Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 30 de Maio de 2005, aworldtowinns.co.uk

Karzai, os outros senhores da guerra e os talibãs:
A razão por que as eleições afegãs foram adiadas

As eleições parlamentares no Afeganistão foram recentemente adiadas, pelo menos pela terceira vez. As declarações contraditórias do regime afegão dirigido pelo fantoche dos EUA Hamid Karzai e pelos seus amos norte-americanos deram origem a interrogações sobre o que estará realmente por trás destes sucessivos adiamentos. Os EUA deram uma grande importância à realização de eleições no Iraque ocupado e, até agora, no Afeganistão ocupado. O que os EUA definem como democracia em qualquer país sob seu controlo é a realização de eleições “multipartidárias”. Não interessa que todos os partidos sejam lacaios dos EUA ou que tenham oprimido as massas durante anos seguidos – de facto essas são algumas das condições prévias para que os EUA considerem esses partidos como “legítimos” e para que um país seja considerado “qualificado” para ir a votos. É isso o que os EUA querem dizer quando falam em exportar a democracia.

As eleições realizadas o ano passado no Afeganistão – que magicamente transformaram Karzai de candidato designado pelos EUA em presidente eleito – foram, segundo qualquer padrão, a caricatura de uma verdadeira eleição, dado que o nível de fraude foi escandaloso. Além disso, a ocupação liderada pelos EUA não melhorou a situação do povo do Afeganistão.

O maior exemplo disso é a situação das mulheres. As mulheres estão sob uma tremenda pressão para ficar em casa, fora da vida social e política e submetidas à dominação masculina. Relatos recentes indicam que o suicídio por auto-imolação ainda é comum. Só nos últimos meses, pelo menos 52 mulheres da província de Herat arderam até à morte, frequentemente para escapar a um casamento abusivo. Médicos e funcionários afegãos dizem que pelo menos 184 mulheres levadas para o hospital regional de Herat durante o último ano devem ter-se imolado e que mais de 60 morreram em resultado disso. É provável que o verdadeiro número de suicídios por auto-imolação e de tentativas de suicídios seja ainda mais elevado porque apenas os que chegam a um hospital são registados. Dois recentes casos de execução de mulheres por apedrejamento público (por “adultério”) chegaram à luz do dia. O mais recente é o de uma mulher de 29 anos que apenas se conhece como Amina, na província do Badakhshan, no nordeste do Afeganistão. A venda de mulheres e de raparigas está a aumentar. Estes crimes são sinais do grau em que a ocupação mantém e reforça as relações feudais. Eles são algumas das marcas da “democracia” que a ocupação dirigida pelos EUA generosamente ofereceu ao povo.

A comunicação social dos EUA e de outros países ocidentais chama à planeada eleição parlamentar no Afeganistão outro passo na sua “marcha para a democracia”. Mas não passa de outro passo na legitimação da ocupação e do regime fantoche dela nascido – e os problemas com a sua realização estão a revelar as dificuldades que os ocupantes estão a ter para montar um regime fantoche mais estável. Falando sobre estas eleições em Janeiro passado, quando assistia ao Fórum Económico Mundial em Davos, na Suíça, o ministro dos negócios estrangeiros do Afeganistão, Abdullah Abdullah, disse à agência Associated Press: “Mesmo que não se realizem no momento certo por causa dos preparativos técnicos que são necessários, realizar-se-ão cerca de um ou dois meses depois da data inicial, durante o verão. Isso seria OK e o povo aceitá-lo-ia.” Mas as eleições parlamentares foram originalmente planeadas para decorrerem ao mesmo tempo que as eleições presidenciais. Quando, após vários atrasos, as eleições presidenciais finalmente se realizaram em Outubro de 2004, as eleições parlamentares foram adiadas até Março de 2005. Depois, decidiram adiá-las mais dois meses. Finalmente, depois de a Secretário de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, ter visitado o Afeganistão, as autoridades anunciaram que as eleições parlamentares se realizariam em Setembro que vem.

