Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 25 de Agosto de 2008, aworldtowinns.co.uk
Nepal: PCN(M) lidera o novo governo
A nova República Democrática Federal do Nepal tem um novo governo, liderado pelo Partido Comunista do Nepal (Maoista). A eleição do seu Presidente Prachanda (também conhecido como Pushpa Kamal Dahal) para o lugar de primeiro-ministro foi o corolário de quase três meses de agitação política desde que, na sua primeira sessão, a Assembleia Constituinte aboliu a monarquia.
A Assembleia Constituinte, cujo objectivo é decidir a futura configuração política do país, foi o resultado de um processo iniciado em 2006 quando o partido maoista assinou um acordo de cessar-fogo com os principais partidos parlamentares, que tinham sido afastados do poder no ano anterior, quando o Rei Gyanendra tomou todo o poder nas suas próprias mãos. Contra todas as expectativas, o PCN(M) obteve mais de um terço dos lugares nas eleições que daí resultaram e que tiveram lugar a 10 de Abril de 2008. As eleições foram um rude golpe para os dois partidos que tinham dominado o parlamento durante o período da monarquia constitucional, o Congresso do Nepal [CN] e o Partido Comunista do Nepal (Unificado Marxista-Leninista) [UML], cujo número total de lugares somados foi ligeiramente menor que o dos maoistas. Apesar do seu nome, o UML foi um implacável opositor da guerra popular que se desenvolveu durante a monarquia, tanto durante o breve período em que o próprio UML encabeçou o governo como quando foi um parceiro menor do CN.
Apesar disso, esses dois partidos mostraram que pretendem continuar a representar um papel de destaque nas questões do estado.
Um dos principais slogans eleitorais do PCN(M) tinha sido “Prachanda a Presidente”. Mas, quando se realizaram as eleições para a Presidência há alguns semanas atrás, o candidato do PCN(M) não obteve a necessária maioria de votos na Assembleia Constituinte, devido a uma aliança entre o CN, o UML e o Fórum Madhesi Janadhikar [FMJ]. O FMJ é um partido novo, explicitamente não-revolucionário e pró-Índia, que diz representar as pessoas da região do Terai que vivem ao longo da fronteira com a Índia. A Presidência foi para Rambaran Yadav, um dirigente central do CN no Terai. Embora a AC tenha criado esse novo lugar para ser sobretudo cerimonial, como chefe de estado o presidente é oficialmente o comandante supremo do exército e está autorizado a declarar o estado de emergência.
Devido a encarniçadas negociações e manobras políticas, passaram-se 55 dias entre a abolição da monarquia e a tomada de posse do chefe de estado da república. Foram necessárias mais três semanas para que este presidente, por sua vez, empossasse o novo primeiro-ministro. Os esforços para a formação de um governo de consenso nacional, integrado por todos os principais partidos políticos, fracassaram apesar de um acordo pré-eleitoral nesse sentido. O CN, o UML e o FMJ guerrearem-se para saber quem ficaria com que pastas no novo governo. No entanto, isso não se tratou totalmente de uma questão de tacanho egoísmo partidário, uma vez que os três convergiam no princípio de que o PCN(M) tinha que ser tão cercado quanto possível, sem desacreditar completamente o sistema eleitoral que é a fonte da sua legitimidade. Uma componente dessa política foi negar a Presidência a Prachanda; outra foi um acordo no sentido de que mesmo que Prachanda fosse nomeado primeiro-ministro, o seu partido não poderia ter simultaneamente o Ministério da Defesa e o Ministério do Interior (polícia e segurança interna).
Quando o Ministério da Defesa foi negado ao CN, este recusou-se a apoiar Prachanda como primeiro-ministro ou a integrar um governo liderado por ele, mas o UML e o FMJ apoiaram-no. A eles juntaram-se dezenas de partidos mais pequenos e Prachanda ganhou facilmente. Contudo, passaram ainda mais 10 dias antes de o novo primeiro-ministro poder começar a formar o seu governo. Entre os oito ministros que tomaram posse a 22 de Agosto, que constituíam apenas um terço do total esperado, o PCN(M) tem quatro ministros: Finanças (Baburam Bhattarai), Defesa (Ram Bahadur Thapa), Lei e Justiça (Dev Gurung) e Informação e Comunicações (Kirshna Bahadur Mahara). O FMJ ficou com os Negócios Estrangeiros, Obras e Transportes, Agricultura e Educação. O UML tinha concordado aceitar seis ministérios, incluindo o do Interior. Mas, na cerimónia de posse, os líderes do UML recusaram-se a deixar que os ministros por eles designados avançassem para tomar posse. No momento em que escrevemos, alguns líderes do UML dizem que o partido não participará no governo a não ser que fique decidido o lugar de vice-primeiro-ministro, enquanto outros alegam que o partido não deve apoiar de nenhuma forma um governo liderado pelos maoistas. Os líderes do CN dizem que podem vir a tentar derrubar o novo governo.
