Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 8 de Agosto de 2011, aworldtowinns.co.uk
Londres em chamas — A revolta dos jovens
“Violência sem sentido” — “pura criminalidade” — “monstros a tomar o controlo das nossas ruas” — os políticos e a comunicação social britânica, desde os tablóides fanáticos dos conservadores e de Murdoch aos trabalhistas e à liberal BBC, cerraram fileiras para denunciar a maré de agitação que varre as cidades do país. Mas o que está a acontecer nas ruas da Grã-Bretanha é uma revolta contra um aparelho de estado opressor que impõe uma sociedade injusta, um aparelho que perdeu muita da sua legitimidade aos olhos de milhões de pessoas. É uma revolta contra o racismo patrocinado pelo estado e a mentalidade colonial da classe dominante britânica em relação aos negros. É a recusa de centenas de milhares de jovens em aceitarem um mundo onde são despojados, sem trabalho e sem futuro.
Numa entrevista concedida terça-feira de manhã à BBC, a Ministra do Interior Theresa May deu o tom oficial, ao afastar qualquer discussão de as revoltas urbanas puderem ser devidas a qualquer outra coisa que não apenas “roubos e pilhagens”. Mas qual foi a faísca que despoletou esta fornalha de ira? Foi a morte pela Polícia Metropolitana de Mark Duggan, de 29 anos e pai de quatro filhos, no bairro de Tottenham, no norte de Londres. Duggan morava no Broadwater Farm Estate, um grande complexo de habitações sociais que há 26 anos foi o local de uma poderosa revolta quando numa rusga policial foi morta Cynthia Jarrett, mãe de um activista comunitário local. Mark Duggan era amplamente conhecido na comunidade local, que ficou chocada e enfurecida quando começaram a emergir os detalhes da morte dele. Ele foi morto pela polícia depois de uma unidade armada ter parado o mini-táxi em que viajava.
Segundo o jornal Evening Standard, o principal jornal nocturno de Londres (‘Father Dies and Policeman Hurt in ‘Terrifying’ , shoot-out’ [“Pai Morto e Polícia Ferido num Tiroteio ‘Aterrador’”], 05/08/2011), uma testemunha ocular de 20 anos viu Mark Duggan ser morto quando já estava estendido no chão. A testemunha é citada a dizer: “Cerca de três ou quatro agentes da polícia tinham os dois homens retidos no chão sob a mira de armas. Eram armas realmente grandes e então ouvi quatro longos tiros. A polícia atingiu-o [a Duggan] no chão”.
Inicialmente, a polícia alegou que Mark Duggan tinha disparado uma bala contra um agente da polícia que se alojou no rádio do polícia, salvando-lhe a vida “por sorte”. Desde então já foi noticiado que na realidade a bala foi disparada por uma arma da polícia. Agora, o polícia que atingiu Mark Duggan diz que nunca alegou que Duggan alguma vez tenha disparado. Toda a história de Duggan ter disparado primeiro e a polícia ter agido em autodefesa está agora em frangalhos.
Mas eis a parte importante: a maioria das pessoas tinha a certeza que havia um encobrimento policial, mesmo antes de se saberem os factos. As pessoas têm visto repetidamente a polícia a pôr uma capa de mentiras sobre a sua sangrenta repressão. Quando, em 2005, o jovem brasileiro Jean Charles de Menezes foi atingido por 6 vezes na cabeça após os atentados no sistema de transportes de Londres, a polícia disse que ele se tinha comportado como um “terrorista”, quando se veio a saber depois que ele não tinha feito nada de anormal. Quando Ian Tomlinson, um vendedor de jornais, foi espancado por um sargento da polícia durante os protestos contra o G8 em Abril de 2008, e morreu, a polícia começou por negar que o tivesse golpeado de todo e, em vez disso, culpou os manifestantes. O Projecto Inocentes documentou como, num período de poucos anos, morreram quase 200 pessoas em custódia policial — mas nem um único polícia alguma vez foi para a prisão por qualquer dessas mortes — como se de alguma forma cada uma dessas mortes tivesse sido natural ou atraída pelo próprio morto.
E tudo isto faz parte de uma rede mais vasta de mentiras e falsidades em que os políticos e a comunicação social publicitam as suas guerras como se fossem feitas em nome da “democracia” e da “liberdade”, quando elas não são mais que brutais guerras pelo império, e em que eles chamam a este inferno capitalista de cão-come-cão, de desigualdade e opressão, o melhor sistema da terra.