A explicação oficial para os atrasos foi que o aumento do cultivo da papoila (para produzir ópio) e a “segurança” eram os principais obstáculos à realização de eleições parlamentares. Ironicamente, anunciaram depois que este ano o cultivo da papoila estava em declínio, mas mesmo assim as eleições foram novamente adiadas. Obviamente, o ópio nunca passou de um pretexto. Não que não haja um problema de droga no Afeganistão. As plantas de papoila são a colheita número um do país. A economia é altamente dependente da produção de ópio e heroína, que constituiu 60 por cento do PIB do país em 2004, e essa dependência está a aumentar dramaticamente. No total, 87 por cento dos fornecimentos de ópio do mundo vêm do Afeganistão. Pensa-se que actualmente a maior parte da heroína das ruas da Europa e muita da dos EUA têm origem no ópio afegão. A narcopolítica do governo dos EUA é pelo menos tão velha quanto o tráfico de drogas organizado pela CIA durante a guerra do Vietname, que trouxe a morte em forma de pó da Ásia do Sul para os guetos da América do Norte. Nos anos 80, o tráfico de drogas patrocinado pela CIA na América Central financiou a guerra secreta dos EUA contra o governo sandinista da Nicarágua. Isso levaria qualquer observador imparcial a questionar se os EUA realmente consideram que o ópio é um problema no Afeganistão. A ideia publicamente propagada de que a dependência do país em relação ao ópio pode ser eliminada em alguns meses (a tempo das próximas eleições) só alimenta a sensação de que os EUA não falam a sério sobre essa situação.

O uso que o regime faz dos seus problemas de “segurança” como desculpa também não passa de uma mentira. A realidade é que o regime precisa de chegar a um acordo com os talibãs, os fundamentalistas islâmicos reaccionários inicialmente colocados no poder com o apoio dos EUA nos anos 90 e que depois foram afastados pela invasão norte-americana de 2002. O Kabul Online informou a 26 de Março que, “indicando que os líderes talibãs moderados seriam autorizados a participar nas eleições parlamentares do Afeganistão, o Presidente Karzai disse que alguns deles seriam convidados em breve pelo antigo Rei Zahir Shah para conversações.” De facto, esta não foi a primeira vez que Karzai tentou chegar a um tal acordo. Mas, no início de Abril, a oferta foi alargada mesmo ao líder talibã Mulá Omar e ao dirigente do Partido Islâmico Gulbudin Hekmatyar, o infame fundamentalista que recebeu mais de metade do dinheiro e das armas que os EUA forneceram às forças afegãs durante a guerra contra a União Soviética. Isso foi explicitamente declarado a 9 de Maio quando uma comissão dita independente encabeçada por Seghabatolah Majaddedi (um veterano mujahid que foi o primeiro presidente do regime islâmico instalado antes dos talibãs) ofereceu uma amnistia aos dois homens, “se eles entregarem as suas armas, respeitarem a constituição e obedecerem ao governo”.

Porém, o porta-voz dos talibãs, Abdol Latif Hakimi, recusou essa oferta quase imediatamente. “Não precisamos de qualquer garantia de segurança”, disse ele à agência noticiosa Reuters, acrescentando que, às ordens do Mulá Omar, “aumentámos nas últimas semanas os ataques às forças dos EUA e continuaremos a fazê-lo”.

É verdade que os ataques às forças dos EUA e do governo afegão aumentaram nas últimas semanas. Os movimentos de massas e as manifestações também têm aumentado em diferentes partes do Afeganistão e reflectem a oposição e a insatisfação das massas com a ocupação norte-americana, com o seu regime fantoche e com os outros senhores da guerra. Assim, a situação está madura para que forças reaccionárias como os talibãs tirem proveito dela e aumentem a sua actividade após um período de relativa acalmia devido a um inverno extremamente frio.

