Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 16 de setembro de 2018, aworldtowinns.co.uk

Líbia e Europa: O remoinho que arrasta imigrantes para a morte

Dois grandes barcos de borracha saíram da Líbia a 1 de setembro rumo a Itália. Tal como inúmeros barcos semelhantes antes deles, levavam centenas de pessoas vindas do centro, leste e norte de África e, tal como tantas vezes tem acontecido, o motor de um deles falhou e o outro começou a esvaziar-se.

Ninguém apareceu para os salvar.

Alguns aviões europeus notaram a localização deles – entre Itália e Malta – e por duas vezes lançaram barcos salva-vidas. Os passageiros não conseguiram chegar até eles. Já estavam a debater-se na água, agarrando-se a partes flutuantes dos barcos. A maioria deles não sabia nadar e poucos tinham coletes salva-vidas.

O governo italiano recusou-se a enviar um navio de salvamento. Argumentou que devido a um acordo assinado entre a Itália e um dos vários centros de poder que competem pelo controlo da Líbia, um acordo contrário ao direito italiano, europeu e internacional, apenas a chamada Guarda Costeira da Líbia tem agora autoridade para levar a cabo operações de salvamento nessas águas.

Na realidade, mesmo que um navio da Guarda Costeira italiana os quisesse ajudar, não poderia. Apesar dos protestos de membros da Guarda Costeira italiana e de oficiais militares, no final de agosto, o dirigente fascista italiano Matteo Salvini proibiu um navio da Guarda Costeira (Il Diciotti), que levava a bordo quase 200 pessoas resgatadas no mar, de deixar que a maioria dos seus passageiros desembarcasse, mesmo numa cidade que lhes ofereceu abrigo. Os navios comerciais foram avisados de que o mesmo lhes poderia acontecer.

Nem um único navio de salvamento consegue agora operar no Mediterrâneo. Alguns deles têm estado retidos por manobras legais. Outros foram expulsos do mar devido às ameaças italianas de deter e prender as suas tripulações. Ao longo dos últimos meses, os barcos de patrulha fornecidos à Guarda Costeira líbia pela Itália têm disparado tiros de aviso para evitar que as ONG salvem pessoas, enviado homens armados para bordo deles e exigido que as pessoas resgatadas sejam transferidas para a custódia deles, ameaçando que da próxima vez matariam membros da tripulação.

A situação no Mediterrâneo central passou de horrenda a ainda mais horrenda. O número de pessoas que conseguem atravessar o mar diminuiu em 80 por cento. Desde julho, aparentemente, a maioria das pessoas que o tentou fazer não conseguiu. A percentagem das que morreram a tentar fazê-lo quadruplicou. Três quartos das restantes foram levadas de volta para a Líbia pela Guarda Costeira, não propriamente resgatadas, mas sim capturadas sob a ameaça de armas.

Em julho, quando duas mulheres com uma criança pequena se recusaram a seguir as restantes pessoas que estavam no seu barco de contrabandistas para bordo do navio da Guarda Costeira que o tinham intercetado, o barco foi cortado ao meio e elas foram abandonadas à morte. A Líbia não permite que outros navios se aproximem à vista – ou à distância de uma arma – das suas operações. No dia seguinte, foi encontrado um pequeno quadrado de detritos flutuantes, com uma das mulheres ainda viva e a outra mulher e a criança mortas ao lado dela.

A Itália ofereceu-se para receber a mulher sobrevivente, mas não os cadáveres. Os marinheiros voluntários que as encontraram, do navio Proactiva Open Arms, cujo trabalho foi iniciado por salva-vidas e profissionais privados de salvamento marítimo espanhóis, transportaram a mulher para um local seguro em Espanha, segundo eles, para que ela não pudesse ser impedida de testemunhar num dos vários processos apresentados contra o governo italiano.

No incidente dos dois barcos de borracha em setembro, quando surgiu uma embarcação da Guarda Costeira líbia, muitas das pessoas, pelo menos uma centena, já tinham morrido. Quase todos os sobreviventes, mesmo aqueles que sofriam de queimaduras químicas graves devidas ao combustível derramado, foram levados para campos de detenção para aí serem mantidos indefinidamente.

O número de prisioneiros nesses centros – armazéns e outros edifícios cercados por arame farpado – duplicou desde julho. Oficialmente há cerca de 10 mil, mas a Amnistia Internacional estimou que no final de 2017 havia 20 mil. Nessa altura, a União Africana disse que centenas de milhares de pessoas estavam detidas em muitas dezenas de prisões oficiais e não-oficiais por toda a Líbia. Ninguém sabe o verdadeiro número delas, uma vez que o governo líbio apoiado pela Itália e reconhecido pela UE não mantém registos das pessoas que retira dos navios e, muitas vezes, subcontrata esses campos de concentração a milícias e a gangues, pelo que não há um acesso independente nem uma responsabilização.