A chamada Comissão Policial Independente de Queixas [IPCC] diz não haver nenhuma verdade nas alegações de Mark Duggan ter sido morto a sangue-frio pela polícia. E os políticos de todo o espectro estão a dizer: Acalmem-se, esperem pelo veredicto. Mas que tipo de credibilidade pode esse organismo ter? A Directora do IPCC é Moira Stewart, uma ex-Comandante da Polícia que foi criticada por não ter passado informação vital ao seu superior, Ian Blair, nessa altura Comissário da Polícia, sobre o caso Menezes. O IPCC tem por missão investigar todos os casos de morte pela polícia. Encarregar Moira Stewart das investigações do IPCC torna a organização numa caricatura da justiça.
Eis aqui em acção a teoria dos controlos e equilíbrios da democracia capitalista! A polícia investigada pela própria polícia e depois declarando-se inteiramente inocente. Será de admirar que as pessoas oprimidas de zonas como Tottenham não tenham nenhuma fé neste sistema?
Em cima de tudo isto, a credibilidade da polícia foi seriamente minada quando recentemente os dois mais altos oficiais da Polícia Metropolitana tiveram que se demitir depois de ter sido divulgado que tinham recebido de parceiros do império de comunicação social de Murdoch prendas no valor de milhares de libras e que os agentes de Murdoch tinham pago aos polícias subornos de centenas de milhares de libras em troca de números de telefones pessoais de vítimas de crime, membros da realeza e celebridades.
Os políticos do Partido Trabalhista começaram por fazer algum ruído sobre o facto de as revoltas estarem a ser alimentadas pelos cortes feitos pela coligação dos Partidos Conservador (os tories) e Democrata Liberal. E que o programa de austeridade do actual governo e a crise financeira em geral de que ele faz parte estão a atingir as pessoas de uma forma realmente dura. O desemprego a nível nacional quase duplicou em 3 anos, e é particularmente elevado em lugares como Tottenham — por cada emprego no bairro há aí 54 jovens que precisam de trabalho, e a taxa de desemprego entre os jovens negros é superior a 50%. Um estudo relatou que de facto Tottenham é uma das zonas da Grã-Bretanha que será menos afectada pelos cortes governamentais — para começar, porque aí não há quase nada que possa ser cortado!
Tottenham e a maioria das outras zonas que têm sido palco dos combates mais intensos — Peckham, Lewisham, Hackney, em Londres, Merseyside em Liverpool, e bairros semelhantes em Manchester, Birmingham e Nottingham — situam-se todas no fundo da cadeia alimentar da Grã-Bretanha imperialista. E, desde há 13 anos, esse mesmo Partido Trabalhista que dizia às pessoas, às mulheres, às minorias e aos pobres em geral que era o partido deles — Trabalhista — presidiu à intensificação das desigualdades sociais e económicas. Tal como disse vergonhosamente o principal conselheiro de Tony Blair, Peter Mandelson, sobre o Partido Trabalhista: “Nós estamos inteiramente à vontade com o facto de as pessoas ficarem muito ricas”. Eles também mostraram estar inteiramente à vontade com o facto de as pessoas se afundarem numa pobreza esmagadora.
Mas à medida que as revoltas continuavam, os trabalhistas tem abandonado a sua conversa sobre as causas sociais da revolta e saltaram para alinhar com todo o poder britânico, começando a pedir mais repressão — na BBC, o ex-Presidente da Câmara de Londres, Ken Livingstone, o “Vermelho”, está a tentar provar que é “elegível” nas próximas eleições municipais, elogiando a polícia e apelando ao reforço das fileiras deles. Parlamentares e ex-parlamentares negros do Partido Trabalhista como Dennis Lammy juntaram-se-lhe, tal como o fez Dianne Abbott, que disse: “Os cortes não vos transformam em ladrões”. Os trabalhistas certamente que regressarão à sua conversa sobre como estes acontecimentos mostram a necessidade de se combater os “cortes tories” — mas só quando tiverem a certeza que a revolta foi esmagada pela força bruta.
No fundo, toda a gente sabe porque é que a polícia abateu Mark Duggan. Os negros na Grã-Bretanha têm sofrido o pior de tudo do imperialismo. Primeiro, os negros foram escravizados no Holocausto africano; depois, as suas terras foram colonizadas na “Disputa por África” do século XIX. Como é que uma nação que cometeu um tal genocídio justifica os seus actos? Dizendo a si própria que os negros são “violentos” e “selvagens” e merecem ser explorados e oprimidos pelo “povo branco superior”. São estes estereótipos em proveito próprio que constituem o pano de fundo da mentalidade dos agentes policiais que dispararam e mataram Mark Duggan. As pessoas que têm protestado e que se revoltaram irão sentir isso, mesmo que estes pontos de vista nunca apareçam na comunicação social de grande tiragem.