Mas, por trás das palavras de Karzai sobre a melhoria da “segurança” está uma outra agenda política. Desde o início da invasão tem havido uma luta pelo poder entre as forças que ajudaram os EUA a desalojar os talibãs e a ocupar o país. Karzai foi um agente favorito do Ocidente e dos EUA. Durante os três últimos anos, com a ajuda dos EUA, Karzai tem tentado trazer os outros para baixo do seu controlo e da liderança norte-americana ou afastá-los completamente do poder. Agora, depois de ter organizado vitoriosamente uma eleição presidencial, está apostado em manter o seu poder e em reduzir tanto quanto possível o poder dos outros senhores da guerra dentro do prometido parlamento. Já forçou alguns senhores da guerra a reconhecerem o seu poder. Por exemplo, depois de uma série de confrontos armados, Karzai fez com que Ismail Khan abandonasse a sua posição de governador da província de Herat e em troca aceitasse um lugar ministerial. Burhanuddin Rabbani, outro presidente do regime islâmico anterior aos talibãs e uma importante personalidade da poderosa Aliança do Norte, mudou para se aliar a Karzai. O general Qassim Fahim foi afastado de vice-presidente de Karzai antes da eleição presidencial. Recentemente, o poderoso senhor da guerra uzbeque Rashid Doustum concordou relutantemente em deixar a sua posição de governador para ficar a liderar as forças armadas nacionais.

Até certo ponto, Karzai tem usado os talibãs como bastão para manter na linha os outros senhores da guerra. Mas ficaria satisfeito se incluísse os talibãs no governo. Ele sente que os pode usar para fortalecer o poder da nacionalidade pachtun, uma vez que os talibãs e Hekmatyar são todos pachtuns. A maior parte dos outros senhores da guerra fora do governo, e muitos dos que nele agora estão, são de outras nacionalidades, principalmente tajiques, hezaras e uzbeques. O domínio pachtun tem sido uma fonte de fricção desde a retirada russa. A classe feudal reaccionária entre os pachtuns quer manter o seu poder tradicional, enquanto os outros senhores feudais reaccionários querem partilhar o poder ou o governo e controlar a sua própria parte do país. Esta luta étnica interna não tem nada a ver com os interesses do povo ou do país – é apenas uma expressão de interesses de classe reaccionários. Karzai disse a Hekmatyar que havia uma “cadeira reservada” para ele nas próximas eleições. Ostensivamente, isto quer dizer que o autorizarão a candidatar-se ao parlamento, mas o que não precisa de ser dito é que tem um lugar garantido.

A entrada de algumas forças talibãs no regime de Karzai está a tomar forma rapidamente, apesar da continuação dos combates. Em parte, isso acontece porque não há nenhuma diferença fundamental entre o regime fantoche de Karzai e o dos talibãs. Ambos servem os interesses dos proprietários de terras reaccionários, dos senhores da guerra, dos líderes tribais e do imperialismo. Os EUA nunca objectaram aos talibãs enquanto tal, mas apenas às suas alianças com a Al-Qaeda. Imediatamente antes do 11 de Setembro de 2001, os EUA tinham dado 400 milhões de dólares ao governo talibã para reforçarem o seu poder opressivo e criar a estabilidade que, entre outras razões, a companhia petrolífera norte-americana Unicol precisava para manter no Afeganistão um oleoduto vindo da Ásia Central para o Oceano Índico. Neste momento, o regime de Karzai reflecte os interesses de todos os principais reaccionários do Afeganistão, incluindo os talibãs e Hekmatyar, e os interesses dos ocupantes norte-americanos. Um artigo no semanário Omid dizia que a única diferença entre o regime de Karzai e o dos talibãs é que agora estão a pedir aos talibãs que se tornem “moderados” – que mudem dos pijamas e turbantes para os fatos e gravatas!

A verdadeira razão por trás do adiamento das eleições não é a “segurança” mas a necessidade de fortalecer e consolidar a posição de Karzai, o que quer dizer a posição dos EUA. Os EUA precisam de tempo para implementar um plano de longo prazo e assegurar o tipo de estabilidade que sirva os seus interesses. O facto de o adiamento ter sido anunciado no final da visita de Rice significa provavelmente que ele resulta das orientações e recomendações dos EUA e que tem mais a ver com a política norte-americana que com os problemas com as drogas ou a “segurança” do Afeganistão. Esta é a verdadeira face da “marcha para a democracia” dos EUA. Tudo será planeado e levado a cabo de acordo com os interesses dos ocupantes norte-americanos.

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