A informação sobre o incidente de setembro vem de um relatório da ONG Médecins Sans Frontières (Médicos Sem Fronteiras), que conseguiu entrevistar alguns dos sobreviventes. A julgar pela experiência passada, relatada pela Amnistia Internacional com base em entrevistas a 72 pessoas que se salvaram de diferentes barcos e de diferentes prisões, e as quais o governo italiano e os seus subordinados líbios não conseguir fazer com que se afogassem, eles irão certamente enfrentar a fome e outras dificuldades extremas. Muitos deles serão torturados, mortos ou vendidos como escravos. Este tratamento não é apenas sádico. É fundamental para a economia política daquilo a que os líderes europeus agora chamam de “externalização” da “crise migratória”.

A dominação imperialista de África bloqueou o futuro de inúmeros milhões de pessoas. Há décadas que os migrantes, à procura de uma saída das suas situações de sufocamento, se encaminham para a Líbia ao longo de trilhas bem estabelecidas através do deserto. Durante os anos do regime líbio liderado por Muamar Gadafi (1969-2011), eles foram a força de trabalho por trás da economia petrolífera do país. Eles também foram politicamente úteis ao regime, uma vez que podia abrir e fechar a “torneira” (dos migrantes que saem da Líbia para a Europa) para facilitar as relações dele com Itália e outras potências europeias.

O Ocidente conduziu o regime de Gadafi a um fim violento. A Itália, o antigo senhor colonial do país, competiu com a França e a Grã-Bretanha para fazer cambalear o regime. A França estava tão ansiosa em voltar a entrar no jogo que começou a bombardear Tripoli mesmo antes do fim de uma reunião de potências ocidentais convocada pelos EUA para discutir uma intervenção coletiva. Desde então, por razões que incluem a contenda entre as potências imperialistas, sobretudo Itália, França e EUA, bem como o surgimento de grupos islâmicos armados, nenhuma das diversas forças rivais na Líbia que prosperaram no vácuo de poder deixado pela intervenção – comandantes do regime de Gadafi que se tornaram senhores da guerra, milícias e gangues – conseguiu obter uma posição de superioridade. Todas elas dependem de duas fontes de receitas – o petróleo e os imigrantes – para financiarem a sua sobrevivência e para controlarem o poder. Esta situação não poderia ter surgido, ou pelo menos ter continuado assim, sem a complexa simbiose entre as forças líbias e os imperialistas em disputa.

Embora o número de novas chegadas esteja a diminuir, continua a haver mais de 600 mil pessoas vindas de outros países desesperadas por saírem da Líbia, segundo o relatório da Amnistia Internacional. Agora, a única saída é através de Itália. Quando os migrantes são negros, a sobrevivência deles está em risco. Eles são capturados, muitas vezes nas ruas, por gangues ou soldados, e aprisionados. Alguns deles acabam por ser libertados quando isso convém aos seus captores. A luta entre as diversas forças rivais por vezes cria oportunidades para uma fuga da prisão. Outros são mantidos como trabalhadores dos campos ou vendidos como escravos, de uma maneira similar à escravatura de bens moveis que foi uma das principais fontes da acumulação de capital que permitiu à Europa e aos EUA dominarem o mundo. Mas há maneiras de traficar pessoas e acumular riqueza que são únicas no momento atual globalizado e interligado: os telemóveis (celulares) e a facilidade em fazer transferências bancárias internacionais. Os prisioneiros são obrigados a telefonar para as famílias e os amigos para pedirem o dinheiro do resgate. A Amnistia Internacional, tal como outras ONG, tem documentado casos em que os captores telefonam para as pessoas das listas de contactos dos prisioneiros, para que as famílias e os amigos possam ouvir e ver os prisioneiros a ser torturados.

O dinheiro pode comprar a libertação, mas é-lhes exigido ainda mais dinheiro para saírem dali. Um homem descreveu ter de concordar em ser escravo temporário de um motorista, sob pena de ser vendido para uma escravidão permanente, em troca de uma viagem do campo até à cidade mais próxima. Se conseguem juntar dinheiro suficiente, podem comprar uma passagem num barco operado por contrabandistas que não consegue chegar a mar aberto sem subornar os responsáveis da Guarda Costeira. Se o contrabandista não pagar, os passageiros pagarão por isso. A Guarda Costeira, cujos dirigentes muitas vezes são eles próprios contrabandistas, pode impedir a passagem de um barco operado por grupos rivais – e capturar os seus passageiros. Ou pode deixar passar um barco que paga – e acaba por recuperar os seus prisioneiros quando ele fica em apuros. Os sobreviventes ficam novamente aprisionados e o ciclo recomeça. O relatório da Amnistia Internacional chama a isto uma economia constituída por “autoridades, milícias e grupos armados, muitas vezes trabalhando em perfeita comunhão com os contrabandistas para obterem ganhos financeiros”. Neste momento, os migrantes são mais lucrativos para o tráfico – e estão mais prontamente disponíveis – do que o petróleo. Não é de admirar que os diferentes grupos rivais estejam a lutar por eles.