Também ainda é obscuro o Programa Mínimo Comum (PMC) que deverá servir de base ao novo governo de unidade. Segundo o nepalnews.com, “o partido maoista propôs a reestruturação do estado num espírito de federalismo, a elaboração de uma nova constituição num prazo de dois anos, um pacote de auxílio imediato às pessoas afectadas pelo conflito e aos pobres, a integração dos combatentes maoistas e a gestão das armas num prazo de três meses, tal como definido no Acordo Integral de Paz (AIP), a reestruturação da burocracia para a adequar ao sistema federal, programas especiais de desenvolvimento para a região de Karnali, emprego para os jovens, o controlo dos preços e a normalização do fornecimento de combustíveis e outros bens essenciais, entre outros pontos” (2 de Agosto). No momento em que escrevemos, não estão disponíveis mais detalhes sobre o PMC.
Esta “integração de combatentes maoistas e gestão das armas” é o ponto mais controverso que o novo governo enfrentará. Segundo o acordo que pôs fim à guerra popular, o Exército Popular de Libertação [EPL], liderado pelos maoistas, deve deixar de existir. No seu discurso de tomada de posse, Prachanda repetiu o compromisso do seu partido em relação a esse acordo. O CN, em particular, exigiu que o EPL fosse imediatamente dissolvido, o que os maoistas se recusaram fazer, chamando-lhe uma violação do espírito do acordo. Por seu lado, o PCN(M) continua a defender a integração dos combatentes do EPL no Exército do Nepal (Red Star [Estrela vermelha] n.º 13, 18-31 de Agosto).
O Grupo Internacional de Crise [ICG], um think-tank liderado por altos responsáveis de estado e importantes conselheiros políticos das potências imperialistas ocidentais, diz que a existência de dois exércitos “não é uma situação sustentável” e aconselha a que esta questão seja resolvida através da admissão de “alguns milhares de membros” do EPL no Exército do Nepal, “um a um” (“A nova paisagem política do Nepal”, 3 de Julho de 2008, www.crisisgroup.org/asia/south-asia/nepal/nepals-new-political-landscape). Prachanda declarou depois das eleições que “Só os profissional e fisicamente adequados serão incorporados no exército, enquanto os outros poderão ser integrados na polícia ou poderá ser criada uma força de segurança industrial separada” (CNN IBM, 19 de Maio). Esta qualificação adicional significa que, ao contrário do que deixava pensar o AIP, muito poucos membros de todo o EPL continuariam com armas. Apesar disso, o Chefe de Pessoal do Exército do Nepal, Rookmanagad Katwal, continua a defender que, quanto a ele, por definição nenhum membro do EPL está qualificado para integrar o Exército do Nepal (EN), segundo o relatório do ICG. Katwal repetiu publicamente essa posição em Junho, dizendo que o seu exército nunca aceitaria “pessoas politicamente doutrinadas” nas suas fileiras (nepalnews.com, 12 de Junho).
Como também salienta o relatório do ICG, “o EN continua a ser... uma força largamente autónoma, e uma força desejosa de usar o seu músculo político... A transferência do comando supremo para o presidente do CN significa que... o EN nunca esteve sujeito a um menor controlo político em toda a sua história, quer no tempo dos Ranas como no dos Shahs” (as duas dinastias governantes do Nepal). Por trás da obstinação do exército, conclui o ICG, não está apenas o apoio explícito do CN e outros partidos, mas de uma forma muito mais fundamental, o facto de “ter estado protegido por aliados poderosos, em particular a Índia”.
Cerca de 19 000 membros do Exército Popular de Libertação têm estado confinados a acantonamentos e as suas armas foram colocadas sob a supervisão da ONU, com a perspectiva da sua eventual “integração” naquilo a que ainda se chamava Exército Real do Nepal quando o acordo de paz foi assinado. As condições de vida nesses campos têm sido por vezes muito más desde o início, e o facto de esses soldados do EPL não terem recebido os seus prometidos subsídios de vida, trouxe fome e doenças. Na véspera da posse do novo governo, o chamado governo interino libertou 13 meses de pagamentos atrasados aos que estavam nesses campos, bem como compensações aos familiares dos mortos durante a guerra. O dinheiro e aparentemente a iniciativa veio do Banco Mundial que também disse que patrocinaria programas de emprego para reintegrar os antigos combatentes na sociedade (Deutsche Presse-Agentur, 6 de Agosto).
