O Paquistão teve que representar o papel de terra do Islão para acomodar e apoiar todos os mujahideen que os imperialistas ocidentais encorajaram a vir de todo o mundo. O Islão e os militares tornaram-se parte integrante da estrutura de poder do Paquistão.

Depois do 11 de Setembro de 2001, apesar da alegação de Musharraf de estar a combater o fundamentalismo, ele fortaleceu o papel das forças islâmicas e aumentou a sua parcela no poder. Politicamente, os seus aliados mais chegados têm sido, sem excepção, simpatizantes do fundamentalismo islâmico.

O imperialismo norte-americano pode ter fechado os olhos a esta realidade, mas não é de forma nenhuma estranho à estrutura de poder do Paquistão, uma vez que tem sido o principal patrono da formação desse sistema ao serviço dos seus interesses estratégicos. Não há dúvida que esta situação contraditória criou problemas aos objectivos norte-americanos na região e no mundo mas, pelo menos até agora, os EUA têm sentido que não têm nenhuma outra boa alternativa a esta situação.

É difícil alegar que a família Bhutto, sobretudo Benazir Bhutto, seja laica, dado que em muitas ocasiões promoveu o Islão e as forças islâmicas. Também é um facto indesmentível que foi durante o governo de Benazir que os serviços de informações do Paquistão ajudaram os talibãs a chegar ao poder no Afeganistão. Mas a estrutura de poder do Paquistão não podia tolerar sequer uma pequena dose de laicismo na família Bhutto e no partido que lhe está associado, o PPP. Isto pode ter sido outro factor por trás da letal relação entre a família e o exército.

Quem foi Bhutto?

Benazir Bhutto não era desconhecida do povo do Paquistão. Ela já tinha sido primeira-ministra por duas vezes, uma em 1989 e depois em 1993-96. As massas não beneficiaram com o seu governo. É verdade que ela não era nem um general nem um mulá, mas ela era leal sobretudo aos interesses dos senhores feudais e da burguesia burocrata e, mais que isso, aos interesses dos EUA e de outros imperialistas. Durante o seu mandato no governo, houve pelo menos tantos assassinatos extrajudiciais, casos de tortura e mortes sob custódia como antes, se não mesmo mais. A corrupção entre os altos responsáveis governamentais não foi menor que antes, se não foi mesmo maior. Apesar das ilusões que algumas pessoas possam ter tido sobre ela por ser mulher, ela manteve em vigor quanto ao essencial as ordenações antimulheres “Hudood”, com as quais o General Zia ul-Haq reintroduziu a Xariá (lei islâmica).

Nos últimos anos, ela defendeu que podia fazer um trabalho melhor que Musharraf a servir os interesses norte-americanos e britânicos. Durante muito tempo, as autoridades norte-americanas ignoraram-na. Ela mostrou a sua frustração escrevendo um artigo em Agosto de 2006 em que criticava o apoio ocidental a Musharraf:

“Para mim, este padrão é uma consequência de o Ocidente permitir que os regimes militares paquistaneses reprimam as aspirações democráticas do povo do Paquistão, desde que os seus ditadores apoiem ostensivamente os objectivos políticos da comunidade internacional. O novo ditador paquistanês, General Pervez Musharraf, tem manipulado o Ocidente como um violino, dispensando um apoio ocasional na guerra contra o terror para manter afastadas a América e a Grã-Bretanha enquanto continua a prender e a exilar líderes da oposição, a dizimar partidos políticos, a pressionar a imprensa e a fazer recuar em uma geração os direitos humanos e das mulheres.” (Guardian, 23 de Agosto de 2006)

Enquanto Musharraf se afundava ainda mais na crise que tomava conta do Paquistão e a sua impopularidade vinha cada vez mais à superfície, o Ocidente não teve outra alternativa senão promover um acordo entre Bhutto e Musharraf para salvar o essencial do país. Mas a dependência dela em relação aos imperialistas foi ainda mais longe. Bhutto prometeu repetidamente aos EUA o acesso militar às zonas tribais do Noroeste do Paquistão como parte da sua solução para o problema do “terrorismo”, para mostrar que ela podia ser mais útil aos EUA que Musharraf. (Após a sua morte, as autoridades norte-americanas disseram que, de qualquer maneira, eles poderiam vir a enviar os seus comandos em grande escala, quer Musharraf gostasse disso ou não – embora a sua falta de consentimento e os seus protestos pudessem ser visto como sendo apenas para consumo público.)

Bhutto prometeu que, ao contrário da ditadura militar de Musharraf, ela faria com que a “democracia” se tornasse particularmente oca, dado que não apoiou as manifestações dos advogados de Maio e Junho passados, depois de Musharraf ter afastado o chefe do Supremo Tribunal quando este se recusou a vergar à vontade do general. Ela disse ao Senador Aitzaz Ahsan, um proeminente advogado que também foi um importante conselheiro do deposto juiz principal Iftekhar Chaudhary, que “ou ele estava com o juiz principal ou com o Partido Popular do Paquistão. O político educado em Cambridge que se tornou advogado dos direitos humanos permanece sob prisão domiciliária e continua a ser um apoiante da independência judicial. Ele também retirou a sua candidatura às eleições.” (International Herald Tribune, 31 de Dezembro de 2007 – 1 de Janeiro de 2008)

Numa palavra, o programa de Benazir Bhutto para combater os fundamentalistas e a ditadura militar era manter a mesma ditadura de classe com menos proeminência para os fundamentalistas e com o exército a actuar por trás dos bastidores, depender dos imperialistas dos EUA e da Grã-Bretanha e servir as classes reaccionárias internas. Mas, na actual situação mundial, o seu plano pode ter mostrado ser inaceitável para alguns dos seus parceiros jogadores neste jogo.

Os sucessores de Bhutto

Finalmente, alguns pontos sobre os sucessores dessa mulher que se autoproclamou “presidente vitalícia” do partido que, quanto ao essencial, sempre foi propriedade da sua família. No seu testamento, ela proclamou o seu marido Asif Ali Zardari como novo líder do partido. Isso é problemático, dado que Zardari é odiado por quase toda a gente, próximos ou afastados. Ele é considerado como estando muito mais interessado no seu enriquecimento pessoal que no futuro do país. Numa reunião do comité central do PPP, foi decidido que o seu filho de 19 anos, Bilawal, dado que partilha a linha de sangue dela, assumiria o nome de Bhutto e tornar-se-ia no seu herdeiro. Por agora, irá continuar a estudar, com Zardari a agir como regente. Este desavergonhado comportamento feudalista dentro do partido revela muito sobre a família de Bhutto e o seu partido.

Ao mesmo tempo que Benazir Bhutto pretendia lutar por um tipo diferente de Islão e por um tipo diferente de estrutura neocolonial para estabilizar um país de que os EUA necessitam desesperadamente de “estabilizar” sob os seus tacões, o país afundava-se cada vez mais profundamente na crise, mesmo quando ela defendia esse plano. O compromisso entre Musharraf e Bhutto colidia com cada vez mais dificuldades. Mas, sem ela, a situação não vai se tornar mais estável.

A verdade é que a intervenção dos imperialistas nessa parte do mundo pôs esse país no centro de um perigoso jogo durante a maior parte dos últimos 60 anos e sobretudo desde o 11 de Setembro. Essa situação atingiu o ponto de ebulição. É por isso que no Paquistão se têm gerado crise após crise. O país enfrenta tempos ainda mais perigosos e as massas enfrentam ainda mais sofrimento devido à situação criada por essas forças reaccionárias.

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