Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 22 de Março de 2004, aworldtowinns.co.uk
Melhor ou pior? O Iraque passado um ano
“Talvez não encontremos nenhuma arma de destruição em massa, mas conseguimos libertar-nos de um ditador verdadeiramente terrível.” Um ano após o início da guerra, agora que desapareceram as “armas de destruição em massa” que serviram originalmente de pretexto, esta é a linha oficial, de Bush a Blair, incluindo algumas pessoas que gostam de pensar que são moralmente superiores ao homem mais odiado do mundo e ao seu cão-de-trela. Não há mais verdade nisto do que nas suas agora desacreditadas mentiras de que Saddam ameaçava Nova Iorque e Londres com nuvens nucleares.
“Um gigantesco Guantânamo”
As prisões que o próprio Saddam, por alguma razão oportunista, esvaziou antes da invasão norte-americana, estão a encher-se novamente. As forças de ocupação chefiadas pelos EUA mantêm presos mais de 10 000 homens e jovens, bem como várias centenas de mulheres. As suas idades variam entre os 11 e os 76 anos, de acordo com uma base de dados militar revelada pelo jornal The New York Times de 7 de Março. A lista propriamente dita é secreta. Muito poucos desses presos foram acusados de algo específico. Nenhum tem advogado. À maioria é negado qualquer contacto com o exterior.
“Muitas famílias ainda não têm nenhuma ideia onde estão os seus homens”, escreveu o jornal. “Frequentemente são levados a meio da noite, com sacos em cima das suas cabeças e nenhuma explicação. Muitas pessoas disseram que quando perguntavam aos soldados para onde os seus familiares estavam a ser levados, eles lhes diziam para se calarem... Vários homens recentemente libertados das prisões norte-americanas no Iraque disseram que tinham sido pontapeados na cabeça, sufocados e colocados em quartos frio e húmidos durante vários dias de cada vez. As autoridades norte-americanas recusaram-se a fazer qualquer comentário sobre estas acusações.” O jornal descreve a prisão de Abu Ghraib, um símbolo do pior lado do regime de Saddam e agora um importante centro dos EUA, como “um centro de desespero. Diariamente, multidões de mulheres em trajes negros empurram os portões da frente, olham para as torres de vigia, agitando pedaços de papel gasto, pedindo aos guardas para verem os seus homens desaparecidos. ‘Mexam-se! Mexam-se! Mexam-se!’ gritou-lhes um dias destes um sargento norte-americano.”
“O Iraque foi transformado num gigantesco Guantânamo”, comentou amargamente um advogado iraquiano de direitos humanos. “Nada mudou”, disseram as pessoas no exterior de Abu Ghraib a uma activista britânica contra a guerra que mantém na internet uma página sobre o Iraque (www.wildfirejo.org.uk). “Os norte-americanos são iguais a Saddam.”
Na última semana, apareceram fotografias de guardas norte-americanos a torturar, espancar e abusar sexualmente de prisioneiros de Abu Ghraib. No seguimento de protestos dentro das próprias fileiras dos soldados dos EUA, o exército foi recentemente obrigado a dispensar das suas tarefas 17 polícias e oficiais militares (PMs), embora não tivesse havido nenhum castigo adicional até agora. (Muitos PMs dos EUA são reservistas que também são polícias na vida civil.) Práticas similares entre as tropas britânicas vieram à luz do dia em Fevereiro quando se descobriu que um jovem que tinha sido espancado e “ensacado” (neste caso, sufocado até à morte) era afinal filho de um oficial de alta patente do actual exército iraquiano. Os sobreviventes dizem que tais tratamentos são prática comum.
Como vivem e morrem as pessoas
Os ocupantes distribuem muito dinheiro à sua volta, principalmente para os seus próprios objectivos, mas também para comprar algumas pessoas (aos familiares das pessoas que eles são apanhados a assassinar é-lhes dado uma determinada quantidade de dinheiro vivo). Pela primeira vez em 13 anos, a economia do Iraque já não está a ser estrangulada por um bloqueio liderado pelos EUA. Deste modo, para algumas pessoas, as coisas vão melhor.