Ao assumir o cargo, o primeiro-ministro Prachanda agiu ao abrigo do acordo alcançado com os partidos parlamentares e anunciou que ele e os outros membros do PCN(M) com assento na Assembleia Constituinte ou no novo governo deixariam os seus lugares no EPL (ele era o líder do EPL). Na sua tomada de posse, porém, foram soldados do EPL que forneceram a sua segurança mais próxima e controlaram os acessos físicos, como o têm feito desde que ele foi viver abertamente em Katmandu. Os outros partidos ergueram-se em protestos exaltados, exigindo que ele confiasse a sua segurança apenas ao Exército do Nepal.
A Liga Comunista da Juventude [LCJ] do PCN(M) tem sido um ponto de discórdia por razões semelhantes, já que os seus inimigos a acusam de ser uma força paramilitar revolucionária. Segundo o Kantipur (16 de Agosto), na sequência do acordo com os outros partidos que resultou na sua eleição como primeiro-ministro, Prachanda “também anunciou que seria abandonada a abordagem paramilitar da ala da juventude do partido, a LCJ, e que os edifícios públicos e privados, as fábricas e outras propriedades tomadas pelo partido seriam devolvidas aos respectivos donos. Ele anunciou que todas as unidades do partido estabelecidas como unidades paralelas ao estado [os vários níveis do anterior governo revolucionário estabelecidos durante a guerra popular] também seriam eliminadas. ‘Estes acordos serão implementados tão cedo quanto possível, depois de se definir um calendário’, assegurou Dahal.”
Outra questão central e controversa que o novo governo enfrenta é a da revolução agrária e eliminação das condições feudais, um objectivo central da guerra popular. “Sabe, nós não completámos a revolução de nova democracia”, disse o Presidente Prachanda aos seus entrevistadores no dia anterior à reunião da Assembleia Constituinte (Mary Des Chene e Stephen Mikesell, 27 de Maio de 2008, mronline.org/2008/05/27/on-the-eve-of-republic-in-nepal-an-exclusive-interview-for-mrzine-with-cpnmaoist-leader-prachanda/). A questão de saber o que acontecerá às terras confiscadas pelas forças revolucionárias durante a guerra não foi oficialmente resolvida, nem foi anunciado como será satisfeita a necessidade de medidas radicais permanentes nas zonas rurais. Poucas famílias camponesas – que constituem dois terços da mão-de-obra do país – conseguem alimentar-se com o cultivo das suas terras. Pelo contrário, elas dependem dos rendimentos de familiares que foram trabalhar para o estrangeiro, na Índia ou noutros lugares.
Um dos principais lemas do novo governo foi que defenderá os interesses nacionais nas relações do país com os seus vizinhos. Através de tratados assinados pela monarquia, bem como de laços económicos, políticos e militares densamente entrelaçados, o Nepal tem sido sufocado pelo domínio indiano. Têm surgido perspectivas contraditórias vindas dos círculos dominantes da Índia em relação à subida ao governo do PCN(M). O actual governo indiano desempenhou um importante papel na facilitação do processo que levou ao Acordo Integral de Paz. Enquanto o anterior governo fundamentalista hindu do Partido Bharatiya Janata (PBJ) exprimiu afronta pelo fim da monarquia hindu no Nepal, numa reunião que teve lugar no início de Agosto com o primeiro-ministro Koirala do CN, o primeiro-ministro indiano Manmohan Singh apelou à formação de um governo de consenso nacional no Nepal, que foi exactamente o que o CN acabou por impedir. Um dos principais jornais diários da Índia, The Hindu, elogiou a eleição de Prachanda como “a vitória definitiva da sobriedade, da responsabilidade e da moralidade sobre a política de cinismo e desconfiança” e criticou Koirala e os “poderosos interesses dentro e fora do Nepal” por se oporem ao “veredicto popular” nas eleições para a AC.
O relatório do Grupo Internacional de Crise diz: “O chegado envolvimento da Índia em todos os aspectos da política do Nepal não mostra nenhum sinal de diminuição; nem o âmbito da sua influência parece ter sido particularmente prejudicado ou intensificado pelas eleições. Apesar de toda a efusão de comentários e análises, o futuro das relações Nepal-Índia parece continuar a ser essencialmente mais do mesmo.”
Porém, numa clara ruptura com a tradição, a primeira viagem do primeiro-ministro Prachanda ao estrangeiro não foi à Índia, como era habitual, mas à China, onde se encontrou com o presidente e líder do Partido Comunista, Hu Jintao, e o primeiro-ministro Wen Jiabao. Prachanda reiterou “a posição do Nepal favorável aos esforços da China para manter a sua soberania nacional e integridade territorial” (nepalnews.com, 24 de Agosto).
O novo governo recebeu mensagens de parabéns de muitos dos seus vizinhos e das grandes potências, entre as quais a Índia, o Japão, a União Europeia e os EUA.
(Para conhecer os antecedentes e um resumo da situação, ver “O 12º aniversário da guerra popular no Nepal e o seu futuro em aberto”, SNUMAG de 11 de Fevereiro de 2008.)