Um dos principais temas que está a ser propalado pela comunicação social, incluindo a BBC, é que a polícia foi “demasiado suave” com os jovens que se revoltaram nas ruas. Isto desencadeou um frenesim de actividade da Liga Inglesa de Defesa, do Partido Nacional Britânico e outros arruaceiros racistas nas redes sociais. Em sítios de blogging ditos respeitáveis como o Yahoo UK tem havido inúmeros apelos abertos não só à expulsão dos imigrantes como também à sua total “exterminação”. Mas não há nenhuma palavra de protesto em relação a isto de qualquer figura do sistema.
E quanto ao infinito fluxo de acusações de que, tal como disse o Vice-Primeiro-Ministro Nick Clegg, líder dos Democratas Liberais, “sejamos claros, a violência que vimos ontem à noite não tem nada a ver com a morte do Sr. Duggan. São roubos oportunistas e violência inútil — nada mais, nada menos.” É necessário dizer várias coisas sobre isto. Primeiro, consideremos a hipocrisia dos porta-vozes políticos e da comunicação social deste sistema a voarem para um frenesim de afronta contra os jovens dos bairros urbanos que roubam sapatilhas, telemóveis ou outros artigos de pequena monta. Esta classe dominante construiu o seu sistema sobre o tráfico de escravos, impôs um império colonial à custa de dezenas de milhões de vidas, e hoje extrai centenas de milhares de milhões de um império que se estende por todo o globo e é imposto pelas armas no Afeganistão e no Iraque. Estes hipócritas imperialistas de classe mundial não têm direito nenhum a condenar ninguém por “pilhagens e roubos”.
Mas vejamos melhor a verdadeira forma como decorreram os “roubos e pilhagens”. De facto, é muito claro que, tal como salientou o Guardian na sua cobertura a 9 de Agosto: “Não havia dúvida nenhuma quanto ao alvo deles: eles queriam combater a polícia”. Muitas das tácticas dos jovens, de atear fogos em caixotes do lixo de ruas laterais e coisas semelhantes, visavam atrair a polícia para a luta num terreno onde eles tinham pelo menos meia hipótese de lhe dar alguns golpes. A polícia, por sua vez, tentou evitar isso e, em vez disso, tinha as suas próprias prioridades — sobretudo a defesa de edifícios empresariais e governamentais de prestígio, ao mesmo tempo que concedia aos jovens mais espaço para entrarem em zonas sem esse tipo de alvos.
Por isso, quando os políticos e a comunicação social apontam para os poucos apartamentos ou lojas familiares que foram incendiados na primeira noite em Tottenham, é importante ser claro que a própria polícia foi um importante factor na determinação do que foi protegido e do que não foi. Além disso, as revoltas tiveram início numa explosão espontânea e enfurecida de adolescentes que eram necessariamente inexperientes na luta. Há erros que se fazem no decurso de qualquer luta. Houve mais duas noites de revolta que se seguiram à revolta inicial em Tottenham e parece que, apesar da rápida expansão da agitação, nenhuma ou pelo menos um menor número de casas foram destruídas pelo fogo.
As massas que participaram nesta revolta ou nas suas franjas estão cheias das contradições que advêm de fazerem parte da sociedade capitalista, ainda que sendo do seu sector mais oprimido. Num bairro social no centro da luta em Hackney, uma mãe afro-caribenha lamentou os jovens estarem a afastar-se da causa original de justiça para Mark Duggan, e estava particularmente incomodada com a pilhagem de lojas locais mas, quando o filho e os companheiros dele apareceram com um saco de roupas novas para ela, ela ficou encantada: “Eu vivo de ajuda, nós não temos nada”, explicou ela. Houve mães que discutiram com os seus jovens filhos e filhas para que não saíssem, mas que gritaram de prazer quando viram projécteis atingir uma carrinha da polícia. Um refugiado político iraquiano de meia-idade apertava junto ao tórax os seus valiosos documentos pessoais que tinha conseguido resgatar, preocupado por a queima de carros nas ruas poder incendiar o seu apartamento situado por cima, mas que se rasgava em simpatia para com os jovens que estavam a combater as mesmas forças que tinham transformado o seu próprio país num terreno de morte. Uma mulher afro-caribenha e as suas filhas reuniram-se à volta de um caixote incendiado a cantar a música de Bob Marley “Burning and Looting” [“Incendiando e Pilhando”].