Isto não é apenas uma questão de criminosos líbios dentro e fora do poder. Embora a Itália, a França e a UE enviem fundos para os grupos líbios que apoiam e os oficiais navais e marinheiros italianos também estejam ativos no local, os migrantes são uma importante fonte de rendimentos que agrega e subsidia as organizações locais que impõem a vontade da Europa. Para a Europa, a situação não poderia ser melhor: pode fingir que nada disto é culpa dela, ao mesmo tempo que o próprio poder do dinheiro – até cinco mil milhões de euros por ano são apropriados de famílias em toda a África, Médio Oriente e outros lugares – cria um incentivo irresistível para fazer o trabalho sujo dela.

A política europeia de “externalizar” o “problema” dos imigrantes foi decidida numa recente conferência de dirigentes dos países da UE em que a Itália conseguiu liderar a iniciativa porque nenhuma grande potência conseguiu apresentar uma alternativa que sirva qualquer um dos seus interesses reacionários. Moralmente, nenhuma delas pode fornecer o que a maioria das pessoas reconheceria ser a única resposta aceitável à simples questão expressa no cartaz de um grupo de salvamento: “Vejo um homem que se está a afogar. Digo-lhe que já temos pessoas pobres no meu país, ou salvo a vida dele?” Materialmente, isto acontece porque esta “crise” é um concentrado da situação em que se encontra o mundo inteiro. O fator subjacente é a grotesca divisão do globo em países opressores e oprimidos e o funcionamento convulsivo do sistema imperialista em que um punhado de capitalistas monopolistas baseados em potências imperialistas rivais angaria uma riqueza antes inimaginável através da exploração da grande maioria das pessoas do mundo.

A “crise migratória” não pode ser resolvida sem se derrubar este sistema o mais rapidamente possível. Como escreveu o Grupo do Manifesto Comunista Revolucionário (Europa): “A verdade é que é impossível que um punhado de países ricos beneficie e imponha o atraso e a pobreza numa tão grande parte do mundo, sem ter de enfrentar as consequências dessa dominação.” Os imperialistas não têm nenhuma maneira efetiva de enfrentar essas consequências a não ser através da violência direta e indireta contra as pessoas dentro e vindas de países oprimidos, uma violência que muitas pessoas nessas “pátrias” são ensinadas não só a tolerar mas a acolher. Mesmo quando o número de migrantes decai drasticamente, cada vez mais pessoas pouco beneficiadas nos países ricos são levadas a ver os imigrantes, reais ou imaginários, como uma ameaça a uma ordem moral retrograda, a um tecido social reacionário e aos privilégios percebidos associados a essa ordem mundial. Elas estão entre as principais fontes que alimentam a viragem à direita e a vertiginosa ascensão do fascismo na Europa.

O anterior Ministro do Interior de Angela Merkel, Thomas de Maiziere, incentivou entusiasticamente a Guarda Costeira líbia, mesmo num momento em que a “Mãe Merkel” era elogiada como amiga dos imigrantes, porque isso “dissuadia” as pessoas de arriscarem a vida no mar. Mas longe estão os dias em que todos os que estavam no poder falavam em termos “humanitários”. O novo governo de Merkel está dividido. O seu atual Ministro do Interior, Horst Seehoffer, que ela nomeou para estabilizar a coligação governamental face à ascensão ao parlamento do partido fascista AfD, está muito mais perto do italiano Salvini do que de Merkel. Isto deixou o governo francês de Emmanuel Macron – que também tem aprovado legislação anti-imigrantes, enviado repetidamente a polícia para destruir os campos e os pertences dos migrantes e criminalizado a ajuda aos migrantes – a ser considerado o principal contrapeso europeu a Itália, apesar de fazer os seus próprios acordos com os centros reacionários do poder na Líbia.

Como resultado desta tempestade política perfeita, a convergência de muitos fatores diferentes, a Líbia transformou-se num faminto remoinho que arrasta inúmeros africanos e outras pessoas para as profundezas do sofrimento.

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