Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 14 de Maio de 2007, aworldtowinns.co.uk
“Mortes de Honra” – De quem é a culpa? Um olhar ao Curdistão iraquiano
No dia ou por volta de 7 de Abril, Doa Khalil Aswad, uma rapariga de 17 anos de idade da aldeia de Behzan no Curdistão iraquiano, foi apedrejada até à morte em público pela sua família e pelo seu clã de uma forma trágica na cidade de Bashiqa, perto de Mossul, na província de Neyneveh no norte do Iraque. Doa era de religião yezidi, que é praticada nalgumas partes do Curdistão, no norte do Iraque, na Turquia e na Síria. Ela foi assassinada dessa forma horrível por causa do seu “crime” de se ter apaixonado por um árabe muçulmano. Ela fugiu à sua família e aparentemente converteu-se ao Islão para se casar. O “crime” de escolher o seu próprio companheiro mostrou ser imperdoável para a sua família e a sua tribo.
Doa foi ludibriada a voltar a casa quando o pai dela lhe enviou uma mensagem a dizer-lhe que a família a tinha perdoado e que poderia regressar a casa. Mas tinha sido tudo preparado para assassinar a jovem da forma mais terrível. Quando ela chegou perto da cidade, aparentemente foi arrastada atrás de um carro. Coberta de sangue mas ainda viva e chorando a pedir ajuda, foram-lhe atiradas pedras e betão até que morreu quando um enorme bloco foi atirado sobre ela.
Imagens vídeo da cena gravadas por telemóveis circularam na Internet. Quem viu esses vídeos assistiu aos dolorosos momentos finais da sua vida. Enquanto estava cercada por uma multidão hostil que incluía os seus tios, irmãos e primos, era claro que ela ainda esperava pela sua libertação – mas em vão. As imagens mostram cerca de cem ou mais pessoas a testemunhar a cena, enquanto as forças de segurança asseguravam que o apedrejamento de Doa decorria sem interferência. Num outro vídeo, a polícia está a bloquear o local e a impedir algumas pessoas de entrarem. O corpo inanimado de Doa ficou deitado durante vários dias sem ser tocado até ela ser enterrada numa sepultura na zona.
Porém, a história não ficou por aí. Cerca de duas semanas depois, a agência Associated Press e o Los Angeles Times noticiaram que, como vingança, a 23 de Abril um grupo armado (segundo algumas fontes curdas, um grupo islâmico armado) parou um autocarro perto de Bashiqa, separou 24 trabalhadores yezidis dos outros passageiros que voltavam a casa do trabalho, dispararam e mataram todos. O jornal austríaco Die Standard noticiou a 27 de Abril que após a morte de Doa as mesquitas de Mossul emitiram uma fátua a apelar à morte de yezidis. As mortes semearam o terror entre os yezidis, que temeram mais ataques.
Depois do massacre, uma grande manifestação da comunidade yezidi irrompeu em protesto contra essas ameaças em Erbil, Dhuk e Zakho, e também contra a fátua dos clérigos curdos que visava os yezidis. Alguns manifestantes atacaram violentamente a sede do Partido Democrático do Curdistão (KDP) nas cidades de Khana Sor e Jazira, a oeste de Mossul. Também foi noticiado pela Campanha Internacional contra as mortes de honra que a 29 de Abril em Arbil, a capital do governo regional curdo, “mulheres e homens protestaram em conjunto contra o assassinato público de Do'a Khalil Aswad. (...) A manifestação foi organizada por 90 ONGs e reuniu manifestantes de toda a região curda.” (Do sítio internet da Campanha Internacional contra as mortes de honra.)
As mortes de honra no Curdistão e o Governo Regional
Embora o brutal massacre de 24 trabalhadores yezidis possa ter sido em vingança pelo assassinato de Doa, não pode ser considerado de forma alguma de apoio a Doa. Se Doa fosse uma muçulmana curda ou árabe e se se tivesse apaixonado por um yezidi ou mesmo por outro muçulmano e fugido à sua família, dificilmente ela teria sido tratada melhor. A prova disto é o que está a acontecer às mulheres em todo o Iraque, sejam curdas, árabes ou yezidis. Será que Doa foi a primeira mulher a ser tratado tão selvaticamente no Curdistão ou noutras regiões? Será a última? Porque é que este comportamento desumano continua com frequência? Quem é responsável? E como é que se pode mudar este estado de coisas? Em particular, qual tem sido o impacto da guerra e da ocupação norte-americanas?
Durante os últimos anos, o Curdistão tem testemunhado casos como o assassinato de Pela e de muitas outras jovens pelas suas famílias, com o governo curdo a assumir repetidamente uma atitude complacente face aos culpados. Doa foi assassinada simplesmente porque era uma mulher que tinha ousado atravessar uma linha vermelha definida pelas classes dominantes na sociedade, uma linha vermelha que é acatada por muita gente em nome da tradição ou da religião. Uma linha vermelha que, se não acatada, leva ao isolamento social e a outras consequências por falta de protecção da “honra” da família.
Doa, como muitas outras jovens do nosso mundo dominado pelos homens, foi uma vítima daquilo que é denominado, numa terminologia que vira a realidade de pernas para o ar, uma “morte de honra”. Consideraram que ela tinha “envergonhado” a sua família, sobretudo os homens. Consideraram que ela era uma “mancha” na família que só poderia ser lavada com o seu brutal assassinato. Isso foi feito com o acordo da sua família e da sua tribo, da sua vizinhança e da sua comunidade, e mesmo das forças de segurança que nele participaram. As mortes de honra têm uma longa história na região. Elas representam não só um sistema de violenta repressão das mulheres que viola o seu direito à vida e segurança e as degrada e humilha, mas também é verdade que o tribalismo e o feudalismo controlam as mulheres e impõem o poder dos homens sobre as mulheres na sua globalidade. As mortes de honra têm sido praticadas há muito tempo num contexto onde relações retrógradas serviram de base a essa prática e o Islão funcionou como religião dominante da região e reflectia e reforçava essas retrógradas relações de produção. Essa prática tornou-se assim parte da tradição no Curdistão e em muitas regiões semelhantes.
A UNAMI, a Missão das Nações Unidas de Ajuda ao Iraque, no seu 10º relatório sobre a situação local dos direitos humanos, declarou que: “Entre Janeiro e Março de 2007, a UNAMI recebeu informações sobre cerca de quarenta casos de alegados crimes de honra em Arbil, Dohuk, Sulaimaniyah, e Salaheddin onde houve jovens que supostamente morreram de queimaduras acidentais nas suas casas ou foram mortas por familiares por suspeita de conduta imoral”. A Organização das Mulheres Curdas contra as Mortes de Honra (KWAHK) relatou que entre 1991 e 1998 centenas de mulheres tinha morrido devido às chamadas “mortes de honra” no norte do Iraque. O relatório lista mais de 100 casos individuais de mulheres mortas durante os anos 90 pelos seus maridos, irmãos, primos e outros familiares no norte do Iraque. Entre as razões dadas para as mortes era dito que as mulheres tinham cometido adultério, recusado casar contra a sua vontade ou saído de casa para casarem com um homem da sua própria escolha.
O governo curdo tem sido particularmente complacente para com este tipo de crimes e ignorado ou diminuído o estatuto destes crimes com a justificação de terem “motivos de honra”. O caso de Pela, por exemplo, atraiu a atenção internacional. Pela, que era solteira e morava na Suécia, foi abatida a tiro pelo seu tio Rezgar Atroshi em Dohuk, quando visitava o Curdistão em 1999. Ela ainda estava viva quando a mãe e a irmã a tentaram ajudar, mas Rezgar reapareceu e disparou para a cabeça dela, e então ela morreu. Um tribunal do Curdistão condenou o pai de Pela e o seu tio Rezgar pelo seu assassinato mas, depois do relatório da autópsia ter dito que ela tinha perdido a virgindade, invocou a justificação de “motivos de honra” e deu a cada um deles uma pena suspensa de um ano de prisão. Um outro caso conhecido foi o de Kajal Khidr. Ela tinha 24 anos e estava grávida quando foi acusada de adultério pela família do marido, perto da cidade de Rania, Sulaimaniya, no Curdistão iraquiano. Ela foi torturada, parte do seu nariz foi cortado, e então disseram-lhe que ia ser morta após o nascimento da criança. Ela conseguiu fugir. Com a ajuda de activistas locais dos direitos humanos, fugiu para a Síria em 1999 e, em 2000, para um terceiro país. Dois homens foram presos pelas autoridades do PUK em relação com essa tortura, mas foram libertados 24 horas depois sem qualquer acusação, com base na “honra” da família.
Sob pressão internacional e enfrentando uma publicidade negativa na Europa, primeiro o PUK e depois o KDP, alteraram a lei para criminalizar as “mortes de honra”, mas os observadores dos direitos humanos concordam em que ela permanece apenas no papel e que as autoridades curdas têm pouca vontade de a aplicar. Em muitos casos, elas fecham os olhos em vez de se envolverem.
O debate em torno do assassinato de Doa
O alastrar das notícias sobre o assassinato de Doa deu lugar a uma variedade de argumentos sobre as suas causas. Enquanto alguns tentaram relacioná-lo com a mentalidade retrógrada do povo e dos culpados, outros relacionaram-no com a cultura retrógrada do Curdistão e da região, enquanto outros ainda culpam algumas religiões. A verdade é que este tipo de comportamento e estas tradições emergiram numa situação histórica específica e não se pode dizer que os povos dessas regiões sempre agiram assim e estão destinados a continuar assim para sempre.
Todas as sociedades de classes se basearam no sistema patriarcal. A religião e a tradição desta região e de todas as outras regiões do mundo sempre estiveram ao serviço dos interesses de classe e das relações de produção dominantes. As sociedades retrógradas e semifeudais têm a sua própria forma de impor a supremacia masculina. Elas impõem-na de formas particulares para protegerem os seus tipos particulares de sociedade. A religião e a tradição não podem ser separadas desse facto.
O papel do Islão e o pano de fundo
Não há dúvida nenhuma de que o Islão, como muitas outras religiões, foi um factor importante no fortalecimento da opressão das mulheres na região. O que é particularmente importante é que devido aos anos de luta dos curdos contra a opressão nacional, as mulheres começaram a representar um papel, ainda que limitado, nessa luta em geral e também contra a sua própria opressão. Mas o seu papel tem sido cada vez mais restringido devido aos subsequentes desenvolvimentos na região. A tomada do poder pelo Regime Islâmico no Irão, conjugado com a promoção do Islão pelos imperialistas ocidentais nos tempos da Guerra Fria, sobretudo por altura da invasão social-imperialista soviética do Afeganistão, exerceu uma maior pressão para empurrar para o Islão o movimento nacionalista curdo do Iraque. Shahrzad Mojab, uma professora associada da Universidade de Toronto, no Canadá, que investigou extensivamente a situação das mulheres no Curdistão também descreveu da seguinte forma o impacto do Islão no Curdistão:
“O KDP e o PUK têm ignorado persistentemente a reivindicação da igualdade de género e de criminalização das mortes de honra, ambos curvando-se às exigências de um punhado de mulás e dos seus amos iranianos. Os clérigos curdos (mulás e xeques), que nunca pediram um domínio teocrático antes da introdução de um regime islâmico no Irão, exigem agora a islamização das relações de género e a subordinação das mulheres curdas segundo a sua própria variante do Islão. Financiados e organizados pelo Irão e pelos talibãs (antes da sua queda), alguns grupos islamitas curdos têm por objectivo estabelecer uma teocracia. Não surpreende que os líderes curdos que eram laicos antes de 1979 se relacionem agora com os islamitas e adiram às ideias islâmicas. Os dois governos curdos abriram mais mesquitas que abrigos para mulheres. De facto, não iniciaram a abertura de nenhum abrigo para mulheres. Pior, o governo do PUK lançou um ataque armado a um abrigo para mulheres gerido por um partido político de oposição (o abrigo era gerido pela Organização de Mulheres Independentes em Sulemani).” (MEWS Review, Primavera/Verão 2002, “Mortes de Honra”: Cultura, Política e Teoria)
Nos anos que decorreram entre a primeira e a segunda guerras do Golfo no Iraque, enquanto os EUA e os seus aliados (a Grã-Bretanha e também as forças curdas do norte do país) contavam com o clero e as forças fundamentalistas xiitas para criarem em conjunto um novo regime para o Iraque pós-Saddam, o regime de Saddam Hussein também tentou consolidar o seu poder através de alianças com líderes religiosos conservadores e com poderosos chefes tribais. Usou um processo de islamização da sociedade iraquiana, e também do Curdistão, para o conseguir. Em resultado, as mulheres perderam muitos dos seus direitos e aumentou a pressão sobre elas. O número de mulheres a usar hijabs [véus] aumentou, o número de mortes de honra aumentou, a poligamia foi autorizada, e por aí adiante. No que diz respeito à região do Curdistão, na proposta de constituição curda, o Artigo 7 declara que as leis do Curdistão devem seguir as leis da Xariá. As mulheres curdas estão actualmente a levar a cabo uma campanha contra esse artigo.
O papel da cultura
Algumas pessoas culpam o atraso das pessoas e a cultura da região pelo brutal assassinato de Doa. O facto de os seus familiares terem sido os principais culpados e de cerca de cem ou mais observadores terem estado a apoiar o apedrejamento ou permanecido silenciosos pode ter levado algumas pessoas a tirar essa conclusão. De facto, esse tipo de conclusões já tinha sido formulado na esfera académica e por alguns teóricos burgueses, separando esse atraso das relações de produção dominantes na região e retratando-o como parte integrante da cultura dessas sociedades. Eles ligam os povos dessas regiões a uma cultura, sem relacionarem isso com as relações de produção que constantemente produzem e reproduzem o chauvinismo masculino sob a forma dos véus para as mulheres e de as tratar como propriedade dos homens. O ponto de vista do “relativismo cultural”, enquanto trata as formas retrógradas de imposição do chauvinismo masculino como cultura, trata ao mesmo tempo essa cultura como eterna e parte do carácter dessa sociedade.
Porém, Shahrzad Mojab rejeita essa ideia e defende em vez disso que a violência contra as mulheres é uma cultura universal e que só a sua forma de imposição é diferente: Esta cultura (das mortes de honra) é semelhante, se não igual, à cultura ocidental, cristã, patriarcal que tem permitido que homens e mulheres façam explodir clínicas de aborto e assassinem médicos que praticam o aborto nos Estados Unidos e no Canadá. Pode-se alegar que a cultura das mortes de honra é tradicional, tribal, feudal ou rural. Mas qual é o significado desse tradicionalismo se tivermos em conta que nos Estados Unidos os homens matam 10 mulheres todos os dias? Embora esses assassinatos não sejam necessariamente motivados pela “honra”, as suas motivações dificilmente são mais humanitárias: a decisão de uma mulher terminar uma relação incita o seu parceiro masculino a matá-la. Setenta e quatro por cento dessas mortes “ocorrem depois de a mulher deixar a relação, pedir o divórcio ou pedir uma ordem de restrição contra o seu parceiro. (...)” (a mesma fonte que acima.)
De facto, quem se orgulha de recuperar a sua “honra” matando brutalmente uma mulher cujo único “pecado” foi ter-se apaixonado pelo homem da sua escolha também é, de certa forma, uma vítima da sociedade – vítima que ela própria desempenha um papel importante e crucial no funcionamento dessas relações retrógradas. Eles praticam o patriarquismo para protegerem o sistema do tribalismo e do feudalismo e outras relações retrógradas. Eles podem não saber o que de facto estão a proteger. Mas sabem que em nome da protecção da sua honra estão a proteger as vantagens que este sistema lhes apresenta enquanto homens, de domínio das mulheres na sua família e na sociedade, e eles representam as relações dominantes na família. Assim, não é só todo o sistema e as relações em que este sistema se baseia que são responsáveis pela morte de Doa e de muitas outras jovens vítimas das “mortes de honra” mas também quem actua assim tão ferozmente para proteger essas relações. Não é possível desfazer relações retrógradas sem uma transformação revolucionária da sociedade. Porém, mudar o sistema é impossível sem mudar a consciência das pessoas através da luta no domínio das ideias e do comportamento, para que passem a ignorar a protecção dessa suposta “honra”. Isto quer dizer que a luta por uma mudança revolucionária anda de mãos dadas com a luta contra a supremacia masculina onde quer que isso aconteça e sob qualquer forma em que ocorra.
A invasão do Iraque pelo imperialismo norte-americano e pelos seus aliados e a sua confiança nas forças mais retrógradas do país e as crescentes pressões sobre as mulheres daquele país fornecem um exemplo vivo do papel que os imperialistas representam na protecção dessas relações.