É verdade que inúmeras lojas de família e de esquina foram pilhadas, e isto tem sido uma crescente fonte de tensão — lojistas, muitas vezes de uma só nacionalidade, estão a constituir brigadas em diferentes zonas para defenderem as suas lojas, o que dá à polícia uma verdadeira oportunidade de insuflar as chamas da luta interna entre os oprimidos.
Mas no coração desta amálgama de contradições, a força que impulsiona estas revoltas é a sensação por parte dos jovens de que é uma oportunidade de responderem às grandes forças que dominam as suas vidas e os oprimem e eles correm para agarrar esta oportunidade. Um grupo de quatro jovens nascidos na Grã-Bretanha e de origem somali que se dirigiam para os combates em Hackney na segunda-feira à noite disseram que sentiam que não tinham ninguém com quem pudessem contar a não ser com eles próprios e os seus companheiros, que podiam ter que abandonar a faculdade devido à recente enorme subida das propinas universitárias e que se consideravam “revolucionários”. Uma pergunta fica no ar: Em que medida os jovens foram influenciados pelas revoltas no Médio Oriente e no Norte de África?
Também vale a pena salientar que apesar dos uivos de afronta do sistema sobre a “violência dominante nas ruas da Grã-Bretanha”, não houve nenhum relato de ninguém a não ser a polícia ter sido especificamente alvo dos jovens. E, apesar dos conflitos que por vezes eclodiram nas ruas entre jovens brancos, asiáticos e afro-caribenhos, durante estas revoltas todas as pessoas que chegavam de qualquer etnia continuavam a ser saudadas num espírito de unidade e solidariedade — um tema que tem sido repetidamente descrito nas mensagens no Twitter, no Facebook e nos Blackberry que têm viajado pelas ondas electromagnéticas.
Os observadores também têm ficado atónitos com o mosaico de revoltas que varreram a capital e agora o resto do país. As anteriores revoltas — em particular Brixton e Tottenham nos anos 80 — ficaram limitadas a uma única zona da capital, em resposta a uma afronta específica da polícia. Mas, tal como nas erupções de revolta em França há alguns anos, a luta com a polícia eclodiu agora em pelo menos 20 bairros diferentes na capital, além das várias cidades das Midlands, com os jovens a mostrar serem muito mais fluidos e rápidos que mesmo as forças policial móveis. Não é exagero nenhum dizer que isto chocou as “cabeças falantes” do sistema, que têm lutado por explicar isto. Eles recusam a ideia de que há vastas fileiras de jovens, em número de milhões, que se sentem excluídos da sociedade e não aceitam nenhuma submissão às suas normas e regras e que anseiam pela oportunidade que agora estão a ter.
Esta revolta foi alimentada pela ira em relação aos cortes, à pobreza, ao racismo e à polícia. Há agora uma verdadeira fúria quanto à brutalidade e à opressão de um aparelho de estado que pode pura e simplesmente abater um negro a sangue frio e depois tentar encobrir o seu rasto com mentiras e desinformação. Mas embora isto tenha sido a faísca, o facto de esta faísca ter pegado fogo e se ter propagado tão longe e tão rápido reflecte muito mais que qualquer abuso específico. A polícia é a linha da frente da imposição de todo um sistema capitalista que é construído com base na exploração e na desigualdade. Aos olhos do sistema, a violência policial é por princípio “legítima” — porque ela é a defensora armada das relações de propriedade que levam a que um punhado de pessoas acumule uma riqueza fabulosa, enquanto milhões de pessoas vivem com nada e não têm nenhuma esperança de alguma vez virem a a ter algo mais. Não é o acaso que faz com que os polícias parem jovens negros nas ruas milhares de vezes por mês, sem que haja quase nenhuma prisão — isto é apenas o gume mais afiado de todo um sistema, e os esforços para reduzir o que está a acontecer com um ou outro abuso específico apenas se resumirão a tentar pôr pensos nas chagas quando o que é necessário é chegar à causa de fundo e eliminar o sistema que é a fonte de todos estes abusos, através da revolução.
À medida que a terceira noite de revolta arrefece, a pergunta nos lábios de toda a gente é: O que é que se segue? Aumentam os gritos de recolher obrigatório generalizado ou de que o exército intervenha, ideias que estão a ser invocadas mesmo por apresentadores liberais como John Humphrys da BBC. Uma coisa é certa: a justiça e o respeito que as massas desejam e merecem não lhes serão concedidos por este sistema.
Carl Dix, porta-voz do Partido Comunista Revolucionário, EUA, fala sobre a justa fúria da revolta dos jovens na Grã-Bretanha.