Mais electricidade está agora a ser gerada no país, porque os seus ocupantes precisam de electricidade para fazer funcionar os poços de petróleo e para impedir que as suas tropas tenham de fazer patrulhas na escuridão. Algumas escolas que os EUA bombardearam foram reparadas e pintadas. Mas quando a activista britânica visitou Sadr City, Afdhalia e Diyala – três grandes bairros pobres de Bagdad – não conseguiu encontrar uma única escola com uma casa de banho a funcionar ou janelas intactas. No chamado Triângulo Sunita a norte e oeste da capital, algumas escolas estão vazias porque os ocupantes prenderam todos os professores.
A água potável disponível é menos um terço do que antes da guerra. Isso quer dizer que muitas pessoas, especialmente as pobres, está a beber água que os fará doentes ou matará. Embora alguns hospitais tenham sido reconstruídos, os medicamentos comuns, desesperadamente necessários, ainda não estão disponíveis à gente comum.
O Iraque já teve o melhor sistema médico do Médio Oriente. Agora tem uma das taxas de mortalidade infantil mais elevadas do mundo. 108 em cada 1000 crianças que nascem morrem no seu primeiro ano, duas vezes e meia mais do que antes de o bloqueio ter começado. Em comparação, isso é cerca de vinte vezes mais que na maior parte da Europa Ocidental e quase o dobro dos valores da Índia e do Bangladesh.
O principal responsável pelo hospital de crianças de Iskan, em Bagdad, disse ao Washington Post de 5 de Março: “A coisa mais importante para os norte-americanos é o seu interesse: o Ministério do Petróleo. É para aí que o dinheiro vai. Eles não se preocupam com materiais médicos ou com oxigénio.” Mesmo os produtos básicos de limpeza são escassos. Um guarda de segurança disse ao repórter que por duas vezes durante os últimos meses os médicos daquele hospital tinham sido atacados por famílias de bebés que morreram porque lhes tinham sido negadas coisas como incubadoras.
A taxa de mortalidade infantil de um país é um das maneiras mais óbvias em que os números revelam o sofrimento desnecessário das pessoas. Água potável para prevenir a diarreia e simples antibióticos para a curar podem diminuir drasticamente o número de mortes. A taxa de mortalidade infantil do Iraque é um dos sinais mais fiáveis do modo depreciativo como a ocupação trata as vidas iraquianas.
Aumenta o número de mortos na guerra
Esta situação, sobre a qual Bush e Blair se sentem tão bem, teve um preço entre 8769 e 10618 mortes civis durante o último ano, de acordo com a organização académica Iraq Body Count (“Contagem de Mortos no Iraque”). Um funcionário do Ministério do Interior iraquiano disse ao The New York Times de 18 de Março que as forças de ocupação dirigidas pelos EUA mataram cerca de 500 civis iraquianos durante o último ano. O director da Organização de Direitos Humanos do Iraque disse que mais de 400 famílias preencheram relatórios de mortes injustas às mãos de soldados dos EUA.
Em Fevereiro de 2003, Rumsfeld previu que a guerra que os EUA estavam prestes a lançar “poderia demorar seis dias, seis semanas, mas duvido que demore seis meses”. Muito depois da captura de Saddam Hussein, ainda estão a ser mortos soldados dos EUA a uma taxa média de um ou dois por dia, bem como soldados de outras forças da “coligação” e o seu pessoal “civil” de todas as nacionalidades. Os EUA e os seus aliados tinham perdido 672 soldados até 18 de Março.
Que iraquianos estão no poder?
“Para se perceber como Bagdad se sente um ano após a queda de Saddam Hussein, só precisamos de subir pela sua pirâmide de classes”, disse uma jornalista da BBC a 18 de Março. “Quanto mais alto chegamos, melhor se parece.” Sadr City, um bairro pobre de Bagdad com mais de dois milhões de habitantes, maioritariamente xiitas reprimidos durante o antigo regime, não é hoje diferente. A principal diferença, concluiu ela, é que enquanto antes algumas pessoas esperavam que após a queda de Saddam as coisas fossem diferentes, esse sentimento evaporou-se. Mas quando se chega ao bairro rico de Mansour, as prateleiras das lojas, antigamente vazias, estão agora a transbordar com produtos electrónicos, roupa da moda e outros artigos de luxo.
É irónico que apesar de toda a sua bazófia sobre trazer “democracia” para o Iraque, os EUA insistam que qualquer eleição é impossível pelo menos durante o próximo ano ou dois, embora Saddam conseguisse realizá-las regularmente. Mas com ou sem eleições, não há nada democrático sobre a sociedade iraquiana e o regime que os EUA estão a tentar consolidar.
Depois de Junho, será transferida autoridade formal para o Conselho de Governo iraquiano. Os membros dessa quadrilha de clérigos e xeques, de políticos-negociantes ricos ao estilo norte-americano, e de líderes curdos pagos pela CIA foram todos escolhidos pelos ocupantes com base na sua vontade em obedecerem às ordens dos EUA. Os líderes curdos subordinaram a autodeterminação curda aos interesses dos EUA. Figuras xiitas como al-Sistani querem estabelecer uma versão pró-EUA da feudal República Islâmica do Irão. E há ainda as sobras do regime de Saddam. Como podem esses homens construir qualquer tipo de futuro democrático para o Iraque, seja qual for a forma como os EUA finalmente os decida organizar?
Obviamente o governo “soberano” pós-Junho será um regime fantoche. Mas mais que isso, a composição do Conselho de Governo mostra que a estratégia norte-americana para garantir o controlo a longo prazo dos EUA sobre o Iraque é a de se aliar às forças sociais mais retrógradas do país: latifundiários e tiranos tribais e de clãs, cuja autoridade assenta nas relações mais repressivas da sociedade iraquiana, e capitalistas cujo futuro está não no desenvolvimento do país mas em se tornarem parceiros menores dos EUA. Estas são mais ou menos as mesmas classes em que assentava o regime de Saddam, apenas com variações secundárias no que se refere aos interesses do povo.
É por isso que não surpreende que o exército e as forças policiais do “novo Iraque” são largamente constituídos por homens e especialmente por oficiais do “velho Iraque”. “Muitos generais” do antigo regime prestaram juramento no novo exército iraquiano numa cerimónia coordenada pela 101ª Divisão Aerotransportada dos EUA e organizada por um comité de generais iraquianos reformados em Janeiro, de acordo com o correspondente do jornal britânico Independent, Patrick Cockburn. Dos 15 249 polícias iraquianos que se tinham inscrito até 12 de Março, 12.422 eram membros da antiga e justamente odiada polícia. Bush e Blair pretenderam estar a libertar o povo iraquiano desses praticantes da repressão, mas, antes pelo contrário, estão a recrutá-los. A diferença em relação há um ano atrás é que agora esses homens são apenas auxiliares da verdadeira potência militar no Iraque: os EUA, a Grã-Bretanha e os seus aliados.
O futuro do Iraque
O “transferência” para um primeiro-ministro iraquiano não quer dizer que a ocupação terminará depois de 30 de Junho. Os planos exigem um general norte-americano de quatro estrelas no comando, ajudado por um general norte-americano de três estrelas e um adjunto britânico. Em suma, o “novo” Iraque é pior que o antigo, pelo menos de um modo muito importante: em vez de estar apenas contra Saddam Hussein e o que ele representava, o povo de Iraque tem agora o peso da mais poderosa potência do mundo e dos seus aliados a esmagá-lo.
Diga-se ainda que a “política das etnias” – mesmo quando dirigida contra os EUA em vez de tentar confiar neles – é, em última instância, uma política da burguesia e dos senhores feudais. Ela não pode resolver as contradições que o povo do Iraque enfrenta, nem unir as massas populares em torno dos seus interesses essenciais e dos povos da região e do mundo. Enquanto assim for, a resistência iraquiana não será tão forte quanto necessita ser para expulsar os EUA e os seus aliados. Contudo, a resistência à ocupação dos EUA é justa e representa um importante papel para impedir que os EUA avancem nos seus esquemas de conquista do mundo. Isso torna ainda mais fundamental que ela tenha o apoio dos povos do